A
chuva continuava a cair com força enquanto Bianca e Serafim cochilavam. Ela não
sabia ao certo quanto tempo se passou até conseguir levantar e ir ao banheiro.
Quando finalmente se mexeu, sentiu os ecos em seu corpo: as pontas dos dedos
pulsavam, o rosto estava quente e suor havia se formado entre os seios.
A
água caiu reconfortante. Hoje ela não precisava se limpar, apenas se aquecer.
Serafim
despertou ao sentir ela voltar, uma presença de calor e perfume.
-
Olá senhor Leal. Confortável?
Ele
olhou para si mesmo e viu que estava parcialmente equilibrado na cama, com uma
perna e um braço pendendo para fora e, é claro, inteiramente nu. Bianca estava
se divertindo.
Ele
grunhiu enquanto tentava alcançar o lençol, também sentindo os ecos através de
seu corpo: as pernas doíam, a pele repuxava, o cabelo estava grudado à nuca.
Estava muito cansado.
Mas
também, percebeu satisfeito, estava muito feliz.
-
Você tem muitos livros – comentou, reparando no quarto. Havia duas prateleiras
enormes, uma de cada lado, cheias do chão ao teto.
Hórus
sorriu.
-
São meus troféus – falou, simplesmente.
Ela
não iria dizer que havia saqueado dos homens que matara.
-
Já leu todos?
-
Faltam alguns ali de baixo – apontou, achando graça ao ver ele apertar os olhos
para tentar ler algum dos títulos no escuro.
-
“A interpretação dos sonhos”, de Freud.
-
Bom livro.
-
Não é muito velho?
-
Todos os livros são velhos.
-
O que aprendeu com ele?
Ela
abriu um sorriso brilhante.
-
O ser humano é formado por pulsões. Freud identificou as duas principais:
pulsão sexual e pulsão de morte. A vida em sociedade consiste em lidar com
essas pulsões, o que ele chamou de sublimação.
-
Isso não é passar direto do estado sólido pro gasoso?
-
Sim – ela riu – Só que na química. Dentro da psicanálise, ganha outro sentido.
Tem a ver com o conceito de sublime na arte.
Bianca
parou de falar. Estava ficando muito técnica e ele iria dormir a qualquer
momento.
Serafim,
por outro lado, sorria. Ele gostava de mulheres inteligentes. Tinha a impressão
de que ela poderia enrolá-lo ao redor do dedo mindinho se quisesse, e isso o deixava
estranhamente satisfeito.
-
Então – disse ele – Gostaria de me analisar?
O
sorriso de Bianca aumentou.
-
Claro. Conte-me sobre a sua mãe.
Serafim
gargalhou, enchendo o quarto com sua voz de trovão.
-
Podemos começar por outro lugar? Não quero falar da minha mãe enquanto estou
pelado.
-
Por que não? Você saiu dela assim.
-
Meu Deus – ele riu, passando uma das mãos pelo rosto – Tudo bem. Prepare-se,
você pode se assustar.
Bianca
ergueu as sobrancelhas e mordeu o lábio para parar de rir.
-
Eu tenho quatro personalidades.
Por
um momento, a chuva foi o único som no quarto.
-
Quatro? – repetiu ela.
-
Quatro.
-
Certo... Conte sobre elas.
-
Bom... No início eu pensei que eram só dois. O bom e o mau. Mas aí o bom passou
a ter traços do mau também, e vice-versa.
-
Mas você alterna entre eles?
-
Eu tento me manter sempre no bom com um traço. O todo bom é um idiota. O mau
com traço bom é instável. E o mau... autoexplicativo.
-
Fascinante! E como se controla?
-
É uma luta diária, moça.
-
Qual deles está falando comigo agora?
-
Agora? O bom, eu acho.
-
O que o mau faz para ser mau?
-
Se eu te contasse, ele ia te matar.
-
Só matar?
-
Como assim, “só”?
Bianca
deu de ombros.
-
Há muitas maneiras de matar alguém. O que interessa é o que precede. Eu iria
sentir dor?
Serafim
estava de boca aberta, tentado a sacudi-la pelos ombros.
-
Aliás, você sabia que os franceses chamam o orgasmo de pequena morte?
Ele
sentiu aquelas palavras como um novo eco em seu corpo.
-
O mau é... animalesco.
-
Como um animal ou uma besta? – ela indagou, rindo de novo. Ele a acompanhou e
quis estender a mão para tocá-la, mas não se sentiu seguro. Pensou como era
estranho ter acabado de fazer sexo violento com ela e não ter coragem de
acariciá-la.
A
chuva havia parado.
-
Quero conhecer o mau – anunciou Bianca.
-
Como?
-
Vamos marcar um encontro.
Ele
passou a mão pelo rosto novamente. Aquela mulher era louca, ou ele que era?
-
Por favor – pediu ela, com a voz rouca de sono.
E
ele soube, com uma clareza dolorosa, quem era o louco.
Uma
semana havia se passado desde o encontro de Bianca e Serafim. Os dias que
seguiram foram gelados e o céu permaneceu cinza, exatamente como Hórus gostava.
No entanto, o tempo em si estava passando de forma estranha. Primeiro se
arrastava... logo que se distraía, porém, via que horas inteiras tinham
escorrido entre seus dedos.
Ela
não tinha certeza se gostava de como se sentia, especialmente quando lembrava
da última imagem que guardara de Serafim. Ele estava com um pé no degrau de seu
prédio e outro na calçada, e seus olhos eram a única luz na manhã cinzenta. O
beijo da despedida tinha gosto de café.
Não
conseguia se lembrar da última vez que manteve uma relação sem estar dentro de
uma trama. Esta era sua estratégia desde que se filiara ao Up and Date, o rol
oficial das cabeças a prêmio: o bom e velho jogo de sedução. Para alguém que
não costumava encarar a persona completa que havia se tornado, era cômodo
trocar de personalidade conforme o cliente. Não à toa, seu codinome Hórus havia
dado origem à palavra whore que significava “prostituta” na antiga
língua inglesa.
Todavia,
a noite de sábado recebeu Bianca com boas notícias. Havia uma cabeça a prêmio.
Uma
nova missão, por banal que fosse, era o que precisava para evitar pensar demais
no homem com nome de anjo. O problema era que não podia pensar nele sem cair na
tentação de preencher as lacunas com suas próprias ideias. Cedo demais, ela se
deu conta de que não sabia quase nada sobre ele além da história extraordinária
das quatro personalidades, e aquilo poderia ser apenas uma mentira inventada
para parecer mais interessante.
Algumas
pessoas eram masoquistas, outras possuíam múltipla personalidade.
Em
um dos vazios de sua semana, teve a ideia de encarar o papel em branco mais uma
vez. Sabia o que queria escrever, mas não fazia ideia de como começar. Quando o
celular acendeu com a mensagem da nova missão, veio encontrá-la intrigada e
frustrada.
Não
era um caso de nível gold. Apenas um predador sexual, mero estuprador de viela
nível dois. Nem se preocupou em traçar um plano – trocou de roupa, pegou sua
querida faca e saiu.
Hórus
se postou pacientemente entre as paredes escuras de fuligem de um beco no
Centro da cidade. Segundo o gráfico anexado à mensagem da missão, ali era o
ponto favorito de seu alvo. Todos os seus doze ataques ocorreram naquele
quarteirão e, de acordo com o padrão, ele deveria passar por ali em algum
momento.
Havia
pilhas de lixo em toda parte, alcançando altura para serem carbonizadas assim
que o tempo estivesse menos úmido. Restos de comida e bugigangas mofavam sob a
água que caía das roupas mal torcidas nos varais, vários metros acima. Ela
respirava devagar, distraindo-se do nojo repassando as informações do anúncio.
Naquele lugar meia dúzia de inocentes morreram. Um lugar igual a tantos outros,
vítimas iguais a tantas outras, nada de especial nem de grandioso. Como aqueles
restos, pilhas de mortes estúpidas. Ela esperava tranquila, lembrando-se que
metade das vítimas resistiram, e o destino destas era o pior.
Lá
estava ele.
Homem
de meia idade, esquálido, sem roupas por baixo do casaco acabado que vestia. O
pouco de pele que não estava impregnada de sujeira brilhava de suor, muito
branca. Hórus repassou a vaga descrição do anúncio, mas com sua experiência
poderia reconhecer o tipo somente pelo jeito de andar.
Respirou
rápido, fingindo estar assustada. A cabeça do homem se virou no mesmo instante.
Encurralada entre a parede e o lixo, Hórus viu o homem se aproximar. A respiração
dele como a de um bicho, guiando-se pelo cheiro de sangue, ignorando a carniça
repulsiva ao redor. Esperou ele chegar onde queria, encarando-o pálida e
trêmula, como uma vela na escuridão. Mal e mal, ela distinguiu seu rosto, tão
sujo quanto os dentes arreganhados em sua direção.
Então
ela sorriu.
Em
um único movimento longo e gracioso – mas, sobretudo, fácil – a mão da faca atacou. E o jato exato veio ao seu encontro
mais uma vez.
Hórus
deitou a cabeça para trás, a boca entreaberta, percebendo o familiar gosto de
sangue no ar, apreciando o líquido quente escorrer sobre sua pele gelada de
suor. Tinha bastante certeza de que gostava daquela sensação.
O
homem caíra a seus pés, sacudindo-se, espalhando o lixo ao redor. Hórus ainda
sorria.
-
Isso mesmo, isso mesmo. Faça sua cama e deite-se nela!
O
vento balançava os varais, filtrando a luz da lua e dos condomínios até o beco
lá embaixo. Era um homem de braços e pernas abertos no meio de uma massa de
restos, como um anjo sujo, lavado pelo próprio sangue. Agora, era apenas um
corpo.
O
sentimento que levou Hórus de volta à casa era simples e brilhante: euforia.
Ela carregava a alegria dentro de si. Ao entrar, livrou-se do cachecol que
escondia a mancha de sangue e, com os dedos vermelhos, escreveu em um frenesi.
Encheu uma página antes que o sentimento desbotasse, dando lugar a um estado de
espírito muito mais grave do que se lembrava de sentir havia tempos.
Passou
um longo minuto contemplando o papel finalmente preenchido – e seu peito estava
novamente pesado, como o de uma mulher que acabara de matar alguém: ela havia
feito poesia.
Noite passada
sonhei com você antes mesmo de dormir
A minha angústia me
levou aonde você estava
E, naquele espaço
impossível,
“nós” começamos a
existir.
Noite passada dormi
nos seus braços
Sobre o seu peito
Sua respiração como
meu lençol
E você esteve
Bem aqui
Onde jamais esteve
Forte e simples
Como uma canção de
ninar
Noite passada eu
tive você
Sobre o meu peito
Bem no meio dos
meus seios,
Onde é o seu lugar.
Noite passada eu vi
você por inteiro
E tudo o que você é
Veio à vida dentro
de mim
Quatro mãos
estendidas:
O início, o meio, o
mal e o fim
E você estava
Bem aqui
Onde deveria estar:
Cabeças e dentes
Em coro com meu
sangue
Até o meu
despertar.
Ela
odiava poesia. Era a forma de literatura mais traiçoeira que existia. Escrever
era sublimar seus piores impulsos para tornar-se leve. Hórus sentia que poderia
exorcizar o pior de si mesma se escrevesse regularmente. Em vez de matar,
escrever. Era este o plano.
Mas
poesia funcionava de forma inteiramente diferente. Não era um ato consciente.
Era uma descarga. Em vez de exorcismo, era como ser deliberadamente possuída
pela parte de si que ela mais temia: a que tinha sentimentos.
Deu
as costas ao papel e perambulou pela sala. Sua primeira vontade era rasgar o
poema, jogar os pedaços no vaso sanitário e esquecer completamente que tinha produzido
qualquer coisa. Mas Hórus não era uma covarde. Ela iria encarar sua ação – e
sua arte – como sempre fazia, de maneira fria.
Seu
rosto se contorceu numa careta amarga. Aquele era justamente o problema: não
havia como lidar com poesia de maneira fria. Ela poderia renegar as palavras,
mudar a ordem de alguns versos, trocar o tempo verbal para conseguir rimas e organizar
tudo em decassílabos iâmbicos, mas a verdade permaneceria lá. Ela estava com
uma saudade assassina de Serafim.