Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Luto

Há vezes em que a nossa expectativa supera em muitos quilômetros a realidade. Mera realidade, fruto de acasos e fortuna. Eu, que sempre contei com a presença de Juliano na maioria das cenas de minha vida, achava incrivelmente absurdo que de repente restasse do meu amigo apenas a ausência, pedaço vazio de ar, vivo apenas dentro de minha cabeça.

Juliano vivia plena e fortemente dentro de mim. Sua lembrança se movia como um mestre de cena dirigindo minhas emoções: com um braço, erguia meus olhos pro céu; com um aceno, fazia-me chorar diante da xícara de café. Com esforço, após algumas horas bem quieto, enunciava claramente o meu nome em sua voz que reverberava em meus ouvidos - sim, juro, reverberava como se de fato soara junto a mim e não de memória - e assim podia descansar o resto da noite, havendo-se vivificado em minha tola reação.

Eu era a testemunha que restara de sua existência.

Diversas vezes, nos últimos meses, desenvolvi uma nova necessidade de retirar-me da presença dos outros e sozinha ficar, cismada, a contemplar novamente aquele absurdo. Somente após o desaparecimento de Juliano eu aprendi o significado desta palavra torpe. "Absurdo", escapava-me às vezes o sussurro que não se continha no oco de minha garganta e rolava-se dos lábios. "Absurdo", repetia outra vez tentando agarrar-me ao patético som de minha voz sozinha no banheiro. Um dia aqui e outro não mais. Um dia a menos, é tudo o que os dias são. Este é o fim. Este é o gosto do não-ser.

Eu me via refletida no espelho como um caco insistente após a ronda da vassoura. Sobrevivia, mas não vencia aquela guerra de forma alguma.

Vivi, sussurrava ele quando eu menos desejava ouvi-lo. E era apenas o que a lembrança me repetia, sem imaginação alguma. Vivi, chamava ele do além em meu cérebro. Vivi, gritou uma vez durante meu sono.

Doze meses se empilharam à minha frente antes que eu me desse conta de que a morte de Juliano era uma criança enrolada em minha nuca. Pesada, torta, carente por atenção. Faminta. De olhos fundos e presentes.

Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi.

Eu não sei o que eles esperam de mim. Deveria segui-lo até aquele mesmo patamar e tentar jogar a criança-saudade no mesmo chão onde o meu amigo se espatifara?

Tudo o que eu queria de você era você, Juliano.

Mas você só conseguia se enxergar em tudo à volta. Não havia Vivi. Haviam olhos que te olhavam e ouvidos que te ouviam. Nada mais. Você nunca quis nada mais. Não se deu conta que o único jeito de escapar de você era encontrar os outros. Mas os outros não valiam nada perto de você, Juliano. E quando você se reconheceu como nada também, o mundo acabou.

O dia em que esperei por você no restaurante, como em todas as outras semanas, numa quinta feira, às 17h30, para conversarmos sobre nossas vidas. Seus livros, minhas músicas, as esculturas de Beth e as contas de José Luiz. Confirmou no dia anterior. Nunca apareceu. Em minha cabeça eu vi minha própria ironia tomar forma para quando você chegasse. Vinte e cinco anos e resolveu inventar um fuso horário agora? Você iria sorrir por meio segundo, pedir desculpas e partir pro assunto do dia. Eu o vi antes de chegar. E eu o vi antes de jamais chegar. A morte é acostumar-se com o fato de que nunca mais haverá à frente aquela pessoa em todos os detalhes tolos que formam alguém. Uns cabelos fora do lugar, uma textura do lóbulo da orelha, o nariz exatamente daquele tamanho e que aumentava sempre quando ria. Você e você, como era e como era quando eu o olhava. Este é o que ainda está aqui.

Juliano, leva esta criança-saudade embora e deixa-me dormir em silêncio. Sei que peço a mim através do espelho do banheiro, onde ainda outra vez refugiei-me de te esquecer. Viveste. É certo. Mataste-te. É certo. Vives ainda em mim enquanto eu viver. Desculpa-me. Sei que era o teu desejo parar de existir. Sei agora. Respeito-te. Queda-te de mim. Deixo-te ir. Vence esta batalha.

Vivo ainda na guerra. Abro a porta e saio. Outros vinte e cinco anos me esperam. Deixo-te ao nada que é teu.