Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Capítulo V - Estrada 116


O céu azul lampejava a custo através das nuvens brancas e do verde escuro das árvores às margens da estrada. Hórus observava a paisagem familiar passar rapidamente pela janela do ônibus, uma parte de si distraída, como sempre, com a beleza das montanhas. Toda vez que fazia essa viagem ela se questionava se tudo sempre fora assim, belo e pacífico, ou se era a saudade que coloria sua perspectiva.
Encolhida no banco macio, apreciando o vento que enchia o ônibus pelas janelas abertas, ela aproveitava o tempo para pensar. Caíra finalmente no estado de espírito silencioso e contemplativo que a ameaçara durante toda a semana. Após o acontecimento do poema, sabia que deveria ceder à autoanálise; ainda que tivesse procurado se ocupar com a limpeza de seu apartamento, lavando roupas, organizando livros, apagando manchas de sangue e saindo com Serafim, em algum momento teria que desligar a música de fundo das distrações e encarar os fatos.
Parecia correto que usasse o tempo da viagem para isso, enquanto se afastava da cidade de muros pichados com seu codinome. Sabia que era uma ilusão, pois o celular com as notificações do Up and Date estava bem ali em seu bolso. Ainda assim, havia algo de reconfortante em ver a estrada rolar abaixo de si e o sol faiscar nos vidros a cada brecha entre as árvores.
Há quantos anos ela tinha ido embora? Parecia tempo demais para alguém que ainda era tão jovem. Não saberia dizer em números, mas se lembrava muito bem da sensação de estar naquele mesmo ônibus, em direção contrária, seguindo a madrugada pelas janelas que só lhe mostravam de volta o próprio reflexo na escuridão; seu rosto frio, estranhamente seco, como papel. Hórus ainda não possuía seu nome, mas já havia se tornado quem viria a ser. Lembrava de ter passado muito tempo olhando as próprias mãos, perguntando-se como conseguia não sentir mais nada depois de vê-las lavadas de sangue. Era um sentimento curioso, pois quanto mais tempo passava pensando sobre aquilo – seu primeiro assassinato – menos pesada se tornava a culpa. A menina estava dividida ao meio: uma parte sabia que tinha feito algo de que deveria se envergonhar para o resto da vida; a outra parte já havia pensado o suficiente e aceitado que, por mais condenável que fosse, o homicídio fizera todo o sentido em seu contexto.
Ela sentiu o céu da noite se abrir e derramar uma revelação: o certo e o errado não eram tão simples como a ensinaram na igreja. O amor de que ouvira falar tão exaustivamente era muito mais misterioso do que qualquer um ao seu redor poderia suspeitar, ela pensou então. Tinha encarado uma face do amor que era simplesmente aterrorizante. Não era fácil continuar depois daquilo; ainda sentia em seu corpo o peso daquilo. E, mais pesada do que tudo, estava a realidade, que era maior do que sua consciência – não era fácil, mas era possível.
Hórus aprendeu que não havia nada de emocional em matar alguém, mesmo que seu primeiro crime tivesse sido passional. E, ainda que ela sentisse prazer em se machucar, enquanto aprendia a viver sua nova vida, e que fosse atingindo uma espécie de êxtase a cada nova morte, aquela parte de si que sempre parecia já ter pensado em tudo lhe explicava pacientemente que: tudo era cálculo – e assim que pensava, o véu caía novamente e ela conseguia enxergar os planos traçados no ar. Houve um tempo em que a menina acreditava ser a mão de Deus sobre a terra, para limpar e servir. Logo isso se dissolveu na realidade outra vez: nada havia de divino no que ela fazia. No máximo alguma divindade profanada, antiga ou nova, como tudo parecia ser na cidade onde morava agora: grandioso e sujo.
Ela achou seu nome na internet. Uma filóloga traçara a origem da palavra “whore”, puta em inglês. Até então ela nunca tinha se interessado por mitologia clássica. Achou fascinante que um deus menor do Egito tivesse, ao longo dos séculos, se travestido em um xingamento corriqueiro. Quando fez seu début como heroína maldita, a palavra veio aos seus lábios como uma resposta pronta, e o famoso olho começou a aparecer em toda parte. Mas isso ainda era quando ela não matava por dinheiro, e o prazer era apenas efeito colateral do dever cumprido.
Ela gostava de desafiar a própria ansiedade ao esperar o dia inteiro pela noite, quando saía às ruas mais sujas, a cada lugar comum das páginas policiais. Era muito simplória em seus primórdios, frustrando assaltos e evitando estupros, torcendo por ataques de gangues para poder deixar um sobrevivente que espalhasse seu nome. Nessa época, toda a questão se tornara comum para ela e ainda tinha bases bíblicas. Quem via a oportunidade de fazer o bem e não fazia, estava condenado. Então, ela fazia a coisa certa.
Mesmo que em alguns momentos o certo fosse aleijar os marginais que, coincidentemente, atravessavam seu caminho.
E como ela gostava de ser aquele paradoxo ambulante: a despeito de sua aparência, ela é que era a razão do medo de quem lhe cruzasse os passos. Quando as vítimas passavam por ela, refletiam o horror e o reconhecimento. Algumas caíam a seus pés como se quisessem adorá-la; mas nessa época, Hórus já tinha se dado conta de como poucos percebiam que sua atitude heroica era apenas questão de minutos que separavam uma assassina de uma salvadora.
A sorte a encontrou quando percebeu que fazer a coisa certa poderia ser seu meio de vida. O aplicativo de recompensas decodificava aqueles padrões que ela enxergava por instinto, ampliando seu alcance de forma extraordinária. Antes, ela havia se acostumado a sair pela noite em busca de criminosos, ironicamente, como um homem saía em busca de prostitutas. Agora, ela podia se dar ao luxo de tratar cada alvo como uma conquista completa e dedicar-se a um de cada vez, entregando-se sem reservas a cada personagem criada para a nova cabeça, até que começasse a criar personagens também para as épocas de paz.
Aos poucos a mulher percebeu que a parte de si que pensava em tudo agora era o seu todo e que, enquanto fosse Hórus, não poderia mais resgatar seu primeiro nome. Assim ela colecionou nomes de guerra como uma autêntica whore, empenhando o próprio corpo a cada nova missão e permitiu-se se orgulhar ao ver os dígitos acumulando em sua conta, como uma prova literal e mundana de sua vocação uma vez divina. Hórus sorria, tendo finalmente achado harmonia.
E foi quando ela aprendeu que bem e mal, assim como há tanto tempo se revelara sobre o certo e o errado, também não eram conceitos fechados em si mesmos, como o mundo gostava de estabelecer em seu preconceito pétreo.
Foi assim que ela se deu conta, em meio à velha Estrada 116, de que era por isso que escrevera um poema sobre Serafim. Não porque descobriu que conseguia se relacionar com um homem sem ter a intenção de matá-lo – o que geralmente constituía seu maior prazer – mas porque, se podia existir alguém que compreenderia aquela revelação, seria ele.
Tudo, absolutamente tudo na vida era tão-somente questão de perspectiva.
Hórus esticou as pernas no banco do ônibus, se espreguiçando. O dia crescia lá fora e ela antecipava o café da manhã que a receberia em menos de meia hora. Puxou o celular e ligou para a mãe. Era 24 de dezembro e ela estava indo passar o Natal em casa.

Havia muitos anos que o Natal perdera seu significado original, uma vez que as religiões perderam seus principais fiéis entre a população. O novo deus era o dinheiro e este era, cada vez mais, capital imaginário em eterno desfile de dígitos sobre telas. E por mais que no passado houvesse um notável amálgama entre as igrejas e o dinheiro, aquilo também se desfizera. Quando o mundo se esvaziou com a maior das guerras, a velha lei da sobrevivência imperou outra vez. E então ficou muito claro, até para quem ainda desejava enxergar com os olhos da fé, que somente os preços haveriam de conservar seu valor.
Hórus se reconhecia como um produto de seu tempo, variando de opinião conforme seu humor: em alguns dias era um instrumento de ordem social, em outros somente isto, um produto. Ela se sentia propensa a refletir sobre tudo aquilo mais uma vez enquanto andava pela cidadezinha parada no tempo, carregando sua mala. Sorria apreciando o contraste, sentindo-se deslocada. Era como se conseguisse se ver de fora, arrastando suas botas impermeáveis inúteis naquele tempo seco, mas que escolhera porque estava chovendo na cidade quando saiu. Ela observava os rostos de seus conterrâneos, apertando os olhos no sol forte, envergando bicicletas por toda parte. Houve um tempo em que odiou tudo aquilo com força demais. Sentia-se muito bem agora, ao perceber que estava perfeitamente em paz com as lembranças e que isto não era produto de sua insensibilidade, mas resultado de ter se tornado uma adulta. Talvez fosse sempre assim quando voltasse para a casa que não era mais a sua casa, ela pensou enquanto destrancava o portão, talvez sempre cruzasse com aquela que tinha ido embora e lhe concedesse o perdão que nunca havia pedido.
Ela parou na varanda, ouvindo de longe a conversa de seus pais por baixo da música do rádio, provavelmente vindo da cozinha. Entrou pela porta da frente, destrancada, e respirou fundo o cheiro da casa que rescindia a chá verde. Suas botas faziam barulho no piso da sala, mas a conversa animada não cessou. Ela parou no portal, encostando-se à cortina de contas que separava os ambientes, admirando a cena. Primeiro viu seu pai, alto e grisalho, de camisa social branca mesmo sendo feriado, rindo enquanto contava uma de suas histórias cheias de detalhes. Sua mãe estava de costas, curvada sobre a bancada, os cabelos pretos presos num coque, balançando a cabeça. A qualquer momento ela iria interromper o marido para pedir pelo amor de Deus que fosse direto ao ponto, mas era claro que estava se divertindo.
Ela esperou uma pausa na história para anunciar sua presença e os dois se voltaram, surpresos.
- Eu devia saber que você ia entrar de fininho de novo! – ralhou a senhora Reis, secando as mãos em um pano de prato. Rindo, ela fechou os olhos para não ficar tonta com a nostalgia que a envolveu dentro dos braços de sua mãe. O senhor Reis, percebendo que a esposa não a soltaria tão cedo, juntou-se ao abraço formando um montinho no meio da cozinha abafada.
Seguiu-se uma hora inteira de carinho e reclamações de ausência. Como esperado, a pequena mesa fora posta e estava apinhada de comida, sem espaço para um cotovelo. Não que ela se atrevesse a colocar os cotovelos na mesa na presença de sua mãe, de qualquer forma.
A senhora Reis deixou passar apenas o tempo necessário para ver a filha se alimentar e logo a despachou para o banho, indo imediatamente se ocupar do almoço. Seu pai intimou que viesse conversar com ele na varanda assim que descansasse, pedindo pela enésima vez que desse outra chance ao chá verde que era sua especialidade.
Respirando fundo, ela se virou para a escada e avistou ao longo das paredes os quadros com fotos da família. Conforme subia, era como reviver a própria história. A mais antiga era de seus trisavós, uma litografia em preto e branco. Depois, seus bisavós em cores desbotadas, posando na frente da antiga fazenda. Seus avós sorriam em cores brilhantes num parque, no ensaio de casamento. Seus pais estavam abraçados em uma colagem que misturava vários anos, com destaque para a foto da mãe grávida. Então, a família completa: o pai, já professor, sorrindo em seus óculos de armação grossa com o braço nos ombros da mãe, funcionária da Prefeitura, em um vestido leve que balançava ao vento. Abaixo deles as duas meninas ajoelhadas na grama, abraçadas e com os rostos colados. Luísa, a mais velha, de olhos claros e cabelos escuros, e a Caçula, aquela que viria a se tornar Hórus, de olhos escuros e cabelos claros.
Ela parou no degrau seguinte, diante do registro de formatura da irmã. Era uma bela foto, com a moça séria na roupa azul marinho, os cabelos escovados caindo pelos ombros, seu lindo rosto equilibrado nas proporções. Ficou diante dela, vendo-se refletida no vidro da moldura. Os olhos da outra escureceram, o rosto ganhou uma auréola dourada. Mas fora isso, eram quase iguais.
- E aí, maninha – sussurrou ela, como era seu hábito.
Hórus seguiu para seu quarto, finalmente alcançando o patamar. Sentia a tristeza e a saudade se espalhando em ondas pelo corpo, pensando como era curioso que tudo relacionado à irmã mexesse com ela de forma tão orgânica. Tinha sido assim desde a depressão e do subsequente suicídio. Desde então, tudo o que significava destruição do lado de fora, ecoava dentro de si de forma pungente, tanto para o pesar quanto para o prazer. E este era o momento do pesar, ainda uma vez.