O
céu azul lampejava a custo através das nuvens brancas e do verde escuro das
árvores às margens da estrada. Hórus observava a paisagem familiar passar
rapidamente pela janela do ônibus, uma parte de si distraída, como sempre, com
a beleza das montanhas. Toda vez que fazia essa viagem ela se questionava se
tudo sempre fora assim, belo e pacífico, ou se era a saudade que coloria sua
perspectiva.
Encolhida
no banco macio, apreciando o vento que enchia o ônibus pelas janelas abertas, ela
aproveitava o tempo para pensar. Caíra finalmente no estado de espírito
silencioso e contemplativo que a ameaçara durante toda a semana. Após o
acontecimento do poema, sabia que deveria ceder à autoanálise; ainda que
tivesse procurado se ocupar com a limpeza de seu apartamento, lavando roupas,
organizando livros, apagando manchas de sangue e saindo com Serafim, em algum
momento teria que desligar a música de fundo das distrações e encarar os fatos.
Parecia
correto que usasse o tempo da viagem para isso, enquanto se afastava da cidade
de muros pichados com seu codinome. Sabia que era uma ilusão, pois o celular
com as notificações do Up and Date estava bem ali em seu bolso. Ainda assim,
havia algo de reconfortante em ver a estrada rolar abaixo de si e o sol faiscar
nos vidros a cada brecha entre as árvores.
Há
quantos anos ela tinha ido embora? Parecia tempo demais para alguém que ainda
era tão jovem. Não saberia dizer em números, mas se lembrava muito bem da sensação de estar naquele mesmo ônibus, em direção contrária, seguindo
a madrugada pelas janelas que só lhe mostravam de volta o próprio reflexo na
escuridão; seu
rosto frio, estranhamente seco, como papel. Hórus ainda não possuía seu nome,
mas já havia se tornado quem viria a ser. Lembrava de ter passado muito tempo
olhando as próprias mãos, perguntando-se como conseguia não sentir mais nada depois
de vê-las lavadas de sangue. Era um sentimento curioso, pois quanto mais tempo
passava pensando sobre aquilo – seu primeiro assassinato – menos pesada se
tornava a culpa. A menina estava dividida ao meio: uma parte sabia que tinha
feito algo de que deveria se envergonhar para o resto da vida; a outra parte já
havia pensado o suficiente e aceitado que, por mais condenável que fosse, o
homicídio fizera todo o sentido em seu contexto.
Ela
sentiu o céu da noite se abrir e derramar uma revelação: o certo e o errado não
eram tão simples como a ensinaram na igreja. O amor de que ouvira falar tão
exaustivamente era muito mais misterioso do que qualquer um ao seu redor poderia
suspeitar, ela pensou então. Tinha encarado uma face do amor que era
simplesmente aterrorizante. Não era fácil continuar depois daquilo; ainda
sentia em seu corpo o peso daquilo. E, mais pesada do que tudo, estava a
realidade, que era maior do que sua consciência – não era fácil, mas era
possível.
Hórus
aprendeu que não havia nada de emocional em matar alguém, mesmo que seu
primeiro crime tivesse sido passional. E, ainda que ela sentisse prazer em se
machucar, enquanto aprendia a viver sua nova vida, e que fosse atingindo uma
espécie de êxtase a cada nova morte, aquela parte de si que sempre parecia já
ter pensado em tudo lhe explicava pacientemente que: tudo era cálculo – e assim
que pensava, o véu caía novamente e ela conseguia enxergar os planos traçados
no ar. Houve um tempo em que a menina acreditava ser a mão de Deus sobre a
terra, para limpar e servir. Logo isso se dissolveu na realidade outra vez:
nada havia de divino no que ela fazia. No máximo alguma divindade profanada,
antiga ou nova, como tudo parecia ser na cidade onde morava agora: grandioso e
sujo.
Ela
achou seu nome na internet. Uma filóloga traçara a origem da palavra “whore”,
puta em inglês. Até então ela nunca tinha se interessado por mitologia
clássica. Achou fascinante que um deus menor do Egito tivesse, ao longo dos
séculos, se travestido em um xingamento corriqueiro. Quando fez seu début como heroína maldita, a palavra
veio aos seus lábios como uma resposta pronta, e o famoso olho começou a
aparecer em toda parte. Mas isso ainda era quando ela não matava por dinheiro,
e o prazer era apenas efeito colateral do dever cumprido.
Ela
gostava de desafiar a própria ansiedade ao esperar o dia inteiro pela noite,
quando saía às ruas mais sujas, a cada lugar comum das páginas policiais. Era
muito simplória em seus primórdios, frustrando assaltos e evitando estupros,
torcendo por ataques de gangues para poder deixar um sobrevivente que espalhasse
seu nome. Nessa época, toda a questão se tornara comum para ela e ainda tinha
bases bíblicas. Quem via a oportunidade de fazer o bem e não fazia, estava
condenado. Então, ela fazia a coisa certa.
Mesmo
que em alguns momentos o certo fosse aleijar os marginais que,
coincidentemente, atravessavam seu caminho.
E
como ela gostava de ser aquele paradoxo ambulante: a despeito de sua aparência,
ela é que era a razão do medo de quem lhe cruzasse os passos. Quando as vítimas
passavam por ela, refletiam o horror e o reconhecimento. Algumas caíam a seus
pés como se quisessem adorá-la; mas nessa época, Hórus já tinha se dado conta
de como poucos percebiam que sua atitude heroica era apenas questão de minutos
que separavam uma assassina de uma salvadora.
A
sorte a encontrou quando percebeu que fazer a coisa certa poderia ser seu meio
de vida. O aplicativo de recompensas decodificava aqueles padrões que ela
enxergava por instinto, ampliando seu alcance de forma extraordinária. Antes,
ela havia se acostumado a sair pela noite em busca de criminosos, ironicamente,
como um homem saía em busca de prostitutas. Agora, ela podia se dar ao luxo de tratar
cada alvo como uma conquista completa e dedicar-se a um de cada vez,
entregando-se sem reservas a cada personagem criada para a nova cabeça, até que
começasse a criar personagens também para as épocas de paz.
Aos
poucos a mulher percebeu que a parte de si que pensava em tudo agora era o seu
todo e que, enquanto fosse Hórus, não poderia mais resgatar seu primeiro nome. Assim
ela colecionou nomes de guerra como uma autêntica whore, empenhando o próprio corpo a cada nova missão e permitiu-se
se orgulhar ao ver os dígitos acumulando em sua conta, como uma prova literal e
mundana de sua vocação uma vez divina. Hórus sorria, tendo finalmente achado harmonia.
E
foi quando ela aprendeu que bem e mal, assim como há tanto tempo se revelara
sobre o certo e o errado, também não eram conceitos
fechados em si mesmos, como o mundo gostava de estabelecer em seu preconceito
pétreo.
Foi
assim que ela se deu conta, em meio à velha Estrada 116, de que era por isso
que escrevera um poema sobre Serafim. Não porque descobriu que conseguia se
relacionar com um homem sem ter a intenção de matá-lo – o que geralmente
constituía seu maior prazer – mas porque, se podia existir alguém que
compreenderia aquela revelação, seria ele.
Tudo,
absolutamente tudo na vida era tão-somente questão de perspectiva.
Hórus
esticou as pernas no banco do ônibus, se espreguiçando. O dia crescia lá fora e
ela antecipava o café da manhã que a receberia em menos de meia hora. Puxou o
celular e ligou para a mãe. Era 24 de dezembro e ela estava indo passar o Natal
em casa.
Havia
muitos anos que o Natal perdera seu significado original, uma vez que as
religiões perderam seus principais fiéis entre a população. O novo deus era o
dinheiro e este era, cada vez mais, capital imaginário em eterno desfile de
dígitos sobre telas. E por mais que no passado houvesse um notável amálgama
entre as igrejas e o dinheiro, aquilo também se desfizera. Quando o mundo se
esvaziou com a maior das guerras, a velha lei da sobrevivência imperou outra
vez. E então ficou muito claro, até para quem ainda desejava enxergar com os
olhos da fé, que somente os preços haveriam de conservar seu valor.
Hórus
se reconhecia como um produto de seu tempo, variando de opinião conforme seu
humor: em alguns dias era um instrumento de ordem social, em outros somente isto,
um produto. Ela se sentia propensa a refletir sobre tudo aquilo mais uma vez
enquanto andava pela cidadezinha parada no tempo, carregando sua mala. Sorria
apreciando o contraste, sentindo-se deslocada. Era como se conseguisse se ver
de fora, arrastando suas botas impermeáveis inúteis naquele tempo seco, mas que
escolhera porque estava chovendo na cidade quando saiu. Ela observava os rostos
de seus conterrâneos, apertando os olhos no sol forte, envergando bicicletas
por toda parte. Houve um tempo em que odiou tudo aquilo com força demais.
Sentia-se muito bem agora, ao perceber que estava perfeitamente em paz com as
lembranças e que isto não era produto de sua insensibilidade, mas resultado de
ter se tornado uma adulta. Talvez fosse sempre assim quando voltasse para a
casa que não era mais a sua casa, ela pensou enquanto destrancava o portão,
talvez sempre cruzasse com aquela que tinha ido embora e lhe concedesse o
perdão que nunca havia pedido.
Ela
parou na varanda, ouvindo de longe a conversa de seus pais por baixo da música
do rádio, provavelmente vindo da cozinha. Entrou pela porta da frente,
destrancada, e respirou fundo o cheiro da casa que rescindia a chá verde. Suas
botas faziam barulho no piso da sala, mas a conversa animada não cessou. Ela
parou no portal, encostando-se à cortina de contas que separava os ambientes,
admirando a cena. Primeiro viu seu pai, alto e grisalho, de camisa social
branca mesmo sendo feriado, rindo enquanto contava uma de suas histórias cheias
de detalhes. Sua mãe estava de costas, curvada sobre a bancada, os cabelos
pretos presos num coque, balançando a cabeça. A qualquer momento ela iria
interromper o marido para pedir pelo amor de Deus que fosse direto ao ponto,
mas era claro que estava se divertindo.
Ela
esperou uma pausa na história para anunciar sua presença e os dois se voltaram,
surpresos.
-
Eu devia saber que você ia entrar de fininho de novo! – ralhou a senhora Reis,
secando as mãos em um pano de prato. Rindo, ela fechou os olhos para não ficar
tonta com a nostalgia que a envolveu dentro dos braços de sua mãe. O senhor
Reis, percebendo que a esposa não a soltaria tão cedo, juntou-se ao abraço
formando um montinho no meio da cozinha abafada.
Seguiu-se
uma hora inteira de carinho e reclamações de ausência. Como esperado, a pequena
mesa fora posta e estava apinhada de comida, sem espaço para um cotovelo. Não
que ela se atrevesse a colocar os cotovelos na mesa na presença de sua mãe, de
qualquer forma.
A
senhora Reis deixou passar apenas o tempo necessário para ver a filha se
alimentar e logo a despachou para o banho, indo imediatamente se ocupar do
almoço. Seu pai intimou que viesse conversar com ele na varanda assim que
descansasse, pedindo pela enésima vez que desse outra chance ao chá verde que
era sua especialidade.
Respirando
fundo, ela se virou para a escada e avistou ao longo das paredes os quadros com
fotos da família. Conforme subia, era como reviver a própria história. A mais
antiga era de seus trisavós, uma litografia em preto e branco. Depois, seus
bisavós em cores desbotadas, posando na frente da antiga fazenda. Seus avós
sorriam em cores brilhantes num parque, no ensaio de casamento. Seus pais
estavam abraçados em uma colagem que misturava vários anos, com destaque para a
foto da mãe grávida. Então, a família completa: o pai, já professor, sorrindo
em seus óculos de armação grossa com o braço nos ombros da mãe, funcionária da
Prefeitura, em um vestido leve que balançava ao vento. Abaixo deles as duas
meninas ajoelhadas na grama, abraçadas e com os rostos colados. Luísa, a mais
velha, de olhos claros e cabelos escuros, e a Caçula, aquela que viria a se
tornar Hórus, de olhos escuros e cabelos claros.
Ela
parou no degrau seguinte, diante do registro de formatura da irmã. Era uma bela
foto, com a moça séria na roupa azul marinho, os cabelos escovados caindo pelos
ombros, seu lindo rosto equilibrado nas proporções. Ficou diante dela, vendo-se
refletida no vidro da moldura. Os olhos da outra escureceram, o rosto ganhou
uma auréola dourada. Mas fora isso, eram quase iguais.
-
E aí, maninha – sussurrou ela, como era seu hábito.
Hórus
seguiu para seu quarto, finalmente alcançando o patamar. Sentia a tristeza e a
saudade se espalhando em ondas pelo corpo, pensando como era curioso que tudo
relacionado à irmã mexesse com ela de forma tão orgânica. Tinha sido assim
desde a depressão e do subsequente suicídio. Desde então, tudo o que significava
destruição do lado de fora, ecoava dentro de si de forma pungente, tanto para o
pesar quanto para o prazer. E este era o momento do pesar, ainda uma vez.