Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Requiem


Do que você precisa para esquecer uma torta, uma roupa
Debaixo do ferro
O dedo na porta, as calças do terno
O horário do filme, da aula, do enterro.

Do que você precisa para ajuntar povos e sorrisos de lamentos
Sobre um buraco de caixão
Uma vida inteira de conexões jogada em 4 segundos e meio de frustração
12 andares abaixo.

Do que você precisa para dizerem que te conheciam,
Que nunca desconfiavam,
Que merecias um troféu ou no mínimo uma medalha ou no máximo um afago
Ao fim
De cada dez minutos de uniforme.
Do que você precisa para manter a cabeça fria
e não despertar a fome de lágrima
E aquele anseio pelo absoluto negativo
Do zero empalado pelo meio
O cair, o ceder, o retroceder ao berço.

Do que você precisa para esquecer e não ser esquecido
Morrer burlando o sentido do negativo
Morrer para se transformar em ponto final da História.
Ah, suicida, que sede de coerência! Que pressões extremas moldaram-lhe os sentimentos.
Que sentimento, o dos dedos sobre o cimento do beiral,
O cheiro da umidade dos aparelhos de ar-condicionado
O vento que sopra no lugar onde ninguém deveria estar.

Do que você precisou para pular,
Para não congelar,
E não se arrepender, mas dar
O passo infinito à frente e se tornar barulho
De encontro ao chão?
Do que precisaram seus vícios, para virarem gás
Seus olhos, para virarem líquido
Sua cabeça bem centrada enquanto esperava o elevador no térreo?


De nada. Você precisava do nada.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Minhocas sobre o miocárdio


            Uma coisa se partiu, e lembro disso tão bem como de nada mais: aniversários, casamentos e crianças aleatórias. Disso eu me lembro tão limpidamente como uma lembrança tornada em pedra, e essa pedra lavada por toda correnteza. Disso lembro como se tivesse ouvido mesmo o estalo – como se tivesse havido aquele mesmo estalo. Do chumbo partido pelo meio; desse peso caindo pelo estômago adentro até as pernas frouxas.
            Essa agonia de alguma forma estarrecida, estrangulada, congelada pela brisa com o grito formado na garganta, os olhos de Metrópolis, a boca se abrindo no grito inconfessável. Congelou e partiu-se. Mas a hospedeira, que ainda é orgânica, chorou umas lágrimas bem amargas, patéticas e impiedosas de quentes contra o gelo de todo o resto, todo o resto. Todo o resto inconfessável do silêncio.
            Lembro bem, porque ainda reverbera no quieto do quarto, ainda finge que trabalha e batuca. De um jeito tão sem jeito, eu me pego gozando dessa dor, a lambiscar o sangue seco sobre a tragédia particular. Tão dilacerada é a minha face mais bonita, a desclássica, a que fala e fala para a mesma boa e velha cabeça sem ouvidos da inspiração. Cospe essa tinta como única forma de vida possível, o único poder criador aqui. As voltas da cachorra ao redor do próprio rabo, a revolta do Desejo que jamais se toca. O nome disto é agonia.
            E eu lembro que, muito adequadamente, chovia. E eu peguei a cadeira de praia e fui tentar ferir a cinza com aquelas cores. Sentei debaixo da chuva e fiquei lá.
            Todas as contas vieram se cobrar, fazendo ficha após ficha cair. Aceitei a derrota como elemento do cenário, como uma árvore no quintal que a prefeitura impediu de derrubar. Preferi pensar que as coisas são assim justo comigo porque nada se cria na felicidade. E eu sou uma criadora.
            Portanto, mais que de cinza, é preciso o luto. É preciso esse chumbo seco partido que jorra tinta por causa do impossível. Posso brincar nessa tinta de noite, dar essa voz a qualquer ouvido leitor, e gerar algo tão completamente livre que, vindo da minha própria morte, alimente outras vidas e salve-as.
            Dessa minha morte, que é a não-vivência de uma vidinha, surgem mais flores, como um cemitério no verão. Esse coração morto alimenta o solo e faz crescer uma oliveira cujas folhas acariciam a promessa do céu azul, e de cujos frutos vem óleo para a cabeça dos reis. Eu prefiro pensar, enquanto a tempestade engole as cores da minha cadeira, que de alguma forma meu coração acaricia a promessa. A vida trocada da felicidade é estéril, além de devaneio do velho Platão. O meu ser é ser tristonha, mas produzir algumas combinações de letras eternas. Pois, ainda que o meu nome se dilua nesse rio, a minha vida foi por isso, pelo imortal, pelo ideal que, este sim, este único vive para sempre.

domingo, 2 de dezembro de 2012

PassaTempo


Até que chegue a nossa hora – de dormir, de levantar durante o sonho, de navegar entre as ondulações que as estrelas produzem na Via – escrevemos. Vivemos, metade por metade, agarrando o beiral palmo a palmo até que os antebraços estejam bem fortes para aguentar o impulso das pernas para cima – para cima da cama, rapaz. Até que a gente se ache, se trombe finalmente, se estremeça sem entender nada, mas com as psiques se arregalando e reconhecendo mutuamente – ah, até lá a gente vai levando. Como dá, ou não. Às vezes não dá mesmo.
Às vezes se afunda num marasmo caudaloso, tão intenso que parece nem se mover. Nessas vezes, só uma força externa para quebrar a inércia – reiterando o que Newton já postulara – e essa força em geral é a amizade. O trabalho faz essas vezes também, mas é escorregadio. Ele embaça mais do que limpa.
Mas a espera prossegue. Os lugares-comuns se sucedem, como uma viagem de volta para casa. É tão tarde que os olhos pesam e eu sei que você me repete as palavras e o sentido. Eu sei que você tem a boca cheia desse gosto acre de não se exercitar como pensa que deveria. Eu sei que seus braços têm as pontas insensíveis e as unhas esbranquiçadas. Eu sei que o seu cabelo está quebradiço e sei que seu conjunto se vai, fraco. Também eu me esvaio e morro a cada grupo de segundos que me dou conta de contar. Por isso que escrevo, deixo de contar.
Porque aqui, é como iluminar a cena. Sob esta luz, seus olhos se vêem, e é a mágica. Por esquecer dos limites do possível, respira um pouquinho e se oxigena – pensa. Isto é carta, é diário; é ficção, lembra. Mas não significa que não seja verdadeiro, ou seja, que nada queira significar. Minha tinta vai dizer exatamente o que você quiser pensar: você é o objeto, e isto é o objetivo. Antes que a objetiva das minhas lentes finalmente te mirem, você já vai me amar pelas minhas palavras.
E vai chegar a nossa vez. É uma questão de fé.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Mais um beijo

              Nada mais do que a carne lisa dos lábios, a princípio sem forma ou calor no toque primordial. Sensação de alerta, incômodo e dúvida pelo prazer vindouro. Tão-somente aquela carne de textura incomum, brevemente paralisada sob suave pressão que cresce - e se desloca em direção à respiração, os dedos fechados ao redor dos antebraços, estômago ácido e, no entanto, um latejar satisfeito no fundo do cérebro e no roçar dos cílios sobre as maçãs do rosto do outro. Um manejar lateral da cabeça, e já se aprofunda o abismo de calor e água, vinho, lava, muito mais macio do que doce. Calados, com medo de arfar, prosseguem. Um beijo de bocas pequenas e pele arrepiada. Pontas de nariz pousam sobre marcas de sorriso. Leve rescender de perfume e quentura, simplesmente. Roupas suaves sobre as costas enlaçadas, dedos espaçados; cabelos para trás.
         Mas era apenas carne lisa, nada mais, e o ribombar em ritmo dobrado do coração, suor nas têmporas, condensação de medos. Era apenas calor, bochechas quentes e finalmente o toque definitivo de línguas. E em resposta um abraço mais apertado, o espaço mais restrito, uma batida nos pensamentos que voam para longe da razão. Um movimento mais acelerado, em curva, mas retilíneo em direção àquele calor da fonte, do profundo da terra. Ambos pensavam em zumbidos, nas dores de estar em pé, parados, colados, sem ressurreição. Era duplo tremer e duplo aproveitar até que o extremo se tornasse natural e, mesmo rápido, alcançassem graça na dança: cair para a planta dos pés, deixar as mãos frouxas enquanto as costas deslizam para frente, outras mãos espalmadas firme e ternamente sobre os ombros, peso para a ponta dos pés. Então constantes repetições, replay daquele prazer com ares de negativo, de apolar, de enjôo mais que de degustação. Prazer sem sorriso, com velada contemplação, do puro e velho sangue a clamar por mais.
             Novamente a carne, quente e vermelha feito um pirulito chupado, voltando como um cuco à casa em breves, pesados selos. No fim o prazer sorri, de leve, pois sua paga  logo virá em novos rompantes de dor. Voa entrementes a cumplicidade, que sempre parece culpa e às vezes, é. Aqueles olhos se veem pela primeira vez e, sempre em silêncio, jogam uma mão de terra sobre o que eram antes.

sábado, 27 de outubro de 2012

Trecho profanado


"(...) Ela escutava, porque era a música que Pietro Crespi a tinha ensinado a dançar. Amanda escutava porque tudo, até a música, lhe recordava Rodrigo.
A casa se encheu de amor. Amanda expressou-o em versos que não tinham princípio nem fim. Escrevia-os nos ásperos pergaminhos que lhe dava Melquíades, nas paredes do banheiro, na pele dos braços, e em todos aparecia Rodrigo transfigurado: Rodrigo no ar soporífero das 2 da tarde, Rodrigo na calada respiração das rosas, Rodrigo na clepsidra secreta das mariposas, Rodrigo no vapor do pão ao amanhecer, Rodrigo em todas as partes e Rodrigo para sempre."

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Mise en scène


O centro nos meios,
o bico dos seios
nas palmas das mãos.
As unhas nos novelos, as garras nos dedos dos pés pelas mesas agarradas no chão.
A fila do pão, o faroeste-sertão, a vista do outro lado da cabeça, o trem, as portas, a gente sem calão. Os dentes transparentes roendo
o pão, as unhas, as filas e o leite, só as garras que não.

O flerte com o cadete sentado em seriedade a partir das mãos. A boca séria que já morreu, gargalhou, xingou, jurou e bebeu água pelas beiras do palco,
tudo de mentirinha.

A coelha de boca aberta, os maiores dentes do mundo, baba. Simplesmente, àquela boca que ressente, vai saber por quê. Boatos dementes ou molho salgado melado na faca. Esta boca calada, feliz de atormentada; outra, ainda, invisível; mais uma falando da falada; a do lado, enrugada. O flerte mal realizado, risível, imaginário, a boca doce e seca...

Os bicos dos seios bem acomodados, o centro nos meios, palmas na plateia.

domingo, 29 de julho de 2012

Adoração

Me toma em teu compasso, que só no teu abraço eu me escondo do mundo.Meu corpo seja palco
Vertido e tomado em pêlo à tua poesia.
Eu adoraria, eu adoraria...


(Filipe Catto)

terça-feira, 10 de julho de 2012

La rencontre


             Um encontro que não durou nem 3 minutos, mas renderia até metade de um livro, um desses livros jogados em sebo empoeirando ao tropel dos dias, jogado como uma metade apaixonada na cama, se bronzeando com o tropel da carruagem de Apolo e a poeira que flutua ao sol lá de fora. Um tormento que, de tão doce, me embola a pele e eu mesmo não sei mais me esticar sem ser debaixo dele. Só pelo momento em que ele virou seus olhos para mim pela primeira vez; só pelo existir debaixo dos seus olhos e dentro dele.
            Por aqueles nem-3-minutos em que eu existi e ele era como aquele sol sobre a cama, como aquela poeira sobre os livros. Ele era ele e isso era melhor do que qualquer coisa do mundo. E ele pegou meus olhos estáticos nos seus e sorriu com a mesma boca onde nasciam as palavras
            - Oi, meu amor!
         e eu pude ouvir sua exclamação enquanto seus braços me pegavam, estática e arregalada, e seu queixo adorável pousava no meu ombro – deveras tenso – e foi perguntando “Tudo bem?” como se a simples afirmação de que eu era sua fã, o que quer que isso significasse, justificasse a gentileza rasa.
            - Não estava muito bem, mas agora que você perguntou, nada mais importa. Nesse meio minuto, já está tudo ótimo. Posso morrer assim que sair: neste momento, eu existo!
            Ao invés, só disse “Tudo”, na voz mais linda que podia inventar pra mim.
            E o resto foi meio confuso de tão bom. Não ouvia sinos, não enxergava névoa. Era a realidade, não menos dura. Só que eu conseguia recebê-la em igualdade, justificada por tudo aquilo, que era a angústia doce, o nervosismo feliz, a dança doida de tudo que eu trazia de bom e de ruim, tudo o que era meu e me fazia: eu amava. Meu corpo estava fechado.
            Eu falava, outros falavam e ele ouvia e tinha a mão no meu rosto, seu polegar direito afagando minha bochecha. E é claro que ele também estava cheio, repleto e feliz tanto quanto algum lugar dentro de mim cantava; apenas por outros motivos. Então, éramos dois felizes de mãos geladas. Juntos por 3 minutos.
            E poder lembrar e escrever é, assim, amá-lo numa ação, da melhor maneira que sei fazer. Apesar de todo contrário, isto é bom. Apesar de eu mesma pedir e implorar por muito mais da vida – uma vida – é de se contentar e pelo menos, sorrir.
            É um reencontro e eis a vida sendo doce.

sábado, 2 de junho de 2012

R: Não-ser

O suicida é um sujeito organizado. Quando acontece de ser sujeita, então, se acaba já
antes mesmo de se matar.
O suicida ouve as palavras que não fazem sentido e se sente agulhar,
ferido. Sem transparecer.
Doendo pelas próprias palavras que não sabe fazer nascer.
Pois já se vê que o suicida é sujeito de morte, não de vida.
Ele não sabe fazer a vida de forma alguma. De nenhuma maneira.
É sempre
sem saber, sem enternecer, sem ficar. O eterno passageiro que jamais se torna viajante.
O idiota, o intruso, o obtuso da normalidade: ele se morre pelas outras vozes.
Nos risos, tem ressaca.
A cabeça dói e ele se cala
como se fosse louco, mas não. Nada de louco; lúcido demais.
Vívido no que deveria ignorar.
Ele dói por ver a ausência.
A falta de amor ao que ele ama – que é inanimado ou impossível de corresponder – então o amor já incorrespondido vira amor não reconhecido
e assim sendo,
além dos juízos de valor sobre sua própria sanidade
– o suicida é senilidade, apesar dos 20 anos –
ele obtém juízos sobre seu oco interior.

Ninguém confia em alguém que não ama.
 E ninguém confia em alguém que ama o estranho.
E o suicida se pergunta
não será o próximo, sempre, um estranho?
E então ele, em sua indecência, se recolhe ao anonimato
mesmo sem ter esse direito
já que perdeu a identidade de fato.
Ele se rende ao fato.
Não: se rende a encarar os fatos.
Aí é que se morre.
Ele morre
nas palavras dos outros,
no tempo que escorre que é demais
demais nos sentimentos nojentos que escorrem das palavras inúteis dos outros, outros inúteis, vida inútil, existir de padecer
amoral, sem viver.
O que se tem o direito de procurar é na verdade dever.
Felicidade?, é a maior das mentiras e ele se morre
...(nas mentiras)...
Na não-verdade está o não-ser e o suicida enxerga isso
>Pobre Coitado<
Ele então se encontra
O só, o acordado
O das vocações para quê? Para nada. Enxergar não vale nada.
Ouvir e entender não vale nada.
Vale para se interpretar até chegar ao fim.
Mas felicidade é a busca, não o fim.
Se há felicidade, não existe fim.
Felicidade é felizes para sempre,
Sem morte.
Felicidade é ser.
Mas o suicida já sabe que a felicidade não é.
Se nem ela é, como pode ele? Ele chega ao inevitável.
Chega à arma, chega ao fim.
Organizado,
ele entra no quarto
e tranca a porta,
como se fosse um homem
indo orar.
Apóia um joelho na cama
e fecha as janelas.
Arruma o espaço
como se fosse óbvio, como se a vida não-vida fosse óbvia.
A dor do suicida é não duvidar de nada. Ele sabe
e isso não lhe faz diferença nenhuma.
Ele arruma
as roupas, tira os sapatos, alinha o anel e o relógio. Vê que são 18:10.
Vira-se e consegue não ouvir mais nada.
Isso dura alguns segundos. Logo ele se ouve, em silêncio, pensar.
Resoluto, resignado, reformado
de todas as intenções, ele vai quebrar
a lei de Deus e a dos homens.
Porque ele sabe
que a busca é inútil.
Ele sabe o que é não-ser. Agora é hora de pôr em prática uma coisa que seja.
O suicida se mata sem dor. Sem tempo de ouvir o próprio cessar.
Em verdade, nada mudou. Se sua lembrança foi frequentemente suscitada nas últimas semanas, foi por poucas.
O suicida nasceu suicida. Então, meio que não nasceu.
Saiu por vontade própria antes do fim, bebeu uma decisão
de sua própria concepção.
O único ato
o único fato
que o suicida produziu foi
a anulação.
Ele devia saber.
Se matou pela ânsia desesperada de ser.

Lá fora, excepcionalmente, o sol ainda brilhava.

Essa pseudo-poesia-crônica-sem-personagens é para o meu suicida preferido, Moritz Stiefel.

domingo, 20 de maio de 2012

Um caco

Foi recebido pela luz amarela do quarto. O peso das costas deixado num canto. Tão cansado que nem lembra como começar a se despir. Uma música massageia suas lembranças boas, longínquas, que depois de um dia tão cheio só vêm à tona quando se sente em casa: com a água quente nas costas e o cheiro familiar do sabonete.
Vem para a cama sem a luz, com o silêncio; e debaixo da coberta começa enfim a desabotoar o peito. Desamarra devagar o que reveste o coração, e se desprotege com a suavidade de um cego. Respira, exposto ao próprio calor, que se esquenta de verdade agora despido, nu de qualquer olhar, dos próprios olhos vagando dóceis entre o teto e a escuridão.

Um coração assim despreocupado,
cumpridor de seus deveres,
presente sem se dar a algum pecado de paixão,
nem parece coração.
Mente sereníssima presa do sono leve que segue aos dias pesados.

Deitado em sua cama, um homem que não pensa em ninguém. Que não jantou, que cheira a banho, pijama e sombra. Um homem que se traiu com o sorriso, nem de todo inocente, que veio despontando depois do peito descoberto esperando o sono a passos lentos.
Mas se era de fato homem, aquele calor deveria arder.

Ser-normal em nenhuma conjugação
rima com coração.

E aquele sorrisinho de soberba do homem que tinha coração e o via na própria mão, foi a lasca: coração não é para ser próprio. Se o quê da vida era ganhar o de um outro (ou fazer coleção), a regra é clara: não está certo segurar o seu, era até feio sentir o próprio calor, em controle de batidas, compassado – puramente biológico. O quê da vida não era dormir; era sonhar.
Foi quando o pensamento, como se fosse fala, calou. E o homem, ressabendo quem era, abriu melhor os olhos. O próprio coração que via, flutuando sobre o peito, leve, leve, leve, num gesto brusco da mão lhe apontou – A unha lhe varou – O indicador lhe empalou – E de tão leve que estava, seu coração estourou.
- Maria, meu amor...

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Carnívoros

            Não pense que eu sou boa, uma mocinha narrando a história, de cabelos e autoestima embaraçados. Uma mocinha em Ação de Graças. Eu não, não sou. Não ao cubo e agora: não se engane comigo, meu filho.
            Eu engordei meu amor como uma ave para o abate. Alimentei tuas esperanças, te fiz grande e rosado, cor de rosa como o amor que cabe a uma mocinha. Eu te fundei, te instituí, te cultivei, até te ninei enquanto cabia nos braços, enquanto cabia nos olhos. Mas até dos meus olhos tortos o amor se arrebentou, feito uma nota aguda que se sustém, mas morre: De repente. Meu amor que criei, foi pingando pra fora... Não pense que é livre, lindo que me rodeia. Eu te fiz só ter olhos pra mim, te fiz, teus olhos pra mim. Eu te previ, te pintei com minhas cores, vê a mim, desbotada, abatida? Essa sombra que te faz cintilar é minha. Eu te criei até estar pesado, difícil, impossível de esconder. Eu te criei até ser.
            Eu engordei meu amor pro abate, claro, como poderia se consumar sem sangue? Meu amor, engordurado, cheio de penas e eu, de lágrima. Não será insosso não, nosso filho. E eu que te segui, que me enrolei no seu cheiro, que arrastei os pés e cisquei nesses cílios enormes, nesses olhos de gente, nesse coração que te arrufa, redondo... Eu me sinto tonto.
            Não pense que sou boa, eu tenho a faca, tenho sim... eu, eu, sempre, comando a ação-narrativa. Eu que te criei, amor do meu dia (de graça!...), eu em ciscar fiquei tonta, tonta... Como uma ave decepada.

domingo, 25 de março de 2012

Em círculos

            Dentro da dor, vejo a esperança da cura. A cabeça que gira – e de um lado pra outro – renega que a realidade seja apenas isso, superfície de ar. E me afogo na irrealidade, na alucinação.
            A lista balança, presa pelo alfinete: os lugares aonde irei na esperança de crescer, tornar a mim mesmo maior e pleno, me emocionar com os mais variados tipos de arte e, assim, achar a inspiração para a minha própria. Vou na esperança de vir (a ser o que sou). Vou para a esperança, pois corro em círculos na palma de sua mão verde. Sobre a terra, minha cabeça que gira – e de um lado pra outro – renega a própria negação e se desfaz em absurdos. A coluna se desfaz em mesuras. O ar me açoita a cara.
            Depois dos dias, me deito sem sorrisos. Os motivos são indiferentes. A melancolia é meu óleo-motor. Só na dúvida há dupla vida e existir de poeta é ser múltiplo. Não colho respostas; produzo registros. E quanto mais doloridos, mais belos. Amor pra ser bonito, tem que ser triste. É impossível ser feliz sozinho. Preciso da dor e então, do amor. Do não-amor? Se o amor fosse vivido como sonhado, não seríamos felizes? E há dor na felicidade? O supremo prazer de seu sorriso, que rasga meu coração em cada dente. Preciso que você me adoeça, que me torture e que nunca esteja aonde vou. Eu preciso que você apareça do nada e faça meus pés doerem de vertigem. Eu preciso deste amor para me manter as mãos geladas e suando. Eu preciso do seu amor-alçapão, da sua cabeça sem ouvidos. Eu preciso ser triste, pagar ao inferno e renegar a tudo: aos tais motivos, até as palavras.
            Não tarda e renego também este texto.

domingo, 4 de março de 2012

Pérolas pelo fogo

            A correria acabou. O suor desce. O corpo batuca sangue pelos ouvidos e o céu é testemunha da montanha que alçou, do mundo que construiu e leva nos ombros. O sol já se acabou.
            Os limites, rompidos, enroscados nos tornozelos e, debaixo da poeira dos pés, toda a grandeza de seu passado. A luta finda, as luvas desatadas. O amor que se alcançou.
            Minhas lágrimas caem como um selo sobre o livro. E eu sempre soube que meu bom fim seria aqui.
            Estendo minhas mãos com as palmas para cima e não sinto mais o menos: o suor, o bater, o chorar. Dos meus braços pendem cordões de pérolas, cada uma um dia, uma semana, uma canção, um lamento. Delas fiz como um terço, que agarrei para me empurrar para frente, mas que agora são pesadas de tantas voltas, tão lindas, pois significaram sonhos. E são todas do mesmo tamanho. A que sonhei no banho, a que imaginei antes dos grandes passos. Todas importaram. Tudo que é sobre vencer. E vencer também foi abrir mão.
            Minhas lágrimas lembram de uma volta no pulso, onde fui loucura. E neste esfacelar-se de correr, como deve ser bom morrer nos braços de quem se ama.
            A correria já acabou. As voltas e voltas escorregam sobre meus braços estendidos. E não sinto mais, de tanto que sinto. Tua figura enche meus olhos. Teu sorriso é de filme mudo. Todas as luzes da cidade nos rodeiam.
            Todas as pérolas caem no fogo. E agora, vivo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Morfeu é o muso

Piscou o sono dos olhos e viu ao redor o que há um segundo era sonho. Lábios que se movem a intervalos, soltam risos esporádicos. E se destacam, muito vivos, num rosto pálido demais.
            Quando ele está sério, é bonito. O rosto está em harmonia: testa sem rugas, olhos atentos, nariz no lugar. Quando ele ri, tudo sai do lugar. Dentes pequenos, olhos semi-sombreados, nariz muito grande.

Vulnerável, e próximo.
            Prefere esta parte. Prefere-o vivo e verdadeiro por baixo da máscara de antipatia. Prefere quando ele fala, devagar como se estivesse nervoso. E ri de um jeito sério – se isso for possível.

Nos olhos, constantemente graves.
            Voltou a fechar os olhos. Começou a pensar coisas desconexas. E seguiu o rumo daquele desejo, de ter as pontas dos dedos dele sobre o seu coração.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Fé no Futuro II


Assim seguiu o dia, frio, como todo o resto do ano. Véspera. Não sabia mais em que ponto do deserto estava. Não sabia se o que via eram montanhas ou oásis, ou miragens que podia tocar, cheirar, mastigar. Olha que engraçada a miragem em forma de pizza – e ao mesmo tempo aquela tristeza condensada, pincelada de outros rostos e inesperada saudade de seus consolos.
            E finalmente percebeu que era por isso que doía: o que a esperava era completamente novo. Um cansaço quase mortalha, silêncio de terraço e carros. Uma mão para amparar o queixo. E adeus à amizade com cheiro de açaí.
Seria saudade.
          E viu, com a panela borbulhante, que não conseguia sonhar. Estava de pé cozinhando depressão que tinha nome, um nome espaçado e preguiçoso: e s p e r a. Olhou para cima. O céu era de ouro. A panela chiava.

            A rua torta, os olhos desacostumados. Grande desconfiança que a mantinha parada. Baixou os olhos por três segundos de saudade mesquinha do que fora arremedo de sonho e com o qual foi muito fácil se acostumar. Tudo o que confiava nela e a embasava. Mas o interior se duvidava intensamente. A dúvida era um braço teso que jamais se movia e aqui chegava clamando por uma cãibra que fosse. Achou que podia ver dentro do peito a rua escura, a tempestade incessante que tanto rodopiava, agitava, gritava, rugia, corria, enlouquecia – durante as horas de epifania clandestina, borbulhava – a tantos movimentos que já tinha achado ordem própria.
            Um uivo de braços abertos, bailarina ao som de blues; longos braços de vento. Constante, nem menos violenta era sua loucura. Em três segundos, só.
            A boca ainda agridoce, embora tanto se mordesse. Ainda mexia o caldeirão, a pequena maga. Respira em balões de alegria com K de constantes: o café da manhã, a felicidade alcançável e inquebrantável. Doces lágrimas, ternas e fartas. O céu de ouro e o nariz que ardia. O xadrez que não sabia jogar. E Deus. Jamais estava só. Respira. Seja sua fé o que move a mão para longe e vê:
            A panela está vazia!