Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Amor

O que chocava não era a parede caiada de branco com os respingos de sangue vermelho. Não chocava o grito insensível das crianças em frente a ambulância. A própria ambulância não chocava em sua imensidão branca encimada pelas luzes vermelhas atordoadas. A voz da intromissão, rasgada sobre o papel branco, também não chegou a chocar, embora inspirasse um tantinho de nojo – nojo mesmo enquanto o corpo e as mãos rescindissem ao enferrujado e asséptico do pano de saco limpador.
O que chocou foram os rostos. Não as vozes ou o fio delas, os rostos: pairando ensanguentados e em cera de brancos. Os olhos injetados que recorreram aos meus e sabe Deus que foi que viram. Olhos que se embaçavam, uma coisa líquida esvaindo de um interior ressecado.
Era mamãe que ansiava desabar. Enfraquecida, em roupas fora de hora, a garganta arranhada, e as mãos dela, que seriam para sempre mãos de mãe, amparando a velhinha do rosto sem cor, que era minha tia. Não eram irmãs. Nenhum sangue as ligava. Papai já morto, em dias muito parecidos com esses, deixou além da lembrança com data de validade, um sólido que era eu. Olhando para trás, para elas, com o fone do telefone branco pendendo em meu ouvido ainda mais branco, me dei conta de coisas que não têm nome. Eram rostos varados pela vida e sua consequência inevitável – ela – que somente naquele momento expressavam à perfeição o que nada pode imitar.
O inimitável. Que só expresso agora ainda chocada, para sempre, eu espero. Não pelo sangue no corredor, a massa sem forma que seria a minha tia, a fraqueza misturada rigidamente à fortaleza imperecível que era mamãe. Coisas de fé e histórias sopradas pelas crianças – crianças demais zanzando pela rua. Eram oito e meia. A ambulância estacionou no mesmo lugar onde recolheram papai, há quantos anos? Fui eu que subi então, levando seus chinelos como se fosse um detalhe da maior importância, como agora fazia mamãe. Queria avisá-la de que não era necessário, mas não o fiz. Tento lembrar se essa é mesmo a primeira vez que ela passa por isso. Como posso eu ter passado e ela só agora?
O choque. O rosto da minha tia tem o mesmo olhar do irmão, quando a maca foi erguida. Eu pensava: não tem mais jeito, vão até para o mesmo lugar. Mas outra vez, não disse nada. Para quem, também? Não digo, escrevo.
E o suor vindo daquele cabelo tão conhecido. Queria ter posto a mão em seu rosto outra vez. Pensava: é a última vez que a vejo com vida! Não consegui. Para ser sincera, mal tentei. Ela me olhava muito rápido, sem ver. Eu lembro daquilo. Queriam ir meus pés, mas a cabeça mantinha uma clareza assustadora. A noite soprava fria, os corações rápidos. Foi bom ter ficado. Não poderia contar a minha experiência. Eu gostaria de falar? Ninguém ia gostar de ouvir.
Ninguém da rua importava. Alguns na rua se importavam. Recuei e fechei o portão, não acompanhei o carro ir embora com suas janelas altas. Lembro que não dá para apreciar a viagem de meia hora até o hospital dentro de uma ambulância. Penso se foram projetadas por causa ou em consequência disso.
A vontade de chorar, mas o choque. Por que a gente chora diante da morte? Diante da dor, sua mera possibilidade? O chão, foi isso que estragou tudo. Os irmãos e eu temos o mesmo sangue. O chão ainda é de cimento batido. Teremos todos que cuspir o mesmo sangue sobre este chão?

2 de novembro

Não se entristecia mais pelo bichinho de estimação morto. Entristecia-se pelo pai que morrera.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Baseado em fatos reais

17 de junho, domingo

            Um medo de olhos arregalados e dedo no gatilho. Medo de qualquer coisa que faça quebrar, mesmo que seja o cofre de porquinho. Algumas coisas devem ser destruídas, igualzinho a gente: devem nascer para morrer.
            E no fim de todas as contas, é isso a fé. Acreditar num sentimento melhor lá depois, quando for impossível sentir qualquer coisa.
            Saúdo minha dor no estômago e a tal da paixão. Provação. Prefiro muito mais o medo, porque sei o que vem depois. Quanto maior o medo, melhor o alívio. Mas apaixonar-se? Quanto mais fundo se vai, mais fundo se vai. E com aquele ar viciado de suspiros, não se enxerga direito. Naquela ausência de luz sobra a imaginação, e a imaginação é uma reminiscência do divino. O divino que é nosso odeia nossa humanidade – sonha com o outro lado do rio e seu depois não é alívio. É horror.
            A decepção é o momento em que somos mais. Estendemos uma mão pro céu e pensamos “por que, por que, por quê?” E por que esse cansaço de desejar morrer? Porque um desejo sempre tem que seguir a outro, e no fundo, a paixão deseja mesmo é o autodestruir. Uma explosão bem barulhenta para soar sobre o mastigado de pipoca. A paixão é o mais capitalista dos sentimentos, apesar de ser vermelha.
            Será mesmo que estar só é proteger a todos os outros?

17 de janeiro, domingo, 3 anos depois

         Última nota de sua narradora: A recuperação não foi da dor da queda. O pior é quando o sangue esfria.