Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Capítulo II - A posição mais poderosa é de joelhos


A chuva continuava a cair com força enquanto Bianca e Serafim cochilavam. Ela não sabia ao certo quanto tempo se passou até conseguir levantar e ir ao banheiro. Quando finalmente se mexeu, sentiu os ecos em seu corpo: as pontas dos dedos pulsavam, o rosto estava quente e suor havia se formado entre os seios.
A água caiu reconfortante. Hoje ela não precisava se limpar, apenas se aquecer.
Serafim despertou ao sentir ela voltar, uma presença de calor e perfume.
- Olá senhor Leal. Confortável?
Ele olhou para si mesmo e viu que estava parcialmente equilibrado na cama, com uma perna e um braço pendendo para fora e, é claro, inteiramente nu. Bianca estava se divertindo.
Ele grunhiu enquanto tentava alcançar o lençol, também sentindo os ecos através de seu corpo: as pernas doíam, a pele repuxava, o cabelo estava grudado à nuca. Estava muito cansado.
Mas também, percebeu satisfeito, estava muito feliz.
- Você tem muitos livros – comentou, reparando no quarto. Havia duas prateleiras enormes, uma de cada lado, cheias do chão ao teto.
Hórus sorriu.
- São meus troféus – falou, simplesmente.
Ela não iria dizer que havia saqueado dos homens que matara.
- Já leu todos?
- Faltam alguns ali de baixo – apontou, achando graça ao ver ele apertar os olhos para tentar ler algum dos títulos no escuro.
- “A interpretação dos sonhos”, de Freud.
- Bom livro.
- Não é muito velho?
- Todos os livros são velhos.
- O que aprendeu com ele?
Ela abriu um sorriso brilhante.
- O ser humano é formado por pulsões. Freud identificou as duas principais: pulsão sexual e pulsão de morte. A vida em sociedade consiste em lidar com essas pulsões, o que ele chamou de sublimação.
- Isso não é passar direto do estado sólido pro gasoso?
- Sim – ela riu – Só que na química. Dentro da psicanálise, ganha outro sentido. Tem a ver com o conceito de sublime na arte.
Bianca parou de falar. Estava ficando muito técnica e ele iria dormir a qualquer momento.
Serafim, por outro lado, sorria. Ele gostava de mulheres inteligentes. Tinha a impressão de que ela poderia enrolá-lo ao redor do dedo mindinho se quisesse, e isso o deixava estranhamente satisfeito.
- Então – disse ele – Gostaria de me analisar?
O sorriso de Bianca aumentou.
- Claro. Conte-me sobre a sua mãe.
Serafim gargalhou, enchendo o quarto com sua voz de trovão.
- Podemos começar por outro lugar? Não quero falar da minha mãe enquanto estou pelado.
- Por que não? Você saiu dela assim.
- Meu Deus – ele riu, passando uma das mãos pelo rosto – Tudo bem. Prepare-se, você pode se assustar.
Bianca ergueu as sobrancelhas e mordeu o lábio para parar de rir.
- Eu tenho quatro personalidades.
Por um momento, a chuva foi o único som no quarto.
- Quatro? – repetiu ela.
- Quatro.
- Certo... Conte sobre elas.
- Bom... No início eu pensei que eram só dois. O bom e o mau. Mas aí o bom passou a ter traços do mau também, e vice-versa.
- Mas você alterna entre eles?
- Eu tento me manter sempre no bom com um traço. O todo bom é um idiota. O mau com traço bom é instável. E o mau... autoexplicativo.
- Fascinante! E como se controla?
- É uma luta diária, moça.
- Qual deles está falando comigo agora?
- Agora? O bom, eu acho.
- O que o mau faz para ser mau?
- Se eu te contasse, ele ia te matar.
- Só matar?
- Como assim, “só”?
Bianca deu de ombros.
- Há muitas maneiras de matar alguém. O que interessa é o que precede. Eu iria sentir dor?
Serafim estava de boca aberta, tentado a sacudi-la pelos ombros.
- Aliás, você sabia que os franceses chamam o orgasmo de pequena morte?
Ele sentiu aquelas palavras como um novo eco em seu corpo.
- O mau é... animalesco.
- Como um animal ou uma besta? – ela indagou, rindo de novo. Ele a acompanhou e quis estender a mão para tocá-la, mas não se sentiu seguro. Pensou como era estranho ter acabado de fazer sexo violento com ela e não ter coragem de acariciá-la.
A chuva havia parado.
- Quero conhecer o mau – anunciou Bianca.
- Como?
- Vamos marcar um encontro.
Ele passou a mão pelo rosto novamente. Aquela mulher era louca, ou ele que era?
- Por favor – pediu ela, com a voz rouca de sono.
E ele soube, com uma clareza dolorosa, quem era o louco.

Uma semana havia se passado desde o encontro de Bianca e Serafim. Os dias que seguiram foram gelados e o céu permaneceu cinza, exatamente como Hórus gostava. No entanto, o tempo em si estava passando de forma estranha. Primeiro se arrastava... logo que se distraía, porém, via que horas inteiras tinham escorrido entre seus dedos.
Ela não tinha certeza se gostava de como se sentia, especialmente quando lembrava da última imagem que guardara de Serafim. Ele estava com um pé no degrau de seu prédio e outro na calçada, e seus olhos eram a única luz na manhã cinzenta. O beijo da despedida tinha gosto de café.
Não conseguia se lembrar da última vez que manteve uma relação sem estar dentro de uma trama. Esta era sua estratégia desde que se filiara ao Up and Date, o rol oficial das cabeças a prêmio: o bom e velho jogo de sedução. Para alguém que não costumava encarar a persona completa que havia se tornado, era cômodo trocar de personalidade conforme o cliente. Não à toa, seu codinome Hórus havia dado origem à palavra whore que significava “prostituta” na antiga língua inglesa.
Todavia, a noite de sábado recebeu Bianca com boas notícias. Havia uma cabeça a prêmio.
Uma nova missão, por banal que fosse, era o que precisava para evitar pensar demais no homem com nome de anjo. O problema era que não podia pensar nele sem cair na tentação de preencher as lacunas com suas próprias ideias. Cedo demais, ela se deu conta de que não sabia quase nada sobre ele além da história extraordinária das quatro personalidades, e aquilo poderia ser apenas uma mentira inventada para parecer mais interessante.
Algumas pessoas eram masoquistas, outras possuíam múltipla personalidade.
Em um dos vazios de sua semana, teve a ideia de encarar o papel em branco mais uma vez. Sabia o que queria escrever, mas não fazia ideia de como começar. Quando o celular acendeu com a mensagem da nova missão, veio encontrá-la intrigada e frustrada.
Não era um caso de nível gold. Apenas um predador sexual, mero estuprador de viela nível dois. Nem se preocupou em traçar um plano – trocou de roupa, pegou sua querida faca e saiu.
Hórus se postou pacientemente entre as paredes escuras de fuligem de um beco no Centro da cidade. Segundo o gráfico anexado à mensagem da missão, ali era o ponto favorito de seu alvo. Todos os seus doze ataques ocorreram naquele quarteirão e, de acordo com o padrão, ele deveria passar por ali em algum momento.
Havia pilhas de lixo em toda parte, alcançando altura para serem carbonizadas assim que o tempo estivesse menos úmido. Restos de comida e bugigangas mofavam sob a água que caía das roupas mal torcidas nos varais, vários metros acima. Ela respirava devagar, distraindo-se do nojo repassando as informações do anúncio. Naquele lugar meia dúzia de inocentes morreram. Um lugar igual a tantos outros, vítimas iguais a tantas outras, nada de especial nem de grandioso. Como aqueles restos, pilhas de mortes estúpidas. Ela esperava tranquila, lembrando-se que metade das vítimas resistiram, e o destino destas era o pior.
Lá estava ele.
Homem de meia idade, esquálido, sem roupas por baixo do casaco acabado que vestia. O pouco de pele que não estava impregnada de sujeira brilhava de suor, muito branca. Hórus repassou a vaga descrição do anúncio, mas com sua experiência poderia reconhecer o tipo somente pelo jeito de andar.
Respirou rápido, fingindo estar assustada. A cabeça do homem se virou no mesmo instante. Encurralada entre a parede e o lixo, Hórus viu o homem se aproximar. A respiração dele como a de um bicho, guiando-se pelo cheiro de sangue, ignorando a carniça repulsiva ao redor. Esperou ele chegar onde queria, encarando-o pálida e trêmula, como uma vela na escuridão. Mal e mal, ela distinguiu seu rosto, tão sujo quanto os dentes arreganhados em sua direção.
Então ela sorriu.
Em um único movimento longo e gracioso – mas, sobretudo, fácil – a mão da faca atacou. E o jato exato veio ao seu encontro mais uma vez.
Hórus deitou a cabeça para trás, a boca entreaberta, percebendo o familiar gosto de sangue no ar, apreciando o líquido quente escorrer sobre sua pele gelada de suor. Tinha bastante certeza de que gostava daquela sensação.
O homem caíra a seus pés, sacudindo-se, espalhando o lixo ao redor. Hórus ainda sorria.
- Isso mesmo, isso mesmo. Faça sua cama e deite-se nela!
O vento balançava os varais, filtrando a luz da lua e dos condomínios até o beco lá embaixo. Era um homem de braços e pernas abertos no meio de uma massa de restos, como um anjo sujo, lavado pelo próprio sangue. Agora, era apenas um corpo.

O sentimento que levou Hórus de volta à casa era simples e brilhante: euforia. Ela carregava a alegria dentro de si. Ao entrar, livrou-se do cachecol que escondia a mancha de sangue e, com os dedos vermelhos, escreveu em um frenesi. Encheu uma página antes que o sentimento desbotasse, dando lugar a um estado de espírito muito mais grave do que se lembrava de sentir havia tempos.
Passou um longo minuto contemplando o papel finalmente preenchido – e seu peito estava novamente pesado, como o de uma mulher que acabara de matar alguém: ela havia feito poesia.

Noite passada sonhei com você antes mesmo de dormir
A minha angústia me levou aonde você estava
E, naquele espaço impossível,
“nós” começamos a existir.

Noite passada dormi nos seus braços
Sobre o seu peito
Sua respiração como meu lençol

E você esteve
Bem aqui
Onde jamais esteve
Forte e simples
Como uma canção de ninar

Noite passada eu tive você
Sobre o meu peito
Bem no meio dos meus seios,
Onde é o seu lugar.

Noite passada eu vi você por inteiro
E tudo o que você é
Veio à vida dentro de mim
Quatro mãos estendidas:
O início, o meio, o mal e o fim

E você estava
Bem aqui
Onde deveria estar:
Cabeças e dentes
Em coro com meu sangue
Até o meu despertar.

Ela odiava poesia. Era a forma de literatura mais traiçoeira que existia. Escrever era sublimar seus piores impulsos para tornar-se leve. Hórus sentia que poderia exorcizar o pior de si mesma se escrevesse regularmente. Em vez de matar, escrever. Era este o plano.
Mas poesia funcionava de forma inteiramente diferente. Não era um ato consciente. Era uma descarga. Em vez de exorcismo, era como ser deliberadamente possuída pela parte de si que ela mais temia: a que tinha sentimentos.
Deu as costas ao papel e perambulou pela sala. Sua primeira vontade era rasgar o poema, jogar os pedaços no vaso sanitário e esquecer completamente que tinha produzido qualquer coisa. Mas Hórus não era uma covarde. Ela iria encarar sua ação – e sua arte – como sempre fazia, de maneira fria.
Seu rosto se contorceu numa careta amarga. Aquele era justamente o problema: não havia como lidar com poesia de maneira fria. Ela poderia renegar as palavras, mudar a ordem de alguns versos, trocar o tempo verbal para conseguir rimas e organizar tudo em decassílabos iâmbicos, mas a verdade permaneceria lá. Ela estava com uma saudade assassina de Serafim.