Na terra dos peões, o chão tem duas
cores. Diante dos inimigos, simetricamente semelhantes, eles se veem.
Diametralmente opostos. A quatro passos do confronto, quase ansiando pelo
contato.
Sempre acima e nunca sobre suas
cabeças, coroas. Objetivos delimitados. Saem na frente para defender o bem
maior, que não são eles e que nem é deles. Não possuem, mas protegem. Espécie
assim de amor desgraçado, de vida à folha corrida. Oito meios que existem
apenas pelo fim.
Na terra dos peões, há castelos. Na penumbra,
cavalos que valem mais do que meia dúzia de heróis. Os heróis são omitidos, os
heróis são pequeninos. Nascem e morrem aos lotes, e assim que deve ser. Os
cavalos são espertos. Não andam aos trambolhões; descrevem o arco de uma
estratégia, e fiéis ao seu lado da vida e da terra, movem-se com malícia em
ângulo geométrico. Um pouquinho mais nobres do que os donos da terra, as éguas
se deslocam ao longo de um arrepio.
Ao som de um riso distante,
pertencente talvez a dias diferentes, que as torres de pedra observam
impassíveis, as jogadas se sucedem. Quem não está lá, imagina-se próximo aos
escudos insolentes daqueles clérigos desdenhosos. E os peões não têm fome. Têm
dores. À medida que os outros são poupados, são eles que avançam, sem nem som
de tambores. Mais um que cai e lá se vai para a cova, onde se sonha com gozos
esquecidos em forma de sabores. Um abraço da terra gelada, e nada existe que seja
grave. Não tem mais tristeza, porque nada mais cabe. Peões não têm escudo, só
pés que vão.
E aí vem, em determinada resolução,
saindo do lado de seu capitão, a que usa a coroa. E os donos da terra que
sobram, viram-se assombrados e encolhem de bom grado à vista da rainha de sua
imediação. Peão é dono da terra, mas de graça entrega o coração. Porque a toda
poderosa sai em seu socorro; a protegida os protege; a santa a quem oram
materializa-se de espada em punho, colecionando escalpos do exército inimigo,
encarando de longe seu espelho ao contrário, constituindo-se a verdade do
campo. E o outro, o maior, fica cá atrás e sozinho, aguardando todo o resto de
esperança se consumir, movendo-se quando é absolutamente inevitável.
Aí chegam perto do fim.
Na terra dos peões houve terremoto.
A terra de duas cores está despovoada. Agora, elas se misturam e os semelhantes
irremediavelmente opostos se confundem, invasores invadidos a dividir o muito
campo que restou. O suor pinga sobre a terra dos peões, salgado de metal e
pedra bruta. Mas segue luta.
Conforme o tempo passa e até as
torres caem, os reis da terra se encaram e o fazem já resignados, já sem
paciência. As soberanas digladiam, o clero some, os cavalos jogam. Os donos da
terra morrem felizes. E quem chegar perto de sua majestade, o
faz sujo, com espada de sangue e o triunfo nos dedos. Quer ver a majestade
de joelhos. Um tamborilar ressoa ao longo das ermas terras. Chegou uma peça – e
pequenina peça! – à frente do rei oposto.
É um rei de espelho côncavo, negro
como o pobre peão é branco. Grave e alto como o menor nunca chegará a ser.
Porque depois de agora haverá outras lutas e a terra dos peões definha se viver
em paz. O rei grave, alto, majestático, só é inferior às
circunstâncias. A proximidade da morte, que dá fim ao conflito, é o que lhe
torna repentinamente pouco, pequeno e impotente. Mas ao pálido peão esta é
condição cotidiana: desde que foi moldado peão, ele conhece a iminência do
fim. E vive em sua terra de duas cores e odeia seu rival que ostenta a
mesma forma e ama sua madre e santa rainha, que mora atrás de sua casa e que,
quando chega a hora, luta ao seu lado. Para o peão, o xeque-mate é o amanhecer.
Pode ser sua rotina ou agora, por capricho de um tamborilar que lhe guia, pode
cair em sua mão para fazê-lo capaz de derrubar um rei. Mas peão sempre será
dono da terra, porque é ele que vive sobre ela e é ele que vive ela.
Pequeno, cansado e sujo, ele
profere a sentença. E por esta vez, a coroa chega a seus pés.