Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

domingo, 18 de outubro de 2015

O grande amor

O pior foi acreditar que aquele era o curso do rio do tempo.
Não foi lembrar-se de que havia ajoelhado e pedido por isso. Não foi ver-se enredada na trama dos acontecimentos que se sucediam, cada vez mais encardidos os fios das moiras, linhas e mais linhas de encontro à sua, percorrendo toda a extensão do seu ser, prendendo-lhe à terra firme, sufocando sua boca com desejos que faziam desviar os olhos do céu - ainda distante, ainda inalterado, ainda inalcançável.
Não foi estar consciente de que escolheu andar pelo caminho alternativo que acabou levando para mais longe de si. Não foi sentir preocupações que, pela ordem natural das coisas, não deveriam ser suas. Não foi sentir amor pelos personagens que escolheu para sua história, embora estivesse desvirtuando a história deles. Não foi sentir-se uma intrusa no lugar de outra pessoa.
Nada foi pior do que deparar-se, num dia totalmente ordinário, com a pessoa certa, no dia certo, no lugar certo e ser incapaz de dizer a ela quem era; que seu lugar estava ocupado; e que não houve coragem em seu corpo para esperar até ali.
Ver o outro chegar e partir, sem jamais ter nas mãos o que era seu por direito. Ver o céu, não mais distante, mas sentir sua mão amarrada na direção da terra.
Isto foi o pior.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Na terra dos peões

Na terra dos peões, o chão tem duas cores. Diante dos inimigos, simetricamente semelhantes, eles se veem. Diametralmente opostos. A quatro passos do confronto, quase ansiando pelo contato.
Sempre acima e nunca sobre suas cabeças, coroas. Objetivos delimitados. Saem na frente para defender o bem maior, que não são eles e que nem é deles. Não possuem, mas protegem. Espécie assim de amor desgraçado, de vida à folha corrida. Oito meios que existem apenas pelo fim.
Na terra dos peões, há castelos. Na penumbra, cavalos que valem mais do que meia dúzia de heróis. Os heróis são omitidos, os heróis são pequeninos. Nascem e morrem aos lotes, e assim que deve ser. Os cavalos são espertos. Não andam aos trambolhões; descrevem o arco de uma estratégia, e fiéis ao seu lado da vida e da terra, movem-se com malícia em ângulo geométrico. Um pouquinho mais nobres do que os donos da terra, as éguas se deslocam ao longo de um arrepio.
Ao som de um riso distante, pertencente talvez a dias diferentes, que as torres de pedra observam impassíveis, as jogadas se sucedem. Quem não está lá, imagina-se próximo aos escudos insolentes daqueles clérigos desdenhosos. E os peões não têm fome. Têm dores. À medida que os outros são poupados, são eles que avançam, sem nem som de tambores. Mais um que cai e lá se vai para a cova, onde se sonha com gozos esquecidos em forma de sabores. Um abraço da terra gelada, e nada existe que seja grave. Não tem mais tristeza, porque nada mais cabe. Peões não têm escudo, só pés que vão.
E aí vem, em determinada resolução, saindo do lado de seu capitão, a que usa a coroa. E os donos da terra que sobram, viram-se assombrados e encolhem de bom grado à vista da rainha de sua imediação. Peão é dono da terra, mas de graça entrega o coração. Porque a toda poderosa sai em seu socorro; a protegida os protege; a santa a quem oram materializa-se de espada em punho, colecionando escalpos do exército inimigo, encarando de longe seu espelho ao contrário, constituindo-se a verdade do campo. E o outro, o maior, fica cá atrás e sozinho, aguardando todo o resto de esperança se consumir, movendo-se quando é absolutamente inevitável.
Aí chegam perto do fim.
Na terra dos peões houve terremoto. A terra de duas cores está despovoada. Agora, elas se misturam e os semelhantes irremediavelmente opostos se confundem, invasores invadidos a dividir o muito campo que restou. O suor pinga sobre a terra dos peões, salgado de metal e pedra bruta. Mas segue luta.
Conforme o tempo passa e até as torres caem, os reis da terra se encaram e o fazem já resignados, já sem paciência. As soberanas digladiam, o clero some, os cavalos jogam. Os donos da terra morrem felizes. E quem chegar perto de sua majestade, o faz sujo, com espada de sangue e o triunfo nos dedos. Quer ver a majestade de joelhos. Um tamborilar ressoa ao longo das ermas terras. Chegou uma peça – e pequenina peça! – à frente do rei oposto.
É um rei de espelho côncavo, negro como o pobre peão é branco. Grave e alto como o menor nunca chegará a ser. Porque depois de agora haverá outras lutas e a terra dos peões definha se viver em paz. O rei grave, alto, majestático, só é inferior às circunstâncias. A proximidade da morte, que dá fim ao conflito, é o que lhe torna repentinamente pouco, pequeno e impotente. Mas ao pálido peão esta é condição cotidiana: desde que foi moldado peão, ele conhece a iminência do fim. E vive em sua terra de duas cores e odeia seu rival que ostenta a mesma forma e ama sua madre e santa rainha, que mora atrás de sua casa e que, quando chega a hora, luta ao seu lado. Para o peão, o xeque-mate é o amanhecer. Pode ser sua rotina ou agora, por capricho de um tamborilar que lhe guia, pode cair em sua mão para fazê-lo capaz de derrubar um rei. Mas peão sempre será dono da terra, porque é ele que vive sobre ela e é ele que vive ela.
Pequeno, cansado e sujo, ele profere a sentença. E por esta vez, a coroa chega a seus pés.