O inspetor
resolveu deixar de lado o bloco de papel e a caneta e cruzou as mãos por cima
da mesa, encarando a detenta de máxima periculosidade. Era uma mulher muito
jovem, ou assim lhe parecia, conhecendo sua ficha de antemão. Alguém que
retalhou quase metade dos homens da penitenciária municipal, com uma faca e
requintes de crueldade, deveria ser um pouco mais velha, ter um rosto mais
duro. Mas ele sabia que estava tentando justificar
a maldade para si mesmo, mais uma vez. Depois de quase dez anos em sua
profissão, ele já devia ter pegado uma certa manha para lidar com o tipo de
gente que serve de inspiração para histórias de terror; mas Luiz Roberto
Machado era, também, um homem muito jovem.
- Conte-me sua
história – ele pediu.
Alexandra
inclinou a cabeça para um lado, num gesto curiosamente felino.
- Minha
história?
- Sim. O que a
motivou a agir dessa maneira.
- Minha
motivação – repetiu ela, lentamente, pensando no que cada palavra significava.
- Por quê e
para quê.
- Acho que vou
desapontá-lo, inspetor – ela olhou nos olhos dele e seu rosto foi tomado por
uma expressão suave, quase um sorriso – Eu não tive uma razão que me guiasse a
mutilar aqueles homens. Nenhum deles era meu conhecido, eu não sabia qual crime
cada um havia cometido. Eles não eram especialmente repulsivos: eu fiz porque
senti vontade.
O inspetor
deixou um longo minuto se passar antes de replicar.
- Você apenas
sentiu vontade.
- Simples
assim. É claro que o senhor não pode entender.
- Somente se
você me explicar.
- Eu pareço
uma criminosa?
- Criminosos
não têm uma aparência específica. Especialmente os sociopatas.
- Mas o senhor
concorda que eu não pareço o tipo de pessoa que invade uma prisão com uma faca
e executa castração amadora em mais de cinquenta internos.
- Isso é
verdade.
- Bem... Se eu
parecesse esse tipo de pessoa, o
senhor se daria o trabalho de questionar minhas motivações? Ou também não
existe uma aparência para esse tipo de “justiceira”?
-
Honestamente, você é a primeira que eu conheço.
- Que sorte a
sua.
Alexandra
abriu a garrafa de água à sua frente e bebeu, tomando cuidado com suas algemas.
- O senhor
não poderia entender por que uma mulher pega numa faca contra um homem,
qualquer homem. É porque não temos a força deles nas mãos e precisamos de um
adendo.
“Por que uma
mulher sente prazer em ver um homem se curvar de dor segurando os órgãos
genitais pendurados por um fiapo de pele? Porque o homem tem o poder de
subjugar uma mulher a qualquer momento, com as mãos nuas, movido apenas por um
pau duro. Por que um homem no chão, retorcido numa poça do próprio sangue
fluindo do corte no testículo, me faz sorrir? Porque eu gosto mais de vermelho
do que de branco, inspetor. E, principalmente, porque a visão do sangue dele me
poupa de ver o meu próprio sangue.
“Não pense
que eu fiz o que fiz em nome das mulheres. Não pense que eu odeio todos os
homens. Eu simplesmente quis ter o poder nas minhas mãos uma vez. E outra vez.
E mais uma, e quantas vezes possível. É algo viciante, sabe. Não, não sabe.
Como eu disse, o senhor não pode saber. Ainda bem. Imagine se todos fossem
iguais a mim, viciados em poder. Que mundo bárbaro seria!”
Dividido entre o desejo de saber mais e o de
ser poupado daquilo, o inspetor finalmente fez a pergunta seguinte: como aquilo tudo havia começado.
- Minha casa
foi invadida por um ladrão. Um idiota. Cortou a luz para entrar. Como se eu não conhecesse minha própria casa! Consegui nocauteá-lo, amarrei ele numa cadeira.
Pouco depois ele acordou, e eu me senti uma domadora de circo. Ele era um bicho
que ia se soltar a qualquer momento e comer minha cabeça. Mas ele não se
soltou, e eu ainda tinha minha faca. Comecei a conversar com ele. E ele me disse o
que ia fazer comigo quando conseguisse sair dali. Pra resumir, disse que ia me fazer ficar de
joelhos e chupar o pênis dele até ele gozar. Mas ele ia ser bonzinho e não
fazia questão que eu engolisse. Eu ia poder cuspir, se quisesse.
“Então eu
fiquei de joelhos, abri a calça dele e, com a minha faca japonesa de fazer
sashimi, cortei o testículo esquerdo. Foi muito rápido, sabe. A faca estava
bem afiada porque eu estava usando quando ele chegou. Então ele não sofreu com
o corte em si. Mas a visão do sangue fez ele se mijar todo. Eu fiquei longe do
mijo e peguei o sangue com a faca.
“Aí... Sabe o
que eu fiz?”
Alexandra
estava sorrindo agora, inclinada sobre a mesa na direção do inspetor, muito
parado do outro lado. Ele moveu os lábios com dificuldade e perguntou o que ela
fez.
- Eu lambi
mesmo o sangue da faca. Não foi bom nem ruim. A faca cortou um pouco a minha
língua, eu só vi depois. Aí fui pra trás da cadeira, segurei ele pelos cabelos
e cuspi o sangue todinho na cara apavorada dele. Não gritava mais coisa com
coisa. Não conseguia nem me xingar com coerência. Um pouquinho depois a polícia
chegou. Os vizinhos que chamaram porque ouviram os gritos dele. E depois, o
senhor já sabe.
Luis Roberto
se mexeu, sentindo pela primeira vez como a pequena sala de interrogatório
estava fria. Puxou o bloco de papel fechado para perto, hesitou por um momento e
fez menção de se levantar.
- Qual é o
meu diagnóstico? – Ela perguntou, ainda sorrindo.
- Não sou
psicólogo.
- Eu sei. O
senhor é um homem íntegro, sensível o bastante para sentir pena de um bandido.
Não pegaria numa faca nem se ameaçassem sua esposa. Eu quero saber o que um
homem como o senhor pensa de mim.
O inspetor
mastigou suas palavras antes de responder:
- Você é uma
mulher fria... Não, não exatamente fria, mas que age com frieza. Não tem
parentes próximos ou relações estreitas, pois não se importou em cometer os
seus crimes e recebeu sua punição com tranquilidade. Quando posta sob pressão, reagiu com selvageria calculada. Imagino que toda a sua vida você passou
em estado de inércia e esse episódio foi o momento em que essa
natureza crua se manifestou. Você parece em paz consigo mesma.
- Eu estou.
- Não há
vestígio nem da ideia de arrependimento em você.
- Com certeza
não.
O inspetor arrastou
a cadeira e se levantou.
- Eu não sei
quem você era antes disso, Alexandra, mas tenho certeza de que somente agora
você se tornou quem verdadeiramente é.
Ele começou a
se afastar.
- Inspetor.
Ele parou com
a mão na porta.
- Eu não
tenho muita certeza de quem sou agora, mas sei muito bem de uma coisa.
Eles se
encararam por um momento, olhos castanhos quase negros, olhos castanhos quase
verdes.
- Eu não sou
uma vítima.