Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sábado, 26 de janeiro de 2013

As hipérboles


            Eu tenho esse amor, tenho como se o tivesse pagado a prestação. Há mais de 3 anos que insisto nele, como uma tatuagem ou uma permanente ou uma maquiagem definitiva. O fato é que lhe tenho e fico atribuindo as batidas do coração a ele, e vou pensando em tudo e relacionando a ele, e olhando pelo mesmo prisma arroxeado as flores, os postes, os degraus, as placas que contam o preço do pingado, os acidentes na Marginal, as unhas roídas nos pés, os copos d’água servindo à oração.
Pois é, é esse amor que eu tenho, que já se dá o luxo de recusar as aspas, mas ainda borbulha na boca quando é caso de dizer seu nome. É essa coisa chamada de docinho, mas que é na verdade acidez nas laterais da língua, batendo panela e acordando as glândulas salivares que só as crianças têm. E não apenas: caindo também amargo e arrepiante com toque de gelo azul e cristal grosso, mas transparente. Eu não entendo esse amor, que me decapita a razão, que drena a minha paixão pelas feridinhas do pescoço, que me percorre por fora e por dentro e que me dá o ar com a única condição de tê-lo sempre para ele. Acho que não é pra se entender, mesmo. Eu o tenho, afinal. E não se pode dizer que não faço uso dele, assim como ele me faz. Eu tenho esse amor como desculpa para o meu vício de dizer Não, tenho-lhe como escape para os momentos de passagem, tenho-o como personagem dos clipes de cada canção do rádio e dos fones. Eu o tenho como protagonista em meu próprio detrimento, eu o tenho como mártir e como eterno, como sustento, muito mais do que como fardo, pois esse é o amor de um refugiado por uma egoísta e nós, egoístas, fazemos qualquer coisa a partir do amor. Porque é isso, ele está em mim, então eu o tenho. E faço o que quiser, até pensar que é ele que me faz fazer o que não quero. Mas não, assim como ninguém aprende de ninguém, assim como não se aprende nada, mas apenas se assimila. Isso quando não se faz outro pensamento a partir do primeiro, ou se plagia uma ideologia cristã e se inventa a Inquisição.
            Acho que é isso. É isso mesmo. Já posso ir? Preciso jurar de novo?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A poesia está em tudo. Está hoje,
nos seus olhos caídos, em suas palavras inesperadas, em seus passos vacilantes.
Está no suspiro dos trens, lá adiante
e no vapor aplacado pela chuva que vem desse céu tão branco.
A poesia é nas suas mãos que amassam o rosto
Até nesse silêncio extremo, no seu tédio. Há poesia mesmo na sua facilidade de ser trágico e engraçado. E na pressa com que você transita entre os dois.
Pois a poesia é assim, triste, e inútil como se vivesse por aparelhos.
Não há necessidade de grandes invenções.
Esta paisagem ordinária, essas absurdas vias de contato, aquele diz-que-disque maroto, sim, creia, ela é lá.
A mesma,
no concreto e nas linhas retas,
na originalidade de cada nova imitação,
na falta de jeito com que você vive, sobrevive, fica mudo e depois embala, com talento,
qualquer multidão.
A poesia não está onde eu te vejo, mas quando lembro de você,
de forma expressa e infundada.
Castelo de areia, nuvem que vai, vaso de flores que cai, cidade bruta, enregelada, encardida.

Não digo que qualquer coisa te invoque em mim mas eu, sendo assim, é que te criaria se não houvesse você.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Masoquismo renitente


Parte I


            E ela continuou olhando para a foto de Roberto, quieta como uma bala no gatilho, em silencioso incêndio. Fitou aquela foto até que Roberto deixasse de ser Roberto, até seus olhos se tornarem borrões de luz escura e ele deixasse de ser um homem para ser uma boca que sorria, um tronco que envergava uma camisa azul-marinho, e mais um pouco até o retângulo ser apenas quadro para o jogo de cores que dançava para os seus olhos. E ela prosseguiu olhando até que as formas deixassem de ser representação da pessoa para voltarem a ser a ideia original. Ela olhou até Roberto se desprender daquela imagem e tocar a lembrança dele que ela carregava para todos os lados conforme o som surdo de seu coração batendo. Patética e inflamada, ela viu o encontro dos dois que não eram mais que cópias do seu amado – do seu ideal amado: assim que, sem perceber, trouxe-o a meio caminho dos lábios e, vencendo o resto ela mesma, beijou o retrato.

Parte II


Encontraram-se num dia quente demais. Ela andou o mundo inteiro para chegar até chegar ali, uma miragem trêmula, derretida, de cabelos pegajosos. Ele estendeu os braços para ela antes que fosse possível alcançá-lo, e ela apertou o passo e a mão ao redor da sombrinha ao ver as mãos abertas do outro, como um berço, uma promessa, qualquer coisa que lembrava descanso, morte e renascimento.
            Ao redor, as risadas e as músicas caíam como chuva no mormaço. Só aquele elástico invisível que envolvia os dois destoava. Era domingo. Maria parou debaixo da tenda do lado de fora da loja onde Roberto esperava de mãos estendidas.
            Sentindo o calor em ondas a partir de seu peito, ele esticou os dedos que ecoavam a pulsação, tudo muito quente, para roçar as pontas no rosto dela, mas seu suor se adiantou. A boca entreaberta, o semblante encharcado, a pele vermelha, os pingos de água morna... Roberto esfregou o polegar ao longo de sua mandíbula que, de molhada, estava fria. Ela deixou cair a sombrinha. Não havia vento para carregá-la.
            Maria fechou seus olhos de caramelo derretido e deu um suspiro profundo e quente, como tudo. Minúsculas gotas surgiram debaixo das pálpebras e, mesmo à penumbra, Roberto as viu brilhar.
            Ele se achegou e sua própria respiração pareceu mais fresca do que o ar em volta. Beijou os lábios salgados de Maria exausta como quem vem da guerra.
            Como estava tão abafado, foi bem-vindo virar água naquele momento.
            O desconforto, a dor, a angústia da espera dissolvida de repente, ainda fervia n’água como um sal de frutas para cair no fundo do estômago dolorido. Amarem-se era tão bom que doía. Os mesmos movimentos macios das peles em uníssono faziam correr calafrios em plena tarde fornalha – e eram calafrios que não pertenciam a outros, senão ao medo, aquele medo acre e cego, medo de criança que a gente nunca deixa pra trás. Reluzia ali no vazio da tarde de domingo um encontro imprevisível, uma queda de pressão e o batucar deslocado de um pavor sem nome. Em seu oásis, Roberto e Maria morriam felizes de estar morrendo.