Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Voltar a morrer

Você olha para cima e vê a mão que desce feito um borrão. Depois, gira atordoada esbarrando nos móveis, esperando recuperar o equilíbrio que vem antes da dor. A voz por trás da mão grita, mas seu próprio sangue latejando a impede de ouvir. A mão desce mais uma vez, sobre outra parte do seu corpo. E ainda outra vez, fazendo com que você se curve sobre o braço do sofá que encontrou pelo caminho. Longos braços descem sobre você vezes sem conta. Você pensa que depois de tantos anos já devia ter se acostumado, mas esse é o sentido da dor: ser sempre nova.

A noite passa e o dia chega bem cedo. A mão desaparece guiada por seu dono, que cospe algumas ordens na mesa da cozinha. Você se ajeita como pode e sai para obedecê-las.

No caminho para o mercado um velho amigo te avista de longe. Ele te tira da rota das ordens e te leva para a casa dele, que também é uma espécie de santuário. Ele não defende religiões, mas uma espécie de magia. Algo em você desperta para essa palavra, algo quente e esquecido que faz todas as suas dores reacordarem também. Ainda assim, e por causa disso, você o segue.

Ele lhe diz outra vez tudo o que você já sabe. Perde a paciência. Te chama de fraca. Você chora. Ele pergunta se você aceitaria a ajuda que ele tem guardada no quarto. Explica que o único socorro para você está lá. Você o segue e se acha diante de uma parede coberta de espelhos.

Sua imagem arruinada às dezenas reflete a mesma acusação. Você fecha os olhos por um momento e ouve sua voz ecoando do lado de dentro, do fundo do estômago, empurrando os pulmões. Se você abre os olhos, ela está na sua frente. Se você volta a se fechar, ela clama dos seus intestinos, ameaça se pendurar numa das costelas. Então você diz que aceita a ajuda.

O velho amigo diz para você se deitar na banheira de porcelana que ele tem no banheiro sem porta, no fim do corredor. Você se deita na banheira vazia, inteiramente vestida.

Ele pede desculpas e tampa a banheira com uma placa de mármore, te deixando no escuro tão rápido como se você tivesse apenas piscado mais uma vez. Mas a escuridão não vai embora quando você arregala os olhos. A tampa fria não se move quando você a empurra com as duas mãos. O som da sua voz parece não ir a lugar nenhum fora dali enquanto você se perde em perguntas e súplicas ao perceber que a banheira está se enchendo de água.

Então a voz do velho amigo vem de muito longe, pedindo a você que não se desespere. Aquela é a sua ajuda, e ela não é o que parece.

A água te cobre por inteiro e você conta os segundos enquanto o seu fôlego acaba. Seus braços e pernas se esticam, esmurrando e empurrando as extremidades da banheira. O escuro te abraça. O frio da água chega embaixo das suas roupas como um carinho. Você vai morrer, e está gelada de desespero, mas há algo no frio que te acalenta apesar de tudo. São como braços abertos que você sente surgir de dentro de si. Você esquece quantos segundos já contou e entra naquele abraço, sentindo todo o seu medo se misturar ao breu, sua fraqueza se desprender dos ossos; cada sentimento abandona o seu corpo antes de você. Diante do vazio você percebe o quanto foi uma pessoa medíocre. Sente que não vai fazer falta nenhuma.

Você passa pela morte e ela lhe dá um breve aceno. Logo depois você está de volta à banheira, de olhos bem abertos, empurrando a tampa e emergindo de volta à luz do dia.

E você está com muita raiva.

O velho amigo está sentado numa cadeira de plástico ao lado da porta, esperando. Sua raiva não é por ele. Você não compreende como, mas entende que recebeu a ajuda de que precisava. Ao sair da banheira você percebe que a água está negra como se toda a cor das suas roupas tivesse saído nela. 

Você se sente estranhamente vazia, como se naquela água tivessem ficado realmente o seu medo, a sua fraqueza, a sua covardia, a sua abnegação e a sua boa vontade. Em seu novo estado você só sente a calmaria da limpeza, que convive em paz com uma raiva imensa e concentrada.

Você agradece ao velho amigo e volta para casa, deixando um rastro de água pelo caminho. Antes você tinha os olhos sempre meio abertos, sem mirar diretamente a nada e ninguém. Agora você é capaz de andar com olhos atentos e sentir desprezo em lugar de intimidação. E pelo quê? Pela vida, tão somente. Sua própria vida que até hoje se moveu sem sentido, por inércia.

Você chega em casa. É o final da tarde. A mão e seu dono estão lá, fervilhantes à sua espera. Afrontados pelo seu atraso. Ele lhe cospe mais palavras em cima. Pergunta por que porra você está toda molhada. E sem esperar, te olhando sem te ver, ele vai erguer a mão mais uma vez.

Quando você olha pra cima, vê a mão se deter por um momento, o momento de ganhar impulso antes de se tornar um borrão descendo. Mas a mão e seu dono param, e os olhos dele se arregalam para você como se pela primeira vez percebesse que é uma estranha, e não a mulher com quem vive há cinco anos. E os olhos ficam grandes de medo ao ver o sorriso no seu rosto.

A mão desce em seu impulso, mas desta vez é aparada pelo seu braço. Os olhos crescem mais, e o sorriso fala:


- Hoje não.