Você olha para cima e vê a mão que
desce feito um borrão. Depois, gira atordoada esbarrando nos
móveis, esperando recuperar o equilíbrio que vem antes da dor. A voz por trás
da mão grita, mas seu próprio sangue latejando a impede de ouvir. A mão desce
mais uma vez, sobre outra parte do seu corpo. E ainda outra vez, fazendo com
que você se curve sobre o braço do sofá que encontrou pelo caminho. Longos
braços descem sobre você vezes sem conta. Você pensa que depois de tantos anos
já devia ter se acostumado, mas esse é o sentido da dor: ser sempre nova.
A noite passa e o dia chega bem
cedo. A mão desaparece guiada por seu dono, que cospe algumas ordens na mesa da
cozinha. Você se ajeita como pode e sai para obedecê-las.
No caminho para o mercado um
velho amigo te avista de longe. Ele te tira da rota das ordens e te leva para a casa dele, que também é uma espécie de santuário. Ele não defende religiões, mas
uma espécie de magia. Algo em você desperta para essa palavra, algo quente e
esquecido que faz todas as suas dores reacordarem também. Ainda assim, e por
causa disso, você o segue.
Ele lhe diz outra vez tudo o que
você já sabe. Perde a paciência. Te chama de fraca. Você chora. Ele pergunta se
você aceitaria a ajuda que ele tem guardada no quarto. Explica que o único
socorro para você está lá. Você o segue e se acha diante de uma parede coberta de
espelhos.
Sua imagem arruinada às dezenas reflete a mesma acusação. Você fecha os olhos por
um momento e ouve sua voz ecoando do lado de dentro, do fundo do estômago, empurrando os pulmões. Se você abre os olhos, ela está na sua frente. Se você
volta a se fechar, ela clama dos seus intestinos, ameaça se pendurar numa das
costelas. Então você diz que aceita a ajuda.
O velho amigo diz para você se
deitar na banheira de porcelana que ele tem no banheiro sem porta, no
fim do corredor. Você se deita na banheira vazia, inteiramente vestida.
Ele pede desculpas e tampa a
banheira com uma placa de mármore, te deixando no escuro tão rápido como se
você tivesse apenas piscado mais uma vez. Mas a escuridão não vai embora quando
você arregala os olhos. A tampa fria não se move quando você a empurra com as
duas mãos. O som da sua voz parece não ir a lugar nenhum fora dali enquanto
você se perde em perguntas e súplicas ao perceber que a banheira está se
enchendo de água.
Então a voz do velho amigo vem de
muito longe, pedindo a você que não se desespere. Aquela é a sua ajuda, e ela
não é o que parece.
A água te cobre por inteiro e
você conta os segundos enquanto o seu fôlego acaba. Seus braços e pernas se
esticam, esmurrando e empurrando as extremidades da banheira. O escuro te
abraça. O frio da água chega embaixo das suas roupas como um carinho. Você vai
morrer, e está gelada de desespero, mas há algo no frio que te acalenta apesar
de tudo. São como braços abertos que você sente surgir de dentro de si. Você
esquece quantos segundos já contou e entra naquele abraço, sentindo todo o seu
medo se misturar ao breu, sua fraqueza se desprender dos ossos; cada sentimento
abandona o seu corpo antes de você. Diante do vazio você percebe o quanto foi
uma pessoa medíocre. Sente que não vai fazer falta nenhuma.
Você passa pela morte e ela lhe
dá um breve aceno. Logo depois você está de volta à banheira, de olhos bem
abertos, empurrando a tampa e emergindo de volta à luz do dia.
E você está com muita raiva.
O velho amigo está sentado numa
cadeira de plástico ao lado da porta, esperando. Sua raiva não é por ele. Você
não compreende como, mas entende que recebeu a ajuda de que precisava. Ao sair
da banheira você percebe que a água está negra como se toda a cor das suas
roupas tivesse saído nela.
Você se sente estranhamente vazia, como se naquela
água tivessem ficado realmente o seu medo, a sua fraqueza, a sua covardia, a sua
abnegação e a sua boa vontade. Em seu novo estado você só sente a calmaria da
limpeza, que convive em paz com uma raiva imensa e concentrada.
Você agradece ao velho amigo e
volta para casa, deixando um rastro de água pelo caminho. Antes você tinha os
olhos sempre meio abertos, sem mirar diretamente a nada e ninguém. Agora você é
capaz de andar com olhos atentos e sentir desprezo em lugar de intimidação. E
pelo quê? Pela vida, tão somente. Sua própria vida que até hoje se moveu sem
sentido, por inércia.
Você chega em casa. É o final da
tarde. A mão e seu dono estão lá, fervilhantes à sua espera. Afrontados pelo
seu atraso. Ele lhe cospe mais palavras em cima. Pergunta por que porra você
está toda molhada. E sem esperar, te olhando sem te ver, ele vai erguer a mão
mais uma vez.
Quando você olha pra cima, vê a
mão se deter por um momento, o momento de ganhar impulso antes de se tornar um
borrão descendo. Mas a mão e seu dono param, e os olhos dele se arregalam para
você como se pela primeira vez percebesse que é uma estranha, e não a mulher
com quem vive há cinco anos. E os olhos ficam grandes de medo ao ver o sorriso
no seu rosto.
A mão desce em seu impulso, mas desta vez é
aparada pelo seu braço. Os olhos crescem mais, e o sorriso fala:
- Hoje não.