Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Capítulo VI - Podre


Ela se deitou na antiga cama, cheirando os lençóis limpos trocados pela mãe na noite anterior. A janela estava aberta para arejar e por isso o quarto estava dourado. Parecia uma ironia contra seu estado de espírito, mas ali sempre fora assim, disso tinha certeza. A pequena cidade das contradições. A primeira havia sido a diferença entre ela e a irmã.
Aos quinze anos, Luísa estava apaixonada. Ela fazia a irmã de confessionário, contando cada detalhe do que sentia e do que fantasiava. A Caçula ouvia, animada, a irmã mais velha que era sua heroína e modelo. Quando veio a decepção de Luísa, ela repetiu cada uma de suas lágrimas.
O homem era duas décadas mais velho e engordara cada uma das ilusões da menina até comê-la. Então, disse-lhe exatamente isso: "eu já te comi, agora só preciso palitar os dentes."
A Caçula sentiu-se envelhecer um ano a cada dia que passava vendo a irmã chorar, suspirar, xingar, se debater, cortar os braços e pedir para morrer. Na sétima semana, Luísa pegou o ônibus para a fazenda dos avós, roubou uma cartela de comprimidos do armário do banheiro e foi encontrada rígida caída contra o vaso sanitário, horas depois.
A Caçula nunca soube se ela tinha realmente a intenção de se matar ou se queria apenas voltar a dormir. Mas se lembrava muito bem da sensação de quando viu seus pais receberem a notícia, depois de horas esperando pelo pior, ainda magoados por suas palavras e gestos toda vez que tentavam descobrir o que estava acontecendo. E eles tentaram muito. Luísa só confiava em sua Caçula e deixou claro que, para continuar confiando, ela tinha que guardar seu segredo. A criança lhe foi fiel. E agora estava velando seu corpo na Câmara Mortuária da cidade.
A culpa se apoderou da menina com a força de um mau espírito. Ela chorou copiosamente durante sete dias, em que envelheceu outros sete anos. No final, aprendeu sua primeira lição. A ideia de um assassinato é algo capaz de criar mãos e sufocar o pescoço da cabeça que a concebe.
Ela criou mãos quando viu o homem em sua sala de estar, de preto, dizendo seus pêsames ao senhor Reis, seu colega de trabalho. Como uma reação química, ela sentiu seu luto derreter e se transformar em ódio ao som da voz do homem e, enquanto o observava, o mesmo ódio se solidificou em algo frio e cheio de farpas. Um cristal de desprezo.
O professor tinha o rosto franzido em pesar, ouvindo os lamentos dos pais da moça que havia comido e que agora se achava inteiramente digerida. Certamente não se pensava como o culpado. Era um típico homem de quase quarenta que ainda vivia sua infância tardia. Não reconhecia responsabilidades. E a menina de treze anos soube que poderia matar aquele homem.
O plano da menina não foi simples. Ela deixou que se passassem anos. Começou a escrever tudo de que se lembrava, a princípio pensando que remontava a figura da irmã, mas logo percebendo que construía a si mesma enquanto lutava contra a sensação nova e avassaladora de solidão. Dia após dia ela se deu conta de que primeiro precisava descrever a realidade para depois traçar o futuro e, assim, sua tinta se espalhou antes do sangue.
Houve uma tarde em que ela se apaixonou pela ideia de atrair o professor de Artes até o laboratório de Química e derreter seu rosto com ácido. Durante uma semana inteira brincou com a imagem do homem amarrado pelo pé à escada da piscina do ginásio, perguntando-se se ele realmente sangraria pelos ouvidos e pelo nariz depois de oitenta e dois segundos. Lamentou diversas vezes que o prédio da escola só tivesse três andares e jogá-lo do ponto mais alto o deixaria apenas aleijado. Com o passar do tempo ela se convenceu de que teria que ser rápida, pois não queria ser pega; pensou se valeria a pena abatê-lo de longe e chegou a aprender a atirar com seu avô durante as férias do primeiro ano, na fazenda. Mas armas eram coisas velhas e facilmente rastreáveis. Além disso, mesmo se seguisse seu devaneio de atirar primeiro em um joelho e depois na cabeça, o sofrimento duraria muito pouco e ela provavelmente nem o ouviria gritar de uma distância segura.
Nos dias piores, ela fantasiava em enfiar o próprio lápis 6B no olho do professor, enquanto ele se pavoneava para lá e para cá na sala de aula. Era quando captava o suspiro das colegas, arrastadas pelas palavras rebuscadas, feito peixes numa rede; quando reconhecia cada maneirismo que Luísa já havia lhe narrado antes: o sorriso sempre de boca fechada, o rosto muito bem escanhoado e os cabelos cuidadosamente grisalhos, já há vários anos. Nada mais era do que um ator representando a própria vida – preso na rede de faz-de-conta infantil que tecia para as menininhas, fadado a jamais sair daquele estado de mediocridade que erguera ao redor de si mesmo.
Ela conhecia o professor como ninguém. Sabia que ele morava com a mãe, uma senhora magra e bronzeada que ia à mesma igreja dos seus pais. Sabia que ele conseguiu seu emprego sem ser formado porque a diretoria na época da contratação era formada apenas por mulheres. Sabia que seu último relacionamento oficial fora uma história recontada ao infinito em que ele era o noivo apaixonado abandonado no altar – mas ela descobriu até mesmo que a noiva o largara depois de ser quase estuprada a duas semanas do casamento. Dali veio a célebre frase “você só quer me comer e depois palitar os dentes, idiota!”, jogada em sua cara como o insulto de sua vida. Desde então, ele regurgitava as mesmas palavras em ordens diferentes sobre cada adolescente que cedia ao seu encanto rasteiro. Ela sabia que o homem era incapaz de ir além daquilo e, por isso, era digno de pena.
No entanto, saber exatamente o nível de miséria em que o professor chafurdava em nada contribuía para o nobre sentimento de perdoar e esquecer. Ela não queria perdoar o homem que havia fodido o psicológico de sua irmã, além do corpo; tampouco agia levada por um sentimento vingador, ou para impedir que o sedutor em série voltasse a atacar e estragasse a vida de mais garotas. O que ela queria era ver ao menos uma manifestação de emoção que lavasse a grossa camada de hipocrisia por um instante; quebrar aquela máscara, desfiando o sorriso meloso arrancando fora cada dente. Provocar o horror naquele ator medíocre.
Foi no último ano da escola, quando alcançou a idade de Luísa, que ela criou sua cena.
Naquele ano, ela se colocava na perspectiva da irmã o tempo inteiro e a saudade às vezes vinha raiada de mágoa; pensava que ela tinha sido egoísta e fraca, desistindo de tudo por causa de alguém que era tão pouca coisa. Entretanto, aprendeu a lutar contra esse pensamento e conheceu que a dor possui diferentes tons. Ela olhava através de sua dor para os pais, que falavam em mudança para a cidade universitária, para os professores que ressaltavam a importância das provas finais, para os colegas cheios de planos para o futuro – e cada banalidade soava como uma badalada do juízo final.
Noite da formatura. Nenhuma estrela brilhava através das nuvens de chuva de novembro. O ar condicionado do ginásio, onde a festa foi montada, estava no máximo em vão. Era uma noite de ânimos agitados e ninguém parecia parar no mesmo lugar. Havia um clima de vale-tudo no ar.
A ideia de fazer a festa à fantasia era perfeita para aguçar ainda mais aquela sensação de agora-ou-nunca. A quadra estava forrada de veludo negro e lanternas de papel pendiam do teto a espaços irregulares. O tema da festa era “seja quem você quiser”, mas a pouca luz e a bebida alcóolica contrabandeada estavam transformando ligeiramente as ideias.
Sóbria, aquela que viria a se tornar Hórus andava pelo meio dos colegas como se flutuasse em um sonho. Como não tinha amigos, ninguém sentia sua falta. Seu corpo estava à mostra, mas o rosto estava coberto e ninguém a reconhecia.
Se havia um adulto à paisana naquela festa era o professor de Artes, e lá estava ele numa camisa branca com botões demais abertos, envergando uma máscara de fantasma da ópera. Sorria, fingindo não sentir o cheiro de álcool do próprio copo, nem ver o número crescente de alunos se esgueirando em direção aos vestiários. De seu canto, ele avistou uma super-heroína de capa esvoaçante: pernas através da fina meia-calça, e depois um corpo no espartilho roxo. O rosto estava meio coberto por uma máscara, mas ele nem se incomodou em procurar os olhos fortemente delineados. Se olhasse, talvez percebesse o sorriso que os esticava. Se olhasse, talvez reconhecesse o monstro que o mirava de soslaio nas aulas dos últimos anos.
Mas ela sorria porque sabia que ele não iria olhar. E foi sorrindo, com a boca escancarada numa silenciosa gargalhada, que ela passou pelo professor e o convidou a segui-la.

Ela o esperou na velha sala de Artes, como sempre atulhada de desenhos feios. O cheiro chegou antes dele. Cheiro de álcool e xarope de fruta que, ela pensou, o definia muito bem. Apontou para o mezanino, fazendo com que ele sentasse, risonho. Ele abriu os braços, convidando-a para o seu colo.
Num gesto rápido, que havia sido treinado todos os dias durante o último ano, ela sacou a faca do cinto da fantasia e cravou na garganta do professor. A sala estava escura, mas ela viu o rosto que odiava congelar entre o riso e a surpresa, a língua estirada comicamente para fora, os olhos esbugalhados. Lenta, quase carinhosamente, ela afrouxou a mão sobre o cabo da faca, sentindo-a tesa, presa ao corpo dele. Então girou o cabo, fazendo a lâmina rodar e abrir caminho para um jato de sangue furioso que encheu sua mão. Não sabia se o ruído gorgolejante vinha da ferida ou de um grito mal articulado, mas foi um som que a encheu de emoção. Posicionando-se longe dele, ela puxou a faca para fora.
O sangue era negro e caía em profusão. O professor seguia seu rastro, estupefato, como se assistisse a um filme. A menina observou o espetáculo, estranhamente entorpecida. Ele sofria. Mas era um sofrimento muito simples, sem consciência de ser. Talvez ela devesse ter se revelado antes, causado um pouco de medo nele. Talvez devesse ter falado o nome da irmã antes de atingi-lo. Um bêbado excitado não era nenhum desafio.
Subitamente ele caiu para trás, como um mau ator encenando a própria morte. Mas era real. Ele estremeceu mais um pouco e então ficou imóvel. A menina engoliu em seco, sentindo os segundos se passarem. Ela planejara, mas não esperava que fosse tão fácil. Tão rápido.
Aproximou-se, olhando brevemente para o rosto do professor Otávio. Na morte como na vida, medíocre. Foi atraída para a grande poça escura. Espalmou as mãos ali, sentindo o líquido penetrar por baixo das unhas, quente. Na escuridão, viu a própria pele sumir dentro do sangue. Um arrepio subiu por seus braços e se instalou na parte de trás da cabeça.
A sala se iluminou como se fosse dia. Três segundos depois, um trovão quebrou ao longe e a música alta que vinha do salão se calou. Com o coração disparado, a menina registrou apenas as cores: o branco da camisa, o vermelho escuro sobre o chão, o quase cinza do rosto de olhos bem abertos, o verde da lousa vazia à frente. Depois, o preto absoluto e o silêncio.
O clamor da festa se ergueu imediatamente, junto ao som de água que começou a cair como se tivessem aberto uma torneira. A menina deu meia volta e saiu da sala. Parada na beira do pátio, estendeu os braços e a chuva lavou o sangue lentamente.