Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Rosa dos ventos [e Fé no futuro I]



Eu tenho um barco no meio do deserto e o barco é o meu corpo
Branco, queimado.
Tenho um barco em folhas de louro e um céu folheado a ouro
Cruel, mas nunca menos belo.
Meu barco vai em frente nem sei como
E a força que o tira da inércia muda algumas vezes sua direção.

De repente, dedos frios pré-tensos
 e pretensos de prazer.
O céu sobre o meu barco é de ouro,
Mas ouro é metal,
É condutor elétrico e pode ser
Muito quente e muito frio. E vai,
Desbravando solo e mar. Vai,
Ele também solo,
Flutuando em azul-escuridão.
 Marine blue.
Tremo sobre as pernas de madeira
Eu, que sou profundezas e lodo
Mas sobre a proa há a coroa de louros e o céu fervendo o mundo inteiro.
O céu de pústulas arrasa o meu barco e agora é guerra,
É água,
É o futuro que não se prevê,
Se ora.

Aponta para frente a ver se o céu muda,
Se o mar termina,
Se existe montanha, ó Noé, depois deste deserto.
Embica sua campanha sob o Sol que, tão estranhamente, incita é lágrimas.
E volto
A estar sobre o barco
As pernas tremem sobre a madeira.

 O ar tem barulho e a dor é apenas sinal de vida.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sereno

Se amanhã chover, amor, não é problema, porque a chuva será muito mais digna desse céu do que os meus olhos. Se amanhã de manhã chover, eu sei que não tem sombrinha, nem capa, nem boné, mas só minha cabeça de cabelos ensopados, abençoados indignos. Se amanhã de manhã chover, será dueto com meus olhos, comigo que choro ao te deixar. A água celeste vai me abraçar, me correr, me profanar do mesmo jeito que eu desejo você. E seu calor compartilhado durante a noite na minha pele se conserva, debaixo das roupas e da manhã preguiçosa de luz, eu andando na rua voltando para casa, triste de ter que sair, e debaixo da chuva hipotética, o teu calor evaporará.
Amor, se amanhã a chuva vier será morna, mas eu nem vou sentir. Como agora que você se preocupa e fica falando sem parar, se movendo, olhando pro ar, dizendo um milhão de coisas que nem você mesmo sabe direito. Se amanhã chover... E suas reticências. Tanto faz que chova, amor. Contanto que a noite seja nosso teto, que as horas sejam gastas perto do que é desejo & sonho circular. Sem fim. Você pergunta e eu sorrio. Para que fins? Sabe que nem você se ouve, desfiando seus “se”, mas já se entregando. Porque eu não ligo de me ensopar amanhã se puder ser molhada dos seus beijos já. Deixa que a natureza siga seu curso e nós sigamos um ao outro pelo quarto hoje.
Você fala de uma manhã que não existe, pois agora é noite e eu aqui na sua frente – finalmente – você protela, posterga e procrastina perguntando nervoso, E se amanhã chover?
Não fará diferença se chover, se nevar ou se nunca mais chegar o outono.
Eu sorrio e te respondo, Amanhã de manhã tudo vai ser doce. Nevoento, cheio de cruzes e dragões, momentos, colisões, cordas, vibrações, sims, nãos e anões. “Pode ser” pro seu “Se”. A sua mão e a minha, culpa e um sorriso que não rima. É isso, amor, e tenha certeza:
Se eu pudesse escolher,
sim,
iria chover.

sábado, 26 de novembro de 2011

Premeditado

Toque-me com a ponta dos seus dedos.
É só isso que peço de você.
E como um pedido sempre leva a outros mais, para o caso daquele primeiro frustrar ou ceder,

Olhe-me com todos os seus olhos,
Deixe que eu cresça nas suas íris,
Seja ocupante da sua mente.
E sinta isto mesmo que manifesto te pedindo tanto
E tão muito.

Deixa eu ver um pouco de você, assim mesmo, pálido de escuridão.
Deixa eu cuidar de você, corrigir sua postura, ser boa contigo.
Deixa eu te gostar sendo chata.
Te encostar e ser firme.
Deixa eu te fazer um filme,
Ser dona do seu sorriso reservado.
Aceita me estender seus braços pra eu poder desmoronar um pouco.
Seja corajoso e abra essa brecha.
Eu sei que caibo.
Se não, minha vontade me esquenta, me derrete e me ajuda a escorregar.

Deixa o beijo ser seu.
Deixa essa tensão trimestral aliviar.
Permite a você me olhar
E olhar e olhar e mais!
Adiciona as pontas de um único gesto na direção do que você quer.
Queira.
No seu ouvido eu murmuro.
Me queira.
Sem falar em futuros, em anos que vêm, em famílias ou times de futebol.
Sem nada mais do que a sua permissão.

E toque-me
Com toda a extensão
 dos seus lábios.

Metà

Meu coração triste,
Cansado de falar para uma cabeça sem ouvidos.
Pseudo-coração que intui bater em silêncio, timidamente
respirando, hesitando em existir – embora seja!

Meu coração distante
Surdo e cego ao seu peito pertencente,
Onde é seu trono, ainda que vazio.

Coração salgado, curtido, debaixo de todo sol
De pernas distantes, carimbando seus passos e derramando seu sorriso em terra imaginária Como se aqui
não tivesse ficado a terra de fato
Parada, salgada e curtida
Saudosa dos lábios do seu Sol.

Seca terra, a esforço dormitante.

Meu coração beijando a madeira: pare,
beija não.
Sabe que aqui ficou, além da madeira e do sepultado,
Um vivo, esperado coração.


"Alguma palavra houve, pior que a morte de Teobaldo, que liquidou comigo. Quisera esquecê-la, mas ai, ela aflige minha memória como as culpas malditas afligem a mente dos pecadores. Teobaldo está morto e Romeu... Exilado? Este exilado, esta uma palavra assassinou dez mil Teobaldos. Por que, quando ela disse 'Teobaldo está morto', não se seguiu a isto 'Teu pai está morto' ou 'Tua mãe está morta' ou 'Estão ambos teus pais mortos'? Isso teria motivado em mim as lamentações de costume. Mas, em seguida à morte de Teobaldo, o que vinha era 'Romeu está exilado', e pronunciar esta palavra é pai, mãe, Teobaldo e mais Romeu e Julieta - todos assassinados, todos mortos. Romeu foi exilado. Nisto não há fim, limites, medida nem fronteira."
Terceiro Ato, Cena II.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Tablóide


            Passei por uma flor vermelha no chão e noite passada desabou tempestade. A filha da primavera não resistiu. Caiu e sangrou. A manhã veio, mas foi manhã tarde demais. A pequena jazia sobre o chão, escuro asfalto molhado, colorindo pequeno perímetro de encarnado. Mas engraçado foi o que fizeram ao redor. Como em acidentes traçam o contorno do corpo no chão, assim fizeram em volta da pequena flora. Um círculo, menor que de bola de gude, grosso, também vermelho. Quase pensei que fosse o sangue da flor, mas passei bem perto e vi que não. Haviam se preocupado em traçar a área do crime, ainda que a tentativa de investigação viesse cheia de furos. Primeiro que não removeram o corpinho para autópsia – embora a causa mortis fosse evidente, e então, passível de investigação: que a morte da flor foi causada pela tempestade que a própria natureza, que favorecera seu nascimento, outorgou. O Senhor dá e o Senhor tira. E depois deixaram tudo lá, à espera: de testemunhas, de mim e meu relato fútil e esquecível, do Sol. Desconfio que queriam mais que o círculo no chão; queriam um círculo vicioso, uma prova do amor do pai, o Provedor de Clorofila. Quando ele a notar, caída e avermelhada, vai se recolher novamente (e nós já sentimos tanto sua falta) e a mater chuva voltará, desta vez velando a filhinha transformada em manchete sensacionalista de blog às sextas-feiras, e lhe tocará com a ponta dos pingos e lhe molhará as pétalas secas de beijos muito dignos. E a envolverá docemente, como se substituísse o sumo vermelho vertido e a transportará para além do círculo desenhado e no ciclo que mistura água, carbono e nitrogênio será novamente integrada em única coisa que sempre foi, até mesmo agora, morta: ciclo da vida.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

2 filmes de Kubrick

            Numa certa tristeza, assisto a aula de história. Me perco no tempo, literalmente, e exerço atividade perigosa de “estar aqui sem estar”, escutar sem ouvir, encher o subconsciente e navegar em lembranças duvidosas, pálidas de luz, com jeito de sonho. Ouço a aula e me divido, invento minha história, vou pensando por mim. Vou, sem sair do lugar.
            3 coisas me distraem (e afligem). O amor, a aparência e a matança. Tudo junto debaixo da minha distração. Siga: tudo rodando num compasso alegre, mas em ciranda de fado, rodopiando melancolias. Há uma foto de guerra, de trincheiras e espólio, de agonia e somos todos incitados a lutar, pois só se lutarmos alguma coisa vai mudar.
Abraça o risco e tomba. Luta a tarde inteira enquanto em algum lugar desse mundo deve haver paz. Numa cozinha silenciosa no meio de um pasto rodeado por uma estrada de mão única, sinuosa durante vários quilômetros. Tanta paz distante. Jogue-se no barulho, nos metais sujos, na terra que se gruda ao seu sangue recém afluído.
Cortes e rasgos
nos uniformes.
Existe poesia nisso? Existe um sonho encarnado, coletivo, batendo debaixo dessas mãos que esganam. Licença bélica. Bestial, mas que almeja o celeste, e que o celeste seja na terra. Pode?
Memórias pálidas, com jeito de utopia. E eu penso que lutar tanto
e tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, para além das horas e dos dias e dos limites (os meus e os da terra) e, de repente, sobreviver. E então correr e correr muito, para onde se quer, para aquele que, sobre a terra, se deseja tanto, para o depois, para o sonho imediato. E neste chegar. E neste esfacelar-se de correr, como deve ser bom morrer nos braços de quem se ama.
            E meus pensamentos, que vêm em narrativa, são traiçoeiros. O grande inimigo externo, como ensinaram há tempos, não é Nós x Eles. Sou Eu. Grande algoz e sabotador maior. Eu que penso e disperso, desespero sem razão e com todos os motivos. Quando escrever, vou esperar pelo perdão, meu e de Deus. Forjo linhas e desculpas enquanto penso tudo o que não devo. Não é? E a falta de esperança – a boa e velha conhecida desse ano –, tento ignorar imaginando se pode ser recíproco. Amada inimiga ambígua, atingindo a outros também. Pego palavras desencontradas, tentando voltar. Mas, tarde demais. O diabo já me ouviu.
            Devagar, volto a entrar em foco. O medo, as distrações e as 3 vertentes, tudo tem que voltar ao segundo plano. Por dentro, somos todos carrossel que gira, botando algumas coisas em voga e outras na penumbra. Mas eu sei que tem algo errado. Meus olhos percebem que, em todo esse devaneio, fixaram no quadro uma palavra: matança.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Água e Leite

Eu tive um dia bom. Acordei cedo e encontrei um sol de manteiga. Tomei banho e me lembrei do resto do dia. Lembrei que tinha que escrever. Então disse adeus ao dia bom, porque escrever tem que vir de baixo. Tem que vir do fundo do poço. Estava dentro do banho, recuperado, mas lembrei e tive que sair e resgatar as rugas. Escrever é exorcizar-se. Não funciona falar sobre sóis de manteiga e céu azul. É descer e procurar a luz e a consolação. Eu tive um dia bom.
Então, do estado de deitado na minha rara paz, me sentei na cadeira de responsável, na poltrona das aspas e me citei: "Procurei aquele fundo breu de inquietação e me encantei que a fase anterior à depressão pudesse ser tão útil - e, assim, boa - e que, bela, me servisse os rancores e amores." De propósito, me desajustei.
Senti... Entre tanto o que senti, foi pena de meus parafusos, um a um soltos rolando para longe. Meu poço exposto, cada pedra em seu lugar. Cada anteparo a se julgar pelas marcas de dedos e infiltração. E calei (só que continuava falando, aqui), pois acredito que enjoam das presenças e das vozes mais rápido do que admitem por aí afora. Calei demais, receio. Caí naquela de encolhimento e até do meu cheiro bom me envergonhava. Encostei a cabeça no ar acima do encosto da cadeira e, de olhos fechados, mesmo abertos, lembrei que não tinha esperança e por isso sofri até ontem. E lembrar que esqueci e agora lembrava me trouxe de volta ao lugar de sempre. E meu cheiro de banho e esquecimento era prova de ingenuidade e natureza humana. E a raiva virou líquido quente de novo, de farelos que amoleceram novamente juntos. Coração que pesou contra as vértebras. Caía quase. Doía. Por voltar a saber que nunca, jamais seria nada. E isto que esquenta desprende cheiro que deixa-me doente, mesmo sendo meu - por quê? sou eu.
Me aposso dos fatos e granulo-os em palavras mesquinhamente. Deixo de esperar e corro à frente, escorro relógio abaixo até o topo das horas empilhadas envergarem. Alto demais; frouxo demais. Me perco no embalo. Os parafusos soltos: por isso ninguém me entende. Viver e escrever, mas a loucura é relativa.
E não me dou por vencido. Sei que o egoísmo é crescer, ser adulto, aparecer, se achar, se enxergar, encontrar sua turma, cair na real, encher a cabeça por um lado e rir do resto que ficou de fora. Rir porque não cabe, porque meu tempo não é suficiente. Rir de ser homem e ter que viver no mundo cheio, mas só poder ser um e não ser suficiente. Rir, sim, da opção que não fiz e dizer que é feia, sem sentido. Só porque estou preso à morte, ao meu próprio tempo e aos, muito meus, limites. Espezinhar dos outros é dar as costas ao espelho. Humanas ou Exatas? Arte. Cardiologia. A vida dentro de uma foto. Invalidez. Covardia. Natureza humana. Forças que não se sabe de onde. Coragem de sentar e se dizer. Palavras pingando da boca do poço. Consolação. Algum dia, um dia bom.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Beijo


            O mundo girava, a água fervia a 100º C. Abria os olhos de manhã e fechava-os à noite. Até que aconteceu: o digno de registro. Como as cores da larva e o suor na chuteira. Agora, é gol e borboleta. A presença eriçou a atenção; quando vê, ouve música. Braços em redor e segundos que só se compreende depois. Vinte anos digerindo um momento. O momento de olhos fechados que viram tudo. Toda a polissemia do silêncio. As cores todas se fundiram naquela boca. Todo o corpo se juntava à mente.
A felicidade existia e se movia sobre a face daquele lago de vazio anterior à luz e ao próprio Gênesis.
O beijo explodiu e queimou a vida e os dedos a largaram em cinzas. Não havia mais mundo além dos olhos fechados. O suor se desprendia das peles a 37,5º. Tinha deixado marcas na vida, segurando-se nela forte demais. Todo o mundo eram os tímpanos e o som que retumbava - o gosto das cores abrasando a língua e as bochechas. Tato elevado ao e da quantidade de movimento.
Agora... A água evapora dos olhos abertos a noite inteira. De manhã é hexacampeão. Mas o mundo, este nunca mais voltou a girar.

sábado, 24 de setembro de 2011

Linguagem de cinema

Take 1. Cena. Tão escuro interior de cinema. Escuro refletor do interior da personagem. Drama. Metalinguagem.
Segura entre as mãos rolos de infinitos negativos. Quase sinônimos dos numerosos pontos que permeiam sua história. Panorâmica. Avistado um desenho. Os dedos tateiam os fotogramas com cuidado, como um cego lendo em braile os tais pontos de sua vida. Acha injusto que o desejo da alma seja elevação, mas que a gravidade seja inexorável corredor que conduz a todos os movimentos |para baixo|.
Os negativos seguem a sequência e um corpo cai. Um corpo amado. Vida e ideais eternizados. Mas o que é eterno? Lá está a bala, para sempre. E o chão, para sempre. E o morto. A arte imita a vida.
Não se conforma. Também faz parte da história. Mas arranca-se da parte. Agora apenas faz a história. Os dedos cuidadosos voltam. As imagens revertem. O pequeno corpo se ergue já à margem da gravidade, sem dobrar os joelhos. A bala volta pro infinito e o homem volta a correr para onde veio. Às veias da esperança. Cuidando, com sua vida, mudar alguma coisa. Sua queda o aguarda, mas que há? O importante é a corrida. É sempre breve o flamejar.
Cena continua. Take. Close. Os olhos de quem observa editam uma lágrima que segue o curso do corredor: para baixo. Não adiantou voltar negativos? Onde está a esperança?
Fecha-se o close. Cabelos, queixo, testa, sobrancelhas excedem a tela. Aproximando zoom até centralizar a lágrima. E então a câmera gira. 180º. O que despontava queda abaixo agora despenca, eternamente, para cima.
Mágica.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Seus olhos na foto

Seus olhos na foto olhavam para além do foco.
E eu aqui a tantos dias de distância, abusando do zoom, crente que somos um pro outro.
Capturado para sempre me causa a inspiração de agora.
Mas me acabo em você.
Finita.
Mal e mal posso esperar.
Me acabo em você, acabo eu de hoje e começo a nova de todo o futuro.
Começo a sua.
A que será de fato.
A que simplesmente é.
Abro a porta e vejo que você cabe em mim.
Seus olhos na foto, tão grandes repartidos em pixels.
E eu te encaro face a face como poucas vezes pude.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sob cachos caóticos

            Usava a caneta apoiada na têmpora como um cano de arma que a qualquer momento fosse explodir – mandando palavras-pensamentos, pré-palavras, palavrentos, pensalavras e sanguetinta pelo ar, deixando marcas indeléveis e inconvenientes, insistentes sob sabão e pó, em todas as quatro paredes.
            Atrás da orelha, a revolução. À frente dos seus olhos, nada. Caneta insiste na têmpora. O dedo acaricia o projétil... Espera disparar a letra.
            Dança a ponta da Bic no papel espalhando seu gozo continuamente, às vezes alegre, divagando sobre nada, às vezes tristonha, riscando a alvura só pelo ato de profanar. Adora errar. Anda viciado em más decisões e verbos de ligação controversos. Não fala, não fala, não fala; mudo, mudo, mudo! Repete o silêncio teimosamente. Incita a exclamação inexistente. Nega-se à ação. Ampara-se no meio do seu nada; o seu nada muito particular. Cai de braços abertos numa escuridão ligeiramente estrábica.
            Recusa-se a falar porque não faz sentido. E, sem pistas de uma conclusão, ponto final.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Paixão


Ele passa e nada acontece. Ela não sente nada. Nem um arrepiozinho ou a descarga de um hormônio qualquer, um calorzinho diferente no peito, ou qualquer diminutivo que o valha. Sua cabeça está cheia de ar. Chega a fazer um esboço de raiva por si mesma. A ausência de reação é revoltante, suspeita que por ser um alívio. Não é amor, não é paixão, não é afeto. É nada. Ou alguns olhos ávidos espreitando, um tanto inocentes, da sua paranóica visão periférica.
Ele era uma possibilidade nadando em volta do seu anzol. Mas ela não quer puxar a linha, não quer nenhum placebo. Sua paixão, pobre menino, desaguaria em lugar nenhum no afã de saciar uma sede inexistente. Estímulos puramente físicos (que nem estão se fazendo presentes agora, imagine!) são superestimados.
A paixão não é exatamente o anzol ou o se debater no chão, capturado pela superfície. É apenas aquele momento de cortar a água, tão quieta e confortável... e descrever aquele belo arco no ar, respingando pérolas de sua vida recém perdida, ainda segurando o fôlego nas guelras, impelido por uma dor tão irresistível que só se pode amá-la. Paixão é um momento muito rápido que em seu ápice já descreve a própria ruína. Porque o fim do arco é o chão. E então a convulsão dentro de uma euforia irracional, que será prontamente esquecida e, uma vez esquecida, o que resta são as pérolas e o ar – volúvel ar, ah.
Aí esse desejo de ser capturado de novo e de voar de novo – mesmo sabendo que o destino é o solo – e de enxergar o mundo sem a ilusão da água – mas o que é a realidade, senão o que nos mantém até o próximo instante? Ansiar por algo que não pode fazer bem só poderia ser típico de gente. Natureza humana.
Mas agora, como já dito, nada há. Só lembrança e sonho que, sozinhos, conseguem ser tão poderosos como o atualmente tangível não alcança ser. Isso, que não nomeio amor por motivos que encheriam outros textos, não explode e não se mata; ao contrário, é tão simples que só respira. E respirando, se faz presente. Estando aqui parado, de olhos abertos e esperando junto dela, já é mais emocionante do que qualquer estímulo possível. Invisível assim é a sua causa. É o que lhe contém sendo. Respirando quente dentro do peito preenchido por algo tão próximo de fé, e é por essa fé que vem andando.

Afinal cada dia é um a menos no caminho até o futuro, esse que se delineia difusamente, sem parecer ter pressa, sabendo muito bem em que dia chegará. Qual é essa esperança, que está na estrada? Às vezes parece que só existe a estrada e ela é tudo. É o real, o que faz barulho. Mas é de fé que ela fica de pé, lembra. O que ela espera é o teu perdão.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Sendo (s)eu

As saudades do Sol. Do terraço, do maiô. Dos meses em tom de sépia que são o cenário da velha alegria.
A saudade das ruas de pedra e árvore, os bairros se sucedendo e as horas para sempre claras. A simples saudade de andar com a música no bolso, um livro debaixo do braço e os olhos atentos. Andar, só andar e imaginar que você também conhece isto, que já fez estes mesmos passos.
Saudade do verão, da esperança verde das amendoeiras, do ar-condicionado do teatro, do ingresso nas mãos e dos seus braços. Saudades de sentar na praça ou à janela e assistir as luzes indo esmaecendo. Uma saudade de respirar aquele ar. De viver aquele tempo, de adivinhar que estou mais perto.
Saudades do Sol, só. Saudade do Rio.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A crônica do contêiner vermelho

 
E no meio da areia e do lixo, ele se erguia como uma afronta a toda a paisagem: um sol caído, escandalosamente vermelho.
Os cachorros não chegam mais perto. As crianças brincam de costas. E é só o inverno. Imagine quando o verão vier, impiedoso. Instigando o suor. Aí vai ser o deserto literal.
Pior é que ninguém sabe o que tem dentro dele. Ou pelo menos prefere dizer que não sabe. Que na verdade o contêiner vermelho, colossal, brilhante e novo como nenhuma vida ali é, está cheio exatamente  de tudo o que há ao redor. De lixo. De nada. De pior-que-nada. Coisas que já foram úteis, que viveram e hoje vegetam. Coisas. Todas despejadas ali de qualquer jeito, encerradas sem ar, na sombra. Um monte de morte junta. Sem nem saber do intenso do outro lado da parede irritando a paisagem: sendo um escândalo encarnado.
Todos os dias eu o encaro jazendo ali, orgulhosamente vivo. E sigo no meu próprio deserto particular. Mastigo palavras, conto sorrisos. E no dia seguinte lá está, com sua tinta tinindo de nova, cortando o ar e o éter. Faz a gente pensar que até o que é feito para ser velho tem que começar novo. E os olhos dóem ao vê-lo. Seco. Irascível. Com seu interior ignoto. No minuto que leva para perdê-lo de vista, não há movimento ao redor. Nada que denuncie seu conteúdo: nada. Ele só existe, e nada mais. Estranhamente comum.
O seu ser-e-nada-mais obriga a pular linhas, pois o raciocínio não é mais válido. Obriga a: parar e pensar. Sinto até certa gratidão. Pensar sobre nada é necessário. Mas não o nada qualquer. Esse mundo está intoxicado de nada. O nada do contêiner vermelho, em sua ambiguidade cintilante, é um nada construtivo. Quebra os limites do absurdo. Ele é nada. O nada é alguma coisa.
É, é sim. Se não for, que será todo o resto? O resto dos presentes que se tornam futuros e também obsoletos e descartáveis. O vermelho insistente, dolorido, enraivecido é a prova cabal de que algo – talvez eu, andando pela rua – faz algum sentido neste algum mundo. Por ser & não ser, nós também somos.  E não somos, claro.
Então posso prosseguir. Acolho a afronta com a boca envergada, cúmplice. Entendo o escândalo com paciência. E vou adiante, um pé à frente do outro, me sentindo um pouco melhor.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Vocabulário

Ca.sas cheias de nós
De nós, que somos os donos
De nós que não desatamos
Que acumulamos
Como palavras em páginas.
Casas que são nossos corpos
Que, se se tocam, explodem em exclamação
E que atualmente esperam uma distração.
Mas são só palavras, como tudo
Nó e repetição.

E eis a guer.ra
De repente tão romântica,
Se a incluímos entre dois pontos.
Lhe acabamos,
Delimitamos.
Somos seus donos e sabemos aonde vai
Enxerga a beleza de mais uma palavra
Que, como todas as outras, é só palavra e nada mais.

Me.do
Escuro, teimando em não se deixar reconhecer
Admitindo que é isso que o acompanha quando fecha os olhos
Que não reconhece nada do que está dentro de você.
Toma esta também e deixe-se ir
Medo é só mais uma palavra
Que, do tamanho de tudo, acaba sendo igualmente nada
Encerrada num final de página de onde devemos partir.

Fo.go: constituindo luz e morte
Cheio da própria sorte
Lágrimas de vapor quase sem ser.
Chama de dor e de vida, poder e solidão
Fumaça de negação
Paixão sem dó nem piedade.
Se é isto que você quer, fique com essa também. Fale.
Não complique tanto as coisas,
Fogo é mais uma palavra. Completa. Então, fala.

A.mor
E não faça essa cara
Prometo ser breve, como um dicionário pode ser
Sorriso ponto e vírgula
Amor é apenas uma palavra de duas sílabas
Use como verbo, não como substantivo
Síntese de atitude, perdão e certa esperteza
Amor é mais uma palavra de quatro letras
Como tudo, como nada
E como nada que também somos
Além de palavras.

Co.ra.ção
Desgraçadamente crente em redenção
Estão na moda as hipérboles
Então, sangrado coração!
Rasgado ou empedrado, quem pode dizer a sucessão?
Mais uma vez, palavras
Verbetes que reverberam sua condição:
Con.tri.ção
Chega aqui e me olha mudo
Sem malas e - sem escudo.
Pedindo com audácia
Pedindo sem palavras
Implorando
Que eu também fique de joelhos.


Tudo bem. Eu te pego pela mão
Reconheço você como gente, não como número
Vou arriscar em outra rima
Que diferente desta, diga sim em vez de não.