Era uma vez
uma Feiticeira que morava em um reino distante e desconjuntado. Sua magia havia
transformado aquele lugar em uma cidade eterna, onde tudo o que chegava sem
rumo se encontrava. Seus conterrâneos eram o tipo mais simples do povo, que
vivia sem senhores e sem rancor, suando com prazer sobre a terra boa e fértil.
A Feiticeira e seu castelo assomavam sobre a única colina em meio ao vale, refletindo
os tons sombrios e familiares de uma tarde úmida após a manhã de sol e cinco
horas de tempestade.
Os aldeões dos
burgos vizinhos contavam que a origem do Reino da Tarde Eterna datava de pelo
menos sete séculos e a Feiticeira uma vez foi princesa, vitimada pela maldição
do mundo de outrora. Por causa disso, quem desejava visitar o lugar o achava
inalcançável: existiam histórias sobre conquistadores e expedições que minguaram
durante anos no caminho até a colina, embora ela permanecesse do mesmo tamanho
no horizonte. O encanto guardara o espaço do reino e esticara o tempo de
maneira misteriosa, conforme a vontade de sua soberana.
Os forasteiros
que lá chegavam por acaso, voltavam com relatos sobre jardins suspensos, florestas
infinitas, gente humilde de bochechas rosadas e música de clarins que enchia as
ruas aonde quer que se andasse; e o mais impressionante, a Feiticeira permanecia
jovem como no dia em que o Sol brilhou e a tempestade caiu. Diziam que ela
possuía o rosto mais estranho que não se podia imaginar: para alguns era
decepcionante e comum, mas para outros constituía a perfeita imperfeição, união
de traços inesquecíveis.
Um dia chegou
o Cavaleiro Perdido, sobre sua montaria cansada, envergando ainda uma armadura
com placas faltando. Depois de ser curado pelo dono da Hospedaria de Apenas um
Quarto – pois todos os moradores do Reino da Tarde Eterna também eram dotados
de grandes habilidades mágicas –, ele pediu para ser recebido pela Feiticeira e
esperou pacientemente durante vinte e nove dias sem noite.
Quando
finalmente entrou no salão de pedra do castelo ao alto do morro, ele suspirou
pesadamente, pois se viu diante da mulher mais bela de sua vida. A certeza de
que encontrara seu grilhão após tantas lutas por liberdade – aquela certeza se
estabeleceu na boca de seu estômago, de onde não sairia jamais.
Por sua vez, a
Feiticeira ergueu os olhos descansados de quem deixara as relações com reis e
aristocratas para trás havia muito. Encarou o Cavaleiro Perdido com curiosidade
e segurança: era jovem, apesar dos cabelos cor de cinza e das marcas sobre a
pele dura de quem enfrentara muitas lidas. E ele ganhou seu respeito, pois
carregava a beleza melancólica dos sobreviventes.
Ao longo de
uma medida de tempo em que não houve necessidades humanas, eles se sentaram à
mesa de mogno do salão principal e conversaram. Em uma única troca, partilharam
todas as histórias de que se lembravam. A Feiticeira descobriu que ainda
existiam contendas por pedaços de terra que permaneceriam muito além das
pessoas que por ela se matavam; e o Cavaleiro constatou que a magia que dobrava
o tempo nascia da mulher, que a cada sorriso lhe causava um prazer intenso e
doloroso.
Quando ela lhe
disse que era hora de partir, ele pediu que lhe permitisse ficar, pois estava
apaixonado por ela.
- Não –
respondeu a Feiticeira. – É impossível que um estrangeiro viva aqui.
Somente os filhos desta terra podem para cá tornar. Forasteiros são permitidos
quando seus pés erram o caminho, pois este é o lugar onde o sem rumo se
encontra. Contudo, agora deves partir.
- A senhora
que é soberana deste ar e desta terra – suplicou ele. – Certamente poderia
conceder uma exceção. Rogo-te que devotarei meus dias à senhora e, se a vida eterna
aqui me alcançar, ela será tua para bem dispor como queiras. Não posso retornar
àquele mundo, porque mesmo que expulses meu corpo, todos os meus pensamentos
errariam de volta para ti.
A Feiticeira
sorria quando tornou a falar.
- Se quiseres
– ela disse. – Podes deixar uma parte de si para trás, como um presente.
Ela apontou
para as paredes do salão, nas quais o olhar do Cavaleiro não pousara nem uma
vez até então. Lá ele viu incontáveis prateleiras sobre as quais havia caixas,
redomas, urnas, estojos e ganchos de onde todo tipo de pedaço pendia.
- Há quem
deixe desejos de paz, ameaças vazias, preces... Assim como mechas de cabelo,
unhas, dentes, braços fortes que juraram lealdade e sangue... Por algum motivo,
os estrangeiros acreditam que o valor do sangue é altíssimo. No entanto, veja: são
todos iguais na textura e na cor. De nada serve fora do coração.
- Já tens o
meu amor – respondeu o Cavaleiro. – Podes ter também a fonte dele, do mesmo modo.
E assim, na
medida que trouxe a tarde seguinte, a Feiticeira encontrou em seu salão uma
nova caixa onde se achava o mais lindo e vermelho coração humano que ela já vira.
Segurou-o nas mãos como uma grande maçã coberta por caramelo brilhante e sua
boca se encheu de água conforme se aproximou da superfície perfeitamente lisa.
Entretanto, seus olhos notaram uma carta junto à caixa, que dizia:
“À Feiticeira
do Reino da Tarde Eterna,
Eis o coração
que te entrego fisicamente, apesar de que tu o obtiveras no momento em que teus
olhos de fogo luziram sobre mim. Em tuas mãos o tens, envernizado com o amor
que acordaste em minha alma. Por causa disso, se alguma vez teus lábios
benditos encontrarem este coração, tocando o amor desgraçado que o vitimou,
deverás sucumbir ao malfadado vazio da morte, que acolhe todos os sentimentos
não correspondidos.
Esta foi a
única maneira de extrair o que querias de mim. Agora estou contigo, conquanto
resistas.”
Assim foi que, durante semanas
e meses, a Feiticeira procurou não prestar atenção à caixa onde mantivera o
lindo coração, disposto sobre uma prateleira qualquer. Não obstante, ele o chamava com a
canção do amor dessangrado, com a ternura do que não deve existir, mas insiste.
Finalmente então ela
colocou seu reino em ordem, fez os preparativos e decidiu que deveria morrer.
Havia algo de
tão correto no coração do Cavaleiro Perdido, que ela se convenceu de que o
proibido também lhe pertencia, assim como o final de sua história. Parecia a
melhor forma de encontrar o fim, através do supremo prazer daquela carne
perfeita.
No instante em
que a Feiticeira abriu seus lábios e recebeu entre eles o doce coração – quando
seus dentes afundaram nele e sua boca se encheu do sangue quente – no mesmo
instante já nada havia. O coração era novamente o Cavaleiro, íntegro à sua
frente.
- Aqui me
tens, soberana Feiticeira. Eu também usei um feitiço para quebrar tuas regras.
O amor com que embalsamei meu coração jamais se separou de mim. Pelo contrário,
escondi-me dentro dele à espera da tua libertação. Quando cedestes, quebraste
tu mesma à tua lei, correspondendo ao desejo de um estrangeiro e tornando-lhe
parte de teu próprio coração. E, mesmo se resistisses, aqui ficaria ao alcance
de teus olhos, para o resto da existência, como é minha vontade. Toma-me agora
como queiras: devora-me, mastiga-me, retenhas-me ou lance fora os retalhos que
não te servem. Se puder pedir-lhe mais ainda, que beije-me novamente e deixe-me
viver e morrer entre teus lábios para sempre.
A Feiticeira
tomou nas mãos o rosto áspero do Cavaleiro e riu. Tanto havia fugido, para
escapar ao mal do mundo, e o mal da guerra trouxe o amor à sua porta. Beijou afinal o
Cavaleiro e a magia os uniu definitivamente: ela outra vez princesa, ele a
partir de então feiticeiro. O tempo, o espaço, o amor e a mágica reinaram
durante a Tarde Eterna e eles nunca mais foram infelizes.