- Eu sempre soube o que quero da
vida.
- Eu odeio generalizações.
- Mas algumas generalizações são
válidas.
- Você é adepta do “sempre” ou do
“quase”?
- E você é adepto do ódio aos
dois?
- Você vai pensar que é impossível
me agradar.
- “Impossível” também é generalização.
- Exatamente. Você, adepta disso,
vai logo me generalizar.
- Sempre odiei preconceitos.
- Então você é uma contradição,
porque odeia o que pratica.
- Não sei se posso contestar a
visão que você tem de mim, pois isso é algo muito seu...
- Fique à vontade.
- ...Mas praticar algo que se
odeia, ou com que não se concorda, é comum. Odeio ter que me equilibrar em fios
todos os dias, mas não poderia deixar de fazê-lo.
- Aí há uma diferença de ódio à
necessidade. O que eu disse foi que você odeia o que pratica, e não que pratica
o que odeia.
- Não é a mesma coisa?
- Nem sempre (olha o quase).
Quando você odeia o que pratica, como os preconceitos que traz, é porque vai além
da sua capacidade negar-se a isso. Incorre no erro que lhe é inerente e por
isso mesmo, talvez, é que o odeie.
- O que está dentro de mim não
posso tirar.
- Já praticar o que se odeia
requere uma ação antes mesmo do pensamento. Na maioria das vezes você pode pensar antes de agir. Quando você
pode pensar, chegar a uma conclusão (se ama ou se odeia) e daí tomar uma decisão,
a culpa é sua.
- O que escolho tocar é a mácula
premeditada... Mas e quando as causas não me deixam saída?
- Entranhas conjunturais. Mas
acabam sendo influência da sua estrutura.
- Isso é bíblico! “O bem que quero,
este não faço. O mal que não quero persegue os meus passos”.
- E assim “o mundo jaz no maligno”.
- Mas, afinal... O que eu sempre
quis da vida foi ser feliz.
- Tudo quer. Isto não é uma
generalização. É a constatação de um flagrante.
- Mas é necessário quem alguém sofra
em algum momento, para que outro esteja feliz.
- Momentos passam tão rápido...
- Existe algo que possa ser generalizado?
- Não existe equilíbrio. Por isso,
não.
- O que existe?
- Nós, que pensamos e que somos,
ao mesmo tempo, estruturas completas de nós mesmos e conjunturas na imensa máquina
da vida.
- Do mundo?
- O mundo também passa, assim
como nós. Mas dentro da gente, o pensamento pode voar a outros mundos. Vida e
existir são mais.
- Existo como contradição, é
isso?
- Acho que ninguém escapa de ser
contradito pelo mundo.
- Eu quero ser feliz, mas mais:
quero fazer coisas que sejam lembradas por outros que ajudei a ser felizes.
- Será que isso quer dizer que
você quer o seu bem lembrado e o seu mal esquecido? No entanto, isso seria viver
pela metade. Qualquer mal ajuda um bem em algum momento.
- E vice-versa?
- O mundo gira, não cai de um
lado pra outro.
- Engraçado que estejamos
inscritos num círculo, por natureza equilibrado, e que nunca alcancemos o equilíbrio.
- É um mal que serve ao bem. O
objetivo é tão importante quanto o objeto sem cor, utópico. Mas concebê-lo,
sonhar com ele já denuncia algo muito importante.
- O quê?
- A nossa contradição.
(Da série “Abolindo o Narrador”
[2 pássaros sobre o fio do telefone])