Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sábado, 9 de julho de 2022

Aquarela

 

            A tela em branco me encarava, cobrando uma ideia. Entretanto, eu estava diante dela para trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas um antigo gancho. Um "e se?".

            A velha cisma começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a lembrança do dia.

O grande ornamento brilhava no meio do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real ao mesmo tempo em que era impossível. Cercada por varais de bandeirinhas coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se espalhava no grande vão entre as escadas rolantes com troncos de isopor pintados de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e então, sem mais nem menos, uma figura da multidão ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem três passos, reconheci o garotinho sentado nos ombros do pai, rindo para a fogueira de brinquedo. Confirmações de que eu não tinha confundido a mulher ao lado deles.

Meus amigos faziam observações animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava insistentemente a moça do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como era que ela chamava aquilo? Encantamento? Não, feitiço. Ela dizia que era a minha bruxaria. E funcionou. Ela ergueu os olhos direto para mim.

Meu rosto se moveu por conta própria, na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus dentes rangeram. Tantos anos entre nós. Não. Não seja bobo, homem. Nada mais havia entre nós. Esta era a cisma: o que vinha depois do nada? O distanciamento, o silêncio, o sumiço, as redes sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, o enteado, o marido – será que ele era mesmo diferente de mim em cada detalhe como se fosse de propósito, ou eu não deveria me dar tanta importância?

Ela sorriu para mim além das chamas falsas, os olhos ternos, as sobrancelhas erguidas exatamente como alguém que revê um velho amigo. E nada mais.

Meus amigos começaram a ir para as escadas. A mão dela se ergueu numa despedida. Eu respondi com um aceno de cabeça. Minha namorada falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei para trás, ela já não olhava mais. Estava na ponta dos pés para ouvir o menininho.

Recuo um passo e me sento no banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja, vermelho, roxo ou amarelo. Talvez tenha ficado pueril demais. Bem, já está feito. A resposta para a antiga cisma estava ali. Eu já devia ter aprendido, porém, que um gancho não é solucionado tão facilmente. Assim que repassei mais uma vez a lembrança, desta vez em velocidade 1.5, a questão novinha em folha me encarou de frente:

Isto que sinto agora é leveza ou vazio?

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Óleo sobre tela

 

            A tela em branco me encarava, cobrando uma ideia. No entanto, eu estava diante dela para trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas uma reminiscência. Uma reticência. E, ainda por cima, velha. Velha? Não. Antiga.

            A antiga dúvida começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a lembrança do dia.

O grande ornamento brilhava no centro do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real ao mesmo tempo em que era impossível. Rodeada por varais de bandeirinhas coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se espalhava no meio das escadas rolantes com grandes troncos de isopor pintados de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e, sem mais nem menos, entre todas aquelas cores e sons de quadrilha, uma figura do outro lado da multidão ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem três passos, reconheci a garotinha na ponta dos pés, rindo para a fogueira de brinquedo, e sua mãe que a segurava pelos ombros do casaco, também sorridente. Confirmações de que eu não tinha confundido o homem ao lado delas.

Meus amigos faziam observações animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava insistentemente o homem do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como ele chamava aquilo mesmo? Feitiço? Não, encanto. Ele dizia que era o meu encantamento. E funcionou. Ele ergueu os olhos direto para mim.

Meu rosto se moveu por conta própria, na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus lábios tremeram. Tantos anos entre nós. Não. Não seja boba, mulher. Nada mais havia entre nós. Esta era a dúvida: o que vinha depois do nada? A distância, o silêncio, o sumiço, as redes sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, a enteada, a esposa – será que ela era mesmo parecida comigo ou eu é que lembrava o amor da vida dele que ainda não tinha conhecido?

Ele sorriu para mim além das chamas falsas, os olhos límpidos, a boca entreaberta exatamente como alguém que revê uma velha amiga. Velha? Antiga. Dá na mesma.

Meus amigos começaram a se virar na direção das escadas. A mão dele se ergueu numa despedida. Eu respondi com um aceno de cabeça. Meu namorado falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei para trás, ele já não olhava mais. Estava se abaixando para pegar a menininha no colo.

Dou um passo para trás e me sento no banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja, vermelho, preto ou púrpura. Talvez tenha ficado dramático demais. Bem, já está feito. A resposta para a antiga dúvida estava ali. Eu já devia ter aprendido, porém, que o lugar de uma reminiscência jamais é ocupado por uma solução. Assim que repassei mais uma vez a memória, desta vez em velocidade 1.5, a questão novinha em folha me encarou de frente:

Isto que sinto agora é leveza ou vazio?

Maçã


Era uma vez uma Feiticeira que morava em um reino distante e desconjuntado. Sua magia havia transformado aquele lugar em uma cidade eterna, onde tudo o que chegava sem rumo se encontrava. Seus conterrâneos eram o tipo mais simples do povo, que vivia sem senhores e sem rancor, suando com prazer sobre a terra boa e fértil. A Feiticeira e seu castelo assomavam sobre a única colina em meio ao vale, refletindo os tons sombrios e familiares de uma tarde úmida após a manhã de sol e cinco horas de tempestade.

Os aldeões dos burgos vizinhos contavam que a origem do Reino da Tarde Eterna datava de pelo menos sete séculos e a Feiticeira uma vez foi princesa, vitimada pela maldição do mundo de outrora. Por causa disso, quem desejava visitar o lugar o achava inalcançável: existiam histórias sobre conquistadores e expedições que minguaram durante anos no caminho até a colina, embora ela permanecesse do mesmo tamanho no horizonte. O encanto guardara o espaço do reino e esticara o tempo de maneira misteriosa, conforme a vontade de sua soberana.

Os forasteiros que lá chegavam por acaso, voltavam com relatos sobre jardins suspensos, florestas infinitas, gente humilde de bochechas rosadas e música de clarins que enchia as ruas aonde quer que se andasse; e o mais impressionante, a Feiticeira permanecia jovem como no dia em que o Sol brilhou e a tempestade caiu. Diziam que ela possuía o rosto mais estranho que não se podia imaginar: para alguns era decepcionante e comum, mas para outros constituía a perfeita imperfeição, união de traços inesquecíveis.

Um dia chegou o Cavaleiro Perdido, sobre sua montaria cansada, envergando ainda uma armadura com placas faltando. Depois de ser curado pelo dono da Hospedaria de Apenas um Quarto – pois todos os moradores do Reino da Tarde Eterna também eram dotados de grandes habilidades mágicas –, ele pediu para ser recebido pela Feiticeira e esperou pacientemente durante vinte e nove dias sem noite.

Quando finalmente entrou no salão de pedra do castelo ao alto do morro, ele suspirou pesadamente, pois se viu diante da mulher mais bela de sua vida. A certeza de que encontrara seu grilhão após tantas lutas por liberdade – aquela certeza se estabeleceu na boca de seu estômago, de onde não sairia jamais.

Por sua vez, a Feiticeira ergueu os olhos descansados de quem deixara as relações com reis e aristocratas para trás havia muito. Encarou o Cavaleiro Perdido com curiosidade e segurança: era jovem, apesar dos cabelos cor de cinza e das marcas sobre a pele dura de quem enfrentara muitas lidas. E ele ganhou seu respeito, pois carregava a beleza melancólica dos sobreviventes.

Ao longo de uma medida de tempo em que não houve necessidades humanas, eles se sentaram à mesa de mogno do salão principal e conversaram. Em uma única troca, partilharam todas as histórias de que se lembravam. A Feiticeira descobriu que ainda existiam contendas por pedaços de terra que permaneceriam muito além das pessoas que por ela se matavam; e o Cavaleiro constatou que a magia que dobrava o tempo nascia da mulher, que a cada sorriso lhe causava um prazer intenso e doloroso.

Quando ela lhe disse que era hora de partir, ele pediu que lhe permitisse ficar, pois estava apaixonado por ela.

- Não – respondeu a Feiticeira. – É impossível que um estrangeiro viva aqui. Somente os filhos desta terra podem para cá tornar. Forasteiros são permitidos quando seus pés erram o caminho, pois este é o lugar onde o sem rumo se encontra. Contudo, agora deves partir.

- A senhora que é soberana deste ar e desta terra – suplicou ele. – Certamente poderia conceder uma exceção. Rogo-te que devotarei meus dias à senhora e, se a vida eterna aqui me alcançar, ela será tua para bem dispor como queiras. Não posso retornar àquele mundo, porque mesmo que expulses meu corpo, todos os meus pensamentos errariam de volta para ti.

A Feiticeira sorria quando tornou a falar.

- Se quiseres – ela disse. – Podes deixar uma parte de si para trás, como um presente.

Ela apontou para as paredes do salão, nas quais o olhar do Cavaleiro não pousara nem uma vez até então. Lá ele viu incontáveis prateleiras sobre as quais havia caixas, redomas, urnas, estojos e ganchos de onde todo tipo de pedaço pendia.

- Há quem deixe desejos de paz, ameaças vazias, preces... Assim como mechas de cabelo, unhas, dentes, braços fortes que juraram lealdade e sangue... Por algum motivo, os estrangeiros acreditam que o valor do sangue é altíssimo. No entanto, veja: são todos iguais na textura e na cor. De nada serve fora do coração.

- Já tens o meu amor – respondeu o Cavaleiro. – Podes ter também a fonte dele, do mesmo modo.

E assim, na medida que trouxe a tarde seguinte, a Feiticeira encontrou em seu salão uma nova caixa onde se achava o mais lindo e vermelho coração humano que ela já vira. Segurou-o nas mãos como uma grande maçã coberta por caramelo brilhante e sua boca se encheu de água conforme se aproximou da superfície perfeitamente lisa. Entretanto, seus olhos notaram uma carta junto à caixa, que dizia:

“À Feiticeira do Reino da Tarde Eterna,

Eis o coração que te entrego fisicamente, apesar de que tu o obtiveras no momento em que teus olhos de fogo luziram sobre mim. Em tuas mãos o tens, envernizado com o amor que acordaste em minha alma. Por causa disso, se alguma vez teus lábios benditos encontrarem este coração, tocando o amor desgraçado que o vitimou, deverás sucumbir ao malfadado vazio da morte, que acolhe todos os sentimentos não correspondidos.

Esta foi a única maneira de extrair o que querias de mim. Agora estou contigo, conquanto resistas.”

Assim foi que, durante semanas e meses, a Feiticeira procurou não prestar atenção à caixa onde mantivera o lindo coração, disposto sobre uma prateleira qualquer. Não obstante, ele o chamava com a canção do amor dessangrado, com a ternura do que não deve existir, mas insiste.

Finalmente então ela colocou seu reino em ordem, fez os preparativos e decidiu que deveria morrer.

Havia algo de tão correto no coração do Cavaleiro Perdido, que ela se convenceu de que o proibido também lhe pertencia, assim como o final de sua história. Parecia a melhor forma de encontrar o fim, através do supremo prazer daquela carne perfeita.

No instante em que a Feiticeira abriu seus lábios e recebeu entre eles o doce coração – quando seus dentes afundaram nele e sua boca se encheu do sangue quente – no mesmo instante já nada havia. O coração era novamente o Cavaleiro, íntegro à sua frente.

- Aqui me tens, soberana Feiticeira. Eu também usei um feitiço para quebrar tuas regras. O amor com que embalsamei meu coração jamais se separou de mim. Pelo contrário, escondi-me dentro dele à espera da tua libertação. Quando cedestes, quebraste tu mesma à tua lei, correspondendo ao desejo de um estrangeiro e tornando-lhe parte de teu próprio coração. E, mesmo se resistisses, aqui ficaria ao alcance de teus olhos, para o resto da existência, como é minha vontade. Toma-me agora como queiras: devora-me, mastiga-me, retenhas-me ou lance fora os retalhos que não te servem. Se puder pedir-lhe mais ainda, que beije-me novamente e deixe-me viver e morrer entre teus lábios para sempre.

A Feiticeira tomou nas mãos o rosto áspero do Cavaleiro e riu. Tanto havia fugido, para escapar ao mal do mundo, e o mal da guerra trouxe o amor à sua porta. Beijou afinal o Cavaleiro e a magia os uniu definitivamente: ela outra vez princesa, ele a partir de então feiticeiro. O tempo, o espaço, o amor e a mágica reinaram durante a Tarde Eterna e eles nunca mais foram infelizes.