Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sábado, 2 de junho de 2012

R: Não-ser

O suicida é um sujeito organizado. Quando acontece de ser sujeita, então, se acaba já
antes mesmo de se matar.
O suicida ouve as palavras que não fazem sentido e se sente agulhar,
ferido. Sem transparecer.
Doendo pelas próprias palavras que não sabe fazer nascer.
Pois já se vê que o suicida é sujeito de morte, não de vida.
Ele não sabe fazer a vida de forma alguma. De nenhuma maneira.
É sempre
sem saber, sem enternecer, sem ficar. O eterno passageiro que jamais se torna viajante.
O idiota, o intruso, o obtuso da normalidade: ele se morre pelas outras vozes.
Nos risos, tem ressaca.
A cabeça dói e ele se cala
como se fosse louco, mas não. Nada de louco; lúcido demais.
Vívido no que deveria ignorar.
Ele dói por ver a ausência.
A falta de amor ao que ele ama – que é inanimado ou impossível de corresponder – então o amor já incorrespondido vira amor não reconhecido
e assim sendo,
além dos juízos de valor sobre sua própria sanidade
– o suicida é senilidade, apesar dos 20 anos –
ele obtém juízos sobre seu oco interior.

Ninguém confia em alguém que não ama.
 E ninguém confia em alguém que ama o estranho.
E o suicida se pergunta
não será o próximo, sempre, um estranho?
E então ele, em sua indecência, se recolhe ao anonimato
mesmo sem ter esse direito
já que perdeu a identidade de fato.
Ele se rende ao fato.
Não: se rende a encarar os fatos.
Aí é que se morre.
Ele morre
nas palavras dos outros,
no tempo que escorre que é demais
demais nos sentimentos nojentos que escorrem das palavras inúteis dos outros, outros inúteis, vida inútil, existir de padecer
amoral, sem viver.
O que se tem o direito de procurar é na verdade dever.
Felicidade?, é a maior das mentiras e ele se morre
...(nas mentiras)...
Na não-verdade está o não-ser e o suicida enxerga isso
>Pobre Coitado<
Ele então se encontra
O só, o acordado
O das vocações para quê? Para nada. Enxergar não vale nada.
Ouvir e entender não vale nada.
Vale para se interpretar até chegar ao fim.
Mas felicidade é a busca, não o fim.
Se há felicidade, não existe fim.
Felicidade é felizes para sempre,
Sem morte.
Felicidade é ser.
Mas o suicida já sabe que a felicidade não é.
Se nem ela é, como pode ele? Ele chega ao inevitável.
Chega à arma, chega ao fim.
Organizado,
ele entra no quarto
e tranca a porta,
como se fosse um homem
indo orar.
Apóia um joelho na cama
e fecha as janelas.
Arruma o espaço
como se fosse óbvio, como se a vida não-vida fosse óbvia.
A dor do suicida é não duvidar de nada. Ele sabe
e isso não lhe faz diferença nenhuma.
Ele arruma
as roupas, tira os sapatos, alinha o anel e o relógio. Vê que são 18:10.
Vira-se e consegue não ouvir mais nada.
Isso dura alguns segundos. Logo ele se ouve, em silêncio, pensar.
Resoluto, resignado, reformado
de todas as intenções, ele vai quebrar
a lei de Deus e a dos homens.
Porque ele sabe
que a busca é inútil.
Ele sabe o que é não-ser. Agora é hora de pôr em prática uma coisa que seja.
O suicida se mata sem dor. Sem tempo de ouvir o próprio cessar.
Em verdade, nada mudou. Se sua lembrança foi frequentemente suscitada nas últimas semanas, foi por poucas.
O suicida nasceu suicida. Então, meio que não nasceu.
Saiu por vontade própria antes do fim, bebeu uma decisão
de sua própria concepção.
O único ato
o único fato
que o suicida produziu foi
a anulação.
Ele devia saber.
Se matou pela ânsia desesperada de ser.

Lá fora, excepcionalmente, o sol ainda brilhava.

Essa pseudo-poesia-crônica-sem-personagens é para o meu suicida preferido, Moritz Stiefel.