Ela se deitou na
antiga cama, cheirando os lençóis limpos trocados pela mãe na noite anterior. A
janela estava aberta para arejar e por isso o quarto estava dourado. Parecia
uma ironia contra seu estado de espírito, mas ali sempre fora assim, disso
tinha certeza. A pequena cidade das contradições. A primeira havia sido a
diferença entre ela e a irmã.
Aos quinze
anos, Luísa estava apaixonada. Ela fazia a irmã de confessionário, contando
cada detalhe do que sentia e do que fantasiava. A Caçula ouvia, animada, a irmã
mais velha que era sua heroína e modelo. Quando veio a decepção de Luísa, ela
repetiu cada uma de suas lágrimas.
O homem
era duas décadas mais velho e engordara cada uma das ilusões da menina até
comê-la. Então, disse-lhe exatamente isso: "eu já te comi, agora só
preciso palitar os dentes."
A Caçula
sentiu-se envelhecer um ano a cada dia que passava vendo a irmã chorar,
suspirar, xingar, se debater, cortar os braços e pedir para morrer. Na sétima
semana, Luísa pegou o ônibus para a fazenda dos avós, roubou uma cartela de
comprimidos do armário do banheiro e foi encontrada rígida caída contra o vaso
sanitário, horas depois.
A Caçula
nunca soube se ela tinha realmente a intenção de se matar ou se queria apenas
voltar a dormir. Mas se lembrava muito bem da sensação de quando viu seus pais
receberem a notícia, depois de horas esperando pelo pior, ainda magoados por
suas palavras e gestos toda vez que tentavam descobrir o que estava
acontecendo. E eles tentaram muito. Luísa só confiava em sua Caçula e deixou
claro que, para continuar confiando, ela tinha que guardar seu segredo. A criança
lhe foi fiel. E agora estava velando seu corpo na Câmara Mortuária da cidade.
A culpa se
apoderou da menina com a força de um mau espírito. Ela chorou copiosamente
durante sete dias, em que envelheceu outros sete anos. No final, aprendeu sua
primeira lição. A ideia de um assassinato é algo capaz de criar mãos e
sufocar o pescoço da cabeça que a concebe.
Ela criou
mãos quando viu o homem em sua sala de estar, de preto, dizendo seus pêsames ao
senhor Reis, seu colega de trabalho. Como uma reação química, ela sentiu seu
luto derreter e se transformar em ódio ao som da voz do homem e, enquanto o
observava, o mesmo ódio se solidificou em algo frio e cheio de farpas. Um
cristal de desprezo.
O professor
tinha o rosto franzido em pesar, ouvindo os lamentos dos pais da moça que havia
comido e que agora se achava inteiramente digerida. Certamente não se pensava
como o culpado. Era um típico homem de quase quarenta que ainda vivia sua
infância tardia. Não reconhecia responsabilidades. E a menina de treze anos
soube que poderia matar aquele homem.
O plano da
menina não foi simples. Ela deixou que se passassem anos. Começou a escrever
tudo de que se lembrava, a princípio pensando que remontava a figura da irmã,
mas logo percebendo que construía a si mesma enquanto lutava contra a sensação
nova e avassaladora de solidão. Dia após dia ela se deu conta de que primeiro
precisava descrever a realidade para depois traçar o futuro e, assim, sua tinta
se espalhou antes do sangue.
Houve uma
tarde em que ela se apaixonou pela ideia de atrair o professor de Artes até o
laboratório de Química e derreter seu rosto com ácido. Durante uma semana
inteira brincou com a imagem do homem amarrado pelo pé à escada da piscina do
ginásio, perguntando-se se ele realmente sangraria pelos ouvidos e pelo nariz
depois de oitenta e dois segundos. Lamentou diversas vezes que o prédio da
escola só tivesse três andares e jogá-lo do ponto mais alto o deixaria apenas
aleijado. Com o passar do tempo ela se convenceu de que teria que ser rápida,
pois não queria ser pega; pensou se valeria a pena abatê-lo de longe e chegou a
aprender a atirar com seu avô durante as férias do primeiro ano, na fazenda.
Mas armas eram coisas velhas e facilmente rastreáveis. Além disso, mesmo se
seguisse seu devaneio de atirar primeiro em um joelho e depois na cabeça, o
sofrimento duraria muito pouco e ela provavelmente nem o ouviria gritar de uma
distância segura.
Nos dias
piores, ela fantasiava em enfiar o próprio lápis 6B no olho do professor, enquanto
ele se pavoneava para lá e para cá na sala de aula. Era quando captava o
suspiro das colegas, arrastadas pelas palavras rebuscadas, feito peixes numa
rede; quando reconhecia cada maneirismo que Luísa já havia lhe narrado antes: o
sorriso sempre de boca fechada, o rosto muito bem escanhoado e os cabelos
cuidadosamente grisalhos, já há vários anos. Nada mais era do que um ator
representando a própria vida – preso na rede de faz-de-conta infantil que tecia
para as menininhas, fadado a jamais sair daquele estado de mediocridade que erguera
ao redor de si mesmo.
Ela
conhecia o professor como ninguém. Sabia que ele morava com a mãe, uma senhora
magra e bronzeada que ia à mesma igreja dos seus pais. Sabia que ele conseguiu seu
emprego sem ser formado porque a diretoria na época da contratação era formada
apenas por mulheres. Sabia que seu último relacionamento oficial fora uma
história recontada ao infinito em que ele era o noivo apaixonado abandonado no
altar – mas ela descobriu até mesmo que a noiva o largara depois de ser quase
estuprada a duas semanas do casamento. Dali veio a célebre frase “você só quer
me comer e depois palitar os dentes, idiota!”, jogada em sua cara como o
insulto de sua vida. Desde então, ele regurgitava as mesmas palavras em ordens
diferentes sobre cada adolescente que cedia ao seu encanto rasteiro. Ela sabia
que o homem era incapaz de ir além daquilo e, por isso, era digno de pena.
No
entanto, saber exatamente o nível de miséria em que o professor chafurdava em
nada contribuía para o nobre sentimento de perdoar e esquecer. Ela não queria
perdoar o homem que havia fodido o psicológico de sua irmã, além do corpo;
tampouco agia levada por um sentimento vingador, ou para impedir que o sedutor
em série voltasse a atacar e estragasse a vida de mais garotas. O que ela queria
era ver ao menos uma manifestação de emoção que lavasse a grossa camada de hipocrisia
por um instante; quebrar aquela máscara, desfiando o sorriso meloso arrancando
fora cada dente. Provocar o horror naquele ator medíocre.
Foi no
último ano da escola, quando alcançou a idade de Luísa, que ela criou sua cena.
Naquele
ano, ela se colocava na perspectiva da irmã o tempo inteiro e a saudade às
vezes vinha raiada de mágoa; pensava que ela tinha sido egoísta e fraca,
desistindo de tudo por causa de alguém que era tão pouca coisa. Entretanto,
aprendeu a lutar contra esse pensamento e conheceu que a dor possui diferentes
tons. Ela olhava através de sua dor para os pais, que falavam em mudança para a
cidade universitária, para os professores que ressaltavam a importância das
provas finais, para os colegas cheios de planos para o futuro – e cada
banalidade soava como uma badalada do juízo final.
Noite da
formatura. Nenhuma estrela brilhava através das nuvens de chuva de novembro. O
ar condicionado do ginásio, onde a festa foi montada, estava no máximo em vão.
Era uma noite de ânimos agitados e ninguém parecia parar no mesmo lugar. Havia
um clima de vale-tudo no ar.
A ideia de
fazer a festa à fantasia era perfeita para aguçar ainda mais aquela sensação de
agora-ou-nunca. A quadra estava forrada de veludo negro e lanternas de papel
pendiam do teto a espaços irregulares. O tema da festa era “seja quem você
quiser”, mas a pouca luz e a bebida alcóolica contrabandeada estavam
transformando ligeiramente as ideias.
Sóbria, aquela
que viria a se tornar Hórus andava pelo meio dos colegas como se flutuasse em
um sonho. Como não tinha amigos, ninguém sentia sua falta. Seu corpo estava à
mostra, mas o rosto estava coberto e ninguém a reconhecia.
Se havia
um adulto à paisana naquela festa era o professor de Artes, e lá estava ele numa
camisa branca com botões demais abertos, envergando uma máscara de fantasma da
ópera. Sorria, fingindo não sentir o cheiro de álcool do próprio copo, nem ver
o número crescente de alunos se esgueirando em direção aos vestiários. De seu
canto, ele avistou uma super-heroína de capa esvoaçante: pernas através da fina
meia-calça, e depois um corpo no espartilho roxo. O rosto estava meio coberto
por uma máscara, mas ele nem se incomodou em procurar os olhos fortemente
delineados. Se olhasse, talvez percebesse o sorriso que os esticava. Se
olhasse, talvez reconhecesse o monstro que o mirava de soslaio nas aulas dos
últimos anos.
Mas ela
sorria porque sabia que ele não iria olhar. E foi sorrindo, com a boca
escancarada numa silenciosa gargalhada, que ela passou pelo professor e o
convidou a segui-la.
Ela
o esperou na velha sala de Artes, como sempre atulhada de desenhos feios. O
cheiro chegou antes dele. Cheiro de álcool e xarope de fruta que, ela pensou, o
definia muito bem. Apontou para o mezanino, fazendo com que ele sentasse, risonho.
Ele abriu os braços, convidando-a para o seu colo.
Num
gesto rápido, que havia sido treinado todos os dias durante o último ano, ela
sacou a faca do cinto da fantasia e cravou na garganta do professor. A sala
estava escura, mas ela viu o rosto que odiava congelar entre o riso e a
surpresa, a língua estirada comicamente para fora, os olhos esbugalhados.
Lenta, quase carinhosamente, ela afrouxou a mão sobre o cabo da faca,
sentindo-a tesa, presa ao corpo dele. Então girou o cabo, fazendo a lâmina
rodar e abrir caminho para um jato de sangue furioso que encheu sua mão. Não
sabia se o ruído gorgolejante vinha da ferida ou de um grito mal articulado,
mas foi um som que a encheu de emoção. Posicionando-se longe dele, ela puxou a
faca para fora.
O
sangue era negro e caía em profusão. O professor seguia seu rastro, estupefato,
como se assistisse a um filme. A menina observou o espetáculo, estranhamente
entorpecida. Ele sofria. Mas era um sofrimento muito simples, sem consciência
de ser. Talvez ela devesse ter se revelado antes, causado um pouco de medo
nele. Talvez devesse ter falado o nome da irmã antes de atingi-lo. Um bêbado excitado
não era nenhum desafio.
Subitamente
ele caiu para trás, como um mau ator encenando a própria morte. Mas era real. Ele
estremeceu mais um pouco e então ficou imóvel. A menina engoliu em seco,
sentindo os segundos se passarem. Ela planejara, mas não esperava que fosse tão
fácil. Tão rápido.
Aproximou-se,
olhando brevemente para o rosto do professor Otávio. Na morte como na vida,
medíocre. Foi atraída para a grande poça escura. Espalmou as mãos ali, sentindo
o líquido penetrar por baixo das unhas, quente. Na escuridão, viu a própria
pele sumir dentro do sangue. Um arrepio subiu por seus braços e se instalou na
parte de trás da cabeça.
A
sala se iluminou como se fosse dia. Três segundos depois, um trovão quebrou ao
longe e a música alta que vinha do salão se calou. Com o coração disparado, a
menina registrou apenas as cores: o branco da camisa, o vermelho escuro sobre o
chão, o quase cinza do rosto de olhos bem abertos, o verde da lousa vazia à
frente. Depois, o preto absoluto e o silêncio.
O
clamor da festa se ergueu imediatamente, junto ao som de água que começou a
cair como se tivessem aberto uma torneira. A menina deu meia volta e saiu da
sala. Parada na beira do pátio, estendeu os braços e a chuva lavou o sangue
lentamente.