Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Luto

Há vezes em que a nossa expectativa supera em muitos quilômetros a realidade. Mera realidade, fruto de acasos e fortuna. Eu, que sempre contei com a presença de Juliano na maioria das cenas de minha vida, achava incrivelmente absurdo que de repente restasse do meu amigo apenas a ausência, pedaço vazio de ar, vivo apenas dentro de minha cabeça.

Juliano vivia plena e fortemente dentro de mim. Sua lembrança se movia como um mestre de cena dirigindo minhas emoções: com um braço, erguia meus olhos pro céu; com um aceno, fazia-me chorar diante da xícara de café. Com esforço, após algumas horas bem quieto, enunciava claramente o meu nome em sua voz que reverberava em meus ouvidos - sim, juro, reverberava como se de fato soara junto a mim e não de memória - e assim podia descansar o resto da noite, havendo-se vivificado em minha tola reação.

Eu era a testemunha que restara de sua existência.

Diversas vezes, nos últimos meses, desenvolvi uma nova necessidade de retirar-me da presença dos outros e sozinha ficar, cismada, a contemplar novamente aquele absurdo. Somente após o desaparecimento de Juliano eu aprendi o significado desta palavra torpe. "Absurdo", escapava-me às vezes o sussurro que não se continha no oco de minha garganta e rolava-se dos lábios. "Absurdo", repetia outra vez tentando agarrar-me ao patético som de minha voz sozinha no banheiro. Um dia aqui e outro não mais. Um dia a menos, é tudo o que os dias são. Este é o fim. Este é o gosto do não-ser.

Eu me via refletida no espelho como um caco insistente após a ronda da vassoura. Sobrevivia, mas não vencia aquela guerra de forma alguma.

Vivi, sussurrava ele quando eu menos desejava ouvi-lo. E era apenas o que a lembrança me repetia, sem imaginação alguma. Vivi, chamava ele do além em meu cérebro. Vivi, gritou uma vez durante meu sono.

Doze meses se empilharam à minha frente antes que eu me desse conta de que a morte de Juliano era uma criança enrolada em minha nuca. Pesada, torta, carente por atenção. Faminta. De olhos fundos e presentes.

Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi.

Eu não sei o que eles esperam de mim. Deveria segui-lo até aquele mesmo patamar e tentar jogar a criança-saudade no mesmo chão onde o meu amigo se espatifara?

Tudo o que eu queria de você era você, Juliano.

Mas você só conseguia se enxergar em tudo à volta. Não havia Vivi. Haviam olhos que te olhavam e ouvidos que te ouviam. Nada mais. Você nunca quis nada mais. Não se deu conta que o único jeito de escapar de você era encontrar os outros. Mas os outros não valiam nada perto de você, Juliano. E quando você se reconheceu como nada também, o mundo acabou.

O dia em que esperei por você no restaurante, como em todas as outras semanas, numa quinta feira, às 17h30, para conversarmos sobre nossas vidas. Seus livros, minhas músicas, as esculturas de Beth e as contas de José Luiz. Confirmou no dia anterior. Nunca apareceu. Em minha cabeça eu vi minha própria ironia tomar forma para quando você chegasse. Vinte e cinco anos e resolveu inventar um fuso horário agora? Você iria sorrir por meio segundo, pedir desculpas e partir pro assunto do dia. Eu o vi antes de chegar. E eu o vi antes de jamais chegar. A morte é acostumar-se com o fato de que nunca mais haverá à frente aquela pessoa em todos os detalhes tolos que formam alguém. Uns cabelos fora do lugar, uma textura do lóbulo da orelha, o nariz exatamente daquele tamanho e que aumentava sempre quando ria. Você e você, como era e como era quando eu o olhava. Este é o que ainda está aqui.

Juliano, leva esta criança-saudade embora e deixa-me dormir em silêncio. Sei que peço a mim através do espelho do banheiro, onde ainda outra vez refugiei-me de te esquecer. Viveste. É certo. Mataste-te. É certo. Vives ainda em mim enquanto eu viver. Desculpa-me. Sei que era o teu desejo parar de existir. Sei agora. Respeito-te. Queda-te de mim. Deixo-te ir. Vence esta batalha.

Vivo ainda na guerra. Abro a porta e saio. Outros vinte e cinco anos me esperam. Deixo-te ao nada que é teu.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Capítulo VI - Podre


Ela se deitou na antiga cama, cheirando os lençóis limpos trocados pela mãe na noite anterior. A janela estava aberta para arejar e por isso o quarto estava dourado. Parecia uma ironia contra seu estado de espírito, mas ali sempre fora assim, disso tinha certeza. A pequena cidade das contradições. A primeira havia sido a diferença entre ela e a irmã.
Aos quinze anos, Luísa estava apaixonada. Ela fazia a irmã de confessionário, contando cada detalhe do que sentia e do que fantasiava. A Caçula ouvia, animada, a irmã mais velha que era sua heroína e modelo. Quando veio a decepção de Luísa, ela repetiu cada uma de suas lágrimas.
O homem era duas décadas mais velho e engordara cada uma das ilusões da menina até comê-la. Então, disse-lhe exatamente isso: "eu já te comi, agora só preciso palitar os dentes."
A Caçula sentiu-se envelhecer um ano a cada dia que passava vendo a irmã chorar, suspirar, xingar, se debater, cortar os braços e pedir para morrer. Na sétima semana, Luísa pegou o ônibus para a fazenda dos avós, roubou uma cartela de comprimidos do armário do banheiro e foi encontrada rígida caída contra o vaso sanitário, horas depois.
A Caçula nunca soube se ela tinha realmente a intenção de se matar ou se queria apenas voltar a dormir. Mas se lembrava muito bem da sensação de quando viu seus pais receberem a notícia, depois de horas esperando pelo pior, ainda magoados por suas palavras e gestos toda vez que tentavam descobrir o que estava acontecendo. E eles tentaram muito. Luísa só confiava em sua Caçula e deixou claro que, para continuar confiando, ela tinha que guardar seu segredo. A criança lhe foi fiel. E agora estava velando seu corpo na Câmara Mortuária da cidade.
A culpa se apoderou da menina com a força de um mau espírito. Ela chorou copiosamente durante sete dias, em que envelheceu outros sete anos. No final, aprendeu sua primeira lição. A ideia de um assassinato é algo capaz de criar mãos e sufocar o pescoço da cabeça que a concebe.
Ela criou mãos quando viu o homem em sua sala de estar, de preto, dizendo seus pêsames ao senhor Reis, seu colega de trabalho. Como uma reação química, ela sentiu seu luto derreter e se transformar em ódio ao som da voz do homem e, enquanto o observava, o mesmo ódio se solidificou em algo frio e cheio de farpas. Um cristal de desprezo.
O professor tinha o rosto franzido em pesar, ouvindo os lamentos dos pais da moça que havia comido e que agora se achava inteiramente digerida. Certamente não se pensava como o culpado. Era um típico homem de quase quarenta que ainda vivia sua infância tardia. Não reconhecia responsabilidades. E a menina de treze anos soube que poderia matar aquele homem.
O plano da menina não foi simples. Ela deixou que se passassem anos. Começou a escrever tudo de que se lembrava, a princípio pensando que remontava a figura da irmã, mas logo percebendo que construía a si mesma enquanto lutava contra a sensação nova e avassaladora de solidão. Dia após dia ela se deu conta de que primeiro precisava descrever a realidade para depois traçar o futuro e, assim, sua tinta se espalhou antes do sangue.
Houve uma tarde em que ela se apaixonou pela ideia de atrair o professor de Artes até o laboratório de Química e derreter seu rosto com ácido. Durante uma semana inteira brincou com a imagem do homem amarrado pelo pé à escada da piscina do ginásio, perguntando-se se ele realmente sangraria pelos ouvidos e pelo nariz depois de oitenta e dois segundos. Lamentou diversas vezes que o prédio da escola só tivesse três andares e jogá-lo do ponto mais alto o deixaria apenas aleijado. Com o passar do tempo ela se convenceu de que teria que ser rápida, pois não queria ser pega; pensou se valeria a pena abatê-lo de longe e chegou a aprender a atirar com seu avô durante as férias do primeiro ano, na fazenda. Mas armas eram coisas velhas e facilmente rastreáveis. Além disso, mesmo se seguisse seu devaneio de atirar primeiro em um joelho e depois na cabeça, o sofrimento duraria muito pouco e ela provavelmente nem o ouviria gritar de uma distância segura.
Nos dias piores, ela fantasiava em enfiar o próprio lápis 6B no olho do professor, enquanto ele se pavoneava para lá e para cá na sala de aula. Era quando captava o suspiro das colegas, arrastadas pelas palavras rebuscadas, feito peixes numa rede; quando reconhecia cada maneirismo que Luísa já havia lhe narrado antes: o sorriso sempre de boca fechada, o rosto muito bem escanhoado e os cabelos cuidadosamente grisalhos, já há vários anos. Nada mais era do que um ator representando a própria vida – preso na rede de faz-de-conta infantil que tecia para as menininhas, fadado a jamais sair daquele estado de mediocridade que erguera ao redor de si mesmo.
Ela conhecia o professor como ninguém. Sabia que ele morava com a mãe, uma senhora magra e bronzeada que ia à mesma igreja dos seus pais. Sabia que ele conseguiu seu emprego sem ser formado porque a diretoria na época da contratação era formada apenas por mulheres. Sabia que seu último relacionamento oficial fora uma história recontada ao infinito em que ele era o noivo apaixonado abandonado no altar – mas ela descobriu até mesmo que a noiva o largara depois de ser quase estuprada a duas semanas do casamento. Dali veio a célebre frase “você só quer me comer e depois palitar os dentes, idiota!”, jogada em sua cara como o insulto de sua vida. Desde então, ele regurgitava as mesmas palavras em ordens diferentes sobre cada adolescente que cedia ao seu encanto rasteiro. Ela sabia que o homem era incapaz de ir além daquilo e, por isso, era digno de pena.
No entanto, saber exatamente o nível de miséria em que o professor chafurdava em nada contribuía para o nobre sentimento de perdoar e esquecer. Ela não queria perdoar o homem que havia fodido o psicológico de sua irmã, além do corpo; tampouco agia levada por um sentimento vingador, ou para impedir que o sedutor em série voltasse a atacar e estragasse a vida de mais garotas. O que ela queria era ver ao menos uma manifestação de emoção que lavasse a grossa camada de hipocrisia por um instante; quebrar aquela máscara, desfiando o sorriso meloso arrancando fora cada dente. Provocar o horror naquele ator medíocre.
Foi no último ano da escola, quando alcançou a idade de Luísa, que ela criou sua cena.
Naquele ano, ela se colocava na perspectiva da irmã o tempo inteiro e a saudade às vezes vinha raiada de mágoa; pensava que ela tinha sido egoísta e fraca, desistindo de tudo por causa de alguém que era tão pouca coisa. Entretanto, aprendeu a lutar contra esse pensamento e conheceu que a dor possui diferentes tons. Ela olhava através de sua dor para os pais, que falavam em mudança para a cidade universitária, para os professores que ressaltavam a importância das provas finais, para os colegas cheios de planos para o futuro – e cada banalidade soava como uma badalada do juízo final.
Noite da formatura. Nenhuma estrela brilhava através das nuvens de chuva de novembro. O ar condicionado do ginásio, onde a festa foi montada, estava no máximo em vão. Era uma noite de ânimos agitados e ninguém parecia parar no mesmo lugar. Havia um clima de vale-tudo no ar.
A ideia de fazer a festa à fantasia era perfeita para aguçar ainda mais aquela sensação de agora-ou-nunca. A quadra estava forrada de veludo negro e lanternas de papel pendiam do teto a espaços irregulares. O tema da festa era “seja quem você quiser”, mas a pouca luz e a bebida alcóolica contrabandeada estavam transformando ligeiramente as ideias.
Sóbria, aquela que viria a se tornar Hórus andava pelo meio dos colegas como se flutuasse em um sonho. Como não tinha amigos, ninguém sentia sua falta. Seu corpo estava à mostra, mas o rosto estava coberto e ninguém a reconhecia.
Se havia um adulto à paisana naquela festa era o professor de Artes, e lá estava ele numa camisa branca com botões demais abertos, envergando uma máscara de fantasma da ópera. Sorria, fingindo não sentir o cheiro de álcool do próprio copo, nem ver o número crescente de alunos se esgueirando em direção aos vestiários. De seu canto, ele avistou uma super-heroína de capa esvoaçante: pernas através da fina meia-calça, e depois um corpo no espartilho roxo. O rosto estava meio coberto por uma máscara, mas ele nem se incomodou em procurar os olhos fortemente delineados. Se olhasse, talvez percebesse o sorriso que os esticava. Se olhasse, talvez reconhecesse o monstro que o mirava de soslaio nas aulas dos últimos anos.
Mas ela sorria porque sabia que ele não iria olhar. E foi sorrindo, com a boca escancarada numa silenciosa gargalhada, que ela passou pelo professor e o convidou a segui-la.

Ela o esperou na velha sala de Artes, como sempre atulhada de desenhos feios. O cheiro chegou antes dele. Cheiro de álcool e xarope de fruta que, ela pensou, o definia muito bem. Apontou para o mezanino, fazendo com que ele sentasse, risonho. Ele abriu os braços, convidando-a para o seu colo.
Num gesto rápido, que havia sido treinado todos os dias durante o último ano, ela sacou a faca do cinto da fantasia e cravou na garganta do professor. A sala estava escura, mas ela viu o rosto que odiava congelar entre o riso e a surpresa, a língua estirada comicamente para fora, os olhos esbugalhados. Lenta, quase carinhosamente, ela afrouxou a mão sobre o cabo da faca, sentindo-a tesa, presa ao corpo dele. Então girou o cabo, fazendo a lâmina rodar e abrir caminho para um jato de sangue furioso que encheu sua mão. Não sabia se o ruído gorgolejante vinha da ferida ou de um grito mal articulado, mas foi um som que a encheu de emoção. Posicionando-se longe dele, ela puxou a faca para fora.
O sangue era negro e caía em profusão. O professor seguia seu rastro, estupefato, como se assistisse a um filme. A menina observou o espetáculo, estranhamente entorpecida. Ele sofria. Mas era um sofrimento muito simples, sem consciência de ser. Talvez ela devesse ter se revelado antes, causado um pouco de medo nele. Talvez devesse ter falado o nome da irmã antes de atingi-lo. Um bêbado excitado não era nenhum desafio.
Subitamente ele caiu para trás, como um mau ator encenando a própria morte. Mas era real. Ele estremeceu mais um pouco e então ficou imóvel. A menina engoliu em seco, sentindo os segundos se passarem. Ela planejara, mas não esperava que fosse tão fácil. Tão rápido.
Aproximou-se, olhando brevemente para o rosto do professor Otávio. Na morte como na vida, medíocre. Foi atraída para a grande poça escura. Espalmou as mãos ali, sentindo o líquido penetrar por baixo das unhas, quente. Na escuridão, viu a própria pele sumir dentro do sangue. Um arrepio subiu por seus braços e se instalou na parte de trás da cabeça.
A sala se iluminou como se fosse dia. Três segundos depois, um trovão quebrou ao longe e a música alta que vinha do salão se calou. Com o coração disparado, a menina registrou apenas as cores: o branco da camisa, o vermelho escuro sobre o chão, o quase cinza do rosto de olhos bem abertos, o verde da lousa vazia à frente. Depois, o preto absoluto e o silêncio.
O clamor da festa se ergueu imediatamente, junto ao som de água que começou a cair como se tivessem aberto uma torneira. A menina deu meia volta e saiu da sala. Parada na beira do pátio, estendeu os braços e a chuva lavou o sangue lentamente.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Capítulo V - Estrada 116


O céu azul lampejava a custo através das nuvens brancas e do verde escuro das árvores às margens da estrada. Hórus observava a paisagem familiar passar rapidamente pela janela do ônibus, uma parte de si distraída, como sempre, com a beleza das montanhas. Toda vez que fazia essa viagem ela se questionava se tudo sempre fora assim, belo e pacífico, ou se era a saudade que coloria sua perspectiva.
Encolhida no banco macio, apreciando o vento que enchia o ônibus pelas janelas abertas, ela aproveitava o tempo para pensar. Caíra finalmente no estado de espírito silencioso e contemplativo que a ameaçara durante toda a semana. Após o acontecimento do poema, sabia que deveria ceder à autoanálise; ainda que tivesse procurado se ocupar com a limpeza de seu apartamento, lavando roupas, organizando livros, apagando manchas de sangue e saindo com Serafim, em algum momento teria que desligar a música de fundo das distrações e encarar os fatos.
Parecia correto que usasse o tempo da viagem para isso, enquanto se afastava da cidade de muros pichados com seu codinome. Sabia que era uma ilusão, pois o celular com as notificações do Up and Date estava bem ali em seu bolso. Ainda assim, havia algo de reconfortante em ver a estrada rolar abaixo de si e o sol faiscar nos vidros a cada brecha entre as árvores.
Há quantos anos ela tinha ido embora? Parecia tempo demais para alguém que ainda era tão jovem. Não saberia dizer em números, mas se lembrava muito bem da sensação de estar naquele mesmo ônibus, em direção contrária, seguindo a madrugada pelas janelas que só lhe mostravam de volta o próprio reflexo na escuridão; seu rosto frio, estranhamente seco, como papel. Hórus ainda não possuía seu nome, mas já havia se tornado quem viria a ser. Lembrava de ter passado muito tempo olhando as próprias mãos, perguntando-se como conseguia não sentir mais nada depois de vê-las lavadas de sangue. Era um sentimento curioso, pois quanto mais tempo passava pensando sobre aquilo – seu primeiro assassinato – menos pesada se tornava a culpa. A menina estava dividida ao meio: uma parte sabia que tinha feito algo de que deveria se envergonhar para o resto da vida; a outra parte já havia pensado o suficiente e aceitado que, por mais condenável que fosse, o homicídio fizera todo o sentido em seu contexto.
Ela sentiu o céu da noite se abrir e derramar uma revelação: o certo e o errado não eram tão simples como a ensinaram na igreja. O amor de que ouvira falar tão exaustivamente era muito mais misterioso do que qualquer um ao seu redor poderia suspeitar, ela pensou então. Tinha encarado uma face do amor que era simplesmente aterrorizante. Não era fácil continuar depois daquilo; ainda sentia em seu corpo o peso daquilo. E, mais pesada do que tudo, estava a realidade, que era maior do que sua consciência – não era fácil, mas era possível.
Hórus aprendeu que não havia nada de emocional em matar alguém, mesmo que seu primeiro crime tivesse sido passional. E, ainda que ela sentisse prazer em se machucar, enquanto aprendia a viver sua nova vida, e que fosse atingindo uma espécie de êxtase a cada nova morte, aquela parte de si que sempre parecia já ter pensado em tudo lhe explicava pacientemente que: tudo era cálculo – e assim que pensava, o véu caía novamente e ela conseguia enxergar os planos traçados no ar. Houve um tempo em que a menina acreditava ser a mão de Deus sobre a terra, para limpar e servir. Logo isso se dissolveu na realidade outra vez: nada havia de divino no que ela fazia. No máximo alguma divindade profanada, antiga ou nova, como tudo parecia ser na cidade onde morava agora: grandioso e sujo.
Ela achou seu nome na internet. Uma filóloga traçara a origem da palavra “whore”, puta em inglês. Até então ela nunca tinha se interessado por mitologia clássica. Achou fascinante que um deus menor do Egito tivesse, ao longo dos séculos, se travestido em um xingamento corriqueiro. Quando fez seu début como heroína maldita, a palavra veio aos seus lábios como uma resposta pronta, e o famoso olho começou a aparecer em toda parte. Mas isso ainda era quando ela não matava por dinheiro, e o prazer era apenas efeito colateral do dever cumprido.
Ela gostava de desafiar a própria ansiedade ao esperar o dia inteiro pela noite, quando saía às ruas mais sujas, a cada lugar comum das páginas policiais. Era muito simplória em seus primórdios, frustrando assaltos e evitando estupros, torcendo por ataques de gangues para poder deixar um sobrevivente que espalhasse seu nome. Nessa época, toda a questão se tornara comum para ela e ainda tinha bases bíblicas. Quem via a oportunidade de fazer o bem e não fazia, estava condenado. Então, ela fazia a coisa certa.
Mesmo que em alguns momentos o certo fosse aleijar os marginais que, coincidentemente, atravessavam seu caminho.
E como ela gostava de ser aquele paradoxo ambulante: a despeito de sua aparência, ela é que era a razão do medo de quem lhe cruzasse os passos. Quando as vítimas passavam por ela, refletiam o horror e o reconhecimento. Algumas caíam a seus pés como se quisessem adorá-la; mas nessa época, Hórus já tinha se dado conta de como poucos percebiam que sua atitude heroica era apenas questão de minutos que separavam uma assassina de uma salvadora.
A sorte a encontrou quando percebeu que fazer a coisa certa poderia ser seu meio de vida. O aplicativo de recompensas decodificava aqueles padrões que ela enxergava por instinto, ampliando seu alcance de forma extraordinária. Antes, ela havia se acostumado a sair pela noite em busca de criminosos, ironicamente, como um homem saía em busca de prostitutas. Agora, ela podia se dar ao luxo de tratar cada alvo como uma conquista completa e dedicar-se a um de cada vez, entregando-se sem reservas a cada personagem criada para a nova cabeça, até que começasse a criar personagens também para as épocas de paz.
Aos poucos a mulher percebeu que a parte de si que pensava em tudo agora era o seu todo e que, enquanto fosse Hórus, não poderia mais resgatar seu primeiro nome. Assim ela colecionou nomes de guerra como uma autêntica whore, empenhando o próprio corpo a cada nova missão e permitiu-se se orgulhar ao ver os dígitos acumulando em sua conta, como uma prova literal e mundana de sua vocação uma vez divina. Hórus sorria, tendo finalmente achado harmonia.
E foi quando ela aprendeu que bem e mal, assim como há tanto tempo se revelara sobre o certo e o errado, também não eram conceitos fechados em si mesmos, como o mundo gostava de estabelecer em seu preconceito pétreo.
Foi assim que ela se deu conta, em meio à velha Estrada 116, de que era por isso que escrevera um poema sobre Serafim. Não porque descobriu que conseguia se relacionar com um homem sem ter a intenção de matá-lo – o que geralmente constituía seu maior prazer – mas porque, se podia existir alguém que compreenderia aquela revelação, seria ele.
Tudo, absolutamente tudo na vida era tão-somente questão de perspectiva.
Hórus esticou as pernas no banco do ônibus, se espreguiçando. O dia crescia lá fora e ela antecipava o café da manhã que a receberia em menos de meia hora. Puxou o celular e ligou para a mãe. Era 24 de dezembro e ela estava indo passar o Natal em casa.

Havia muitos anos que o Natal perdera seu significado original, uma vez que as religiões perderam seus principais fiéis entre a população. O novo deus era o dinheiro e este era, cada vez mais, capital imaginário em eterno desfile de dígitos sobre telas. E por mais que no passado houvesse um notável amálgama entre as igrejas e o dinheiro, aquilo também se desfizera. Quando o mundo se esvaziou com a maior das guerras, a velha lei da sobrevivência imperou outra vez. E então ficou muito claro, até para quem ainda desejava enxergar com os olhos da fé, que somente os preços haveriam de conservar seu valor.
Hórus se reconhecia como um produto de seu tempo, variando de opinião conforme seu humor: em alguns dias era um instrumento de ordem social, em outros somente isto, um produto. Ela se sentia propensa a refletir sobre tudo aquilo mais uma vez enquanto andava pela cidadezinha parada no tempo, carregando sua mala. Sorria apreciando o contraste, sentindo-se deslocada. Era como se conseguisse se ver de fora, arrastando suas botas impermeáveis inúteis naquele tempo seco, mas que escolhera porque estava chovendo na cidade quando saiu. Ela observava os rostos de seus conterrâneos, apertando os olhos no sol forte, envergando bicicletas por toda parte. Houve um tempo em que odiou tudo aquilo com força demais. Sentia-se muito bem agora, ao perceber que estava perfeitamente em paz com as lembranças e que isto não era produto de sua insensibilidade, mas resultado de ter se tornado uma adulta. Talvez fosse sempre assim quando voltasse para a casa que não era mais a sua casa, ela pensou enquanto destrancava o portão, talvez sempre cruzasse com aquela que tinha ido embora e lhe concedesse o perdão que nunca havia pedido.
Ela parou na varanda, ouvindo de longe a conversa de seus pais por baixo da música do rádio, provavelmente vindo da cozinha. Entrou pela porta da frente, destrancada, e respirou fundo o cheiro da casa que rescindia a chá verde. Suas botas faziam barulho no piso da sala, mas a conversa animada não cessou. Ela parou no portal, encostando-se à cortina de contas que separava os ambientes, admirando a cena. Primeiro viu seu pai, alto e grisalho, de camisa social branca mesmo sendo feriado, rindo enquanto contava uma de suas histórias cheias de detalhes. Sua mãe estava de costas, curvada sobre a bancada, os cabelos pretos presos num coque, balançando a cabeça. A qualquer momento ela iria interromper o marido para pedir pelo amor de Deus que fosse direto ao ponto, mas era claro que estava se divertindo.
Ela esperou uma pausa na história para anunciar sua presença e os dois se voltaram, surpresos.
- Eu devia saber que você ia entrar de fininho de novo! – ralhou a senhora Reis, secando as mãos em um pano de prato. Rindo, ela fechou os olhos para não ficar tonta com a nostalgia que a envolveu dentro dos braços de sua mãe. O senhor Reis, percebendo que a esposa não a soltaria tão cedo, juntou-se ao abraço formando um montinho no meio da cozinha abafada.
Seguiu-se uma hora inteira de carinho e reclamações de ausência. Como esperado, a pequena mesa fora posta e estava apinhada de comida, sem espaço para um cotovelo. Não que ela se atrevesse a colocar os cotovelos na mesa na presença de sua mãe, de qualquer forma.
A senhora Reis deixou passar apenas o tempo necessário para ver a filha se alimentar e logo a despachou para o banho, indo imediatamente se ocupar do almoço. Seu pai intimou que viesse conversar com ele na varanda assim que descansasse, pedindo pela enésima vez que desse outra chance ao chá verde que era sua especialidade.
Respirando fundo, ela se virou para a escada e avistou ao longo das paredes os quadros com fotos da família. Conforme subia, era como reviver a própria história. A mais antiga era de seus trisavós, uma litografia em preto e branco. Depois, seus bisavós em cores desbotadas, posando na frente da antiga fazenda. Seus avós sorriam em cores brilhantes num parque, no ensaio de casamento. Seus pais estavam abraçados em uma colagem que misturava vários anos, com destaque para a foto da mãe grávida. Então, a família completa: o pai, já professor, sorrindo em seus óculos de armação grossa com o braço nos ombros da mãe, funcionária da Prefeitura, em um vestido leve que balançava ao vento. Abaixo deles as duas meninas ajoelhadas na grama, abraçadas e com os rostos colados. Luísa, a mais velha, de olhos claros e cabelos escuros, e a Caçula, aquela que viria a se tornar Hórus, de olhos escuros e cabelos claros.
Ela parou no degrau seguinte, diante do registro de formatura da irmã. Era uma bela foto, com a moça séria na roupa azul marinho, os cabelos escovados caindo pelos ombros, seu lindo rosto equilibrado nas proporções. Ficou diante dela, vendo-se refletida no vidro da moldura. Os olhos da outra escureceram, o rosto ganhou uma auréola dourada. Mas fora isso, eram quase iguais.
- E aí, maninha – sussurrou ela, como era seu hábito.
Hórus seguiu para seu quarto, finalmente alcançando o patamar. Sentia a tristeza e a saudade se espalhando em ondas pelo corpo, pensando como era curioso que tudo relacionado à irmã mexesse com ela de forma tão orgânica. Tinha sido assim desde a depressão e do subsequente suicídio. Desde então, tudo o que significava destruição do lado de fora, ecoava dentro de si de forma pungente, tanto para o pesar quanto para o prazer. E este era o momento do pesar, ainda uma vez.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Capítulo IV - Comum


Faltavam dez minutos para o fim do expediente de Serafim. Ele observava o relógio no canto da tela de seu computador marcar 3:50 da manhã. Estava cansado, mas sentia uma parte de si totalmente alerta, fazendo planos em um canto de sua mente. Tentava ignorar a ideia que surgira em algum ponto das últimas noites, enquanto cumpria o trabalho monótono, mas a hora se aproximava rapidamente em que teria que admitir: três partes estavam despertas e de acordo. Ele iria se submeter.
Desligou o computador e foi ao banheiro lavar a caneca de café. Deu uma olhada no espelho. Seu rosto se refletia cansado e com olheiras, os lábios estavam secos, o cabelo caía de qualquer jeito sobre os ombros. Debaixo das sobrancelhas pesadas, seus olhos escuros encaravam a própria imagem, desdenhoso. “Não está se sentindo o rei da beleza agora, hein.” Ele deu uma risada curta e seca, sacudindo a caneca sob o fio d’água. Não queria ceder à ideia dos outros. Iria parecer um maníaco.
“São 4 da manhã. Ninguém vai te ver agindo feito maníaco.”
“Eu estou vendo agora mesmo. É isso que importa.”
“Não suporto esse drama. É só uma volta para casa por um caminho alternativo. Relaxa.”
A imagem do prédio de Bianca, envolto em sombras na madrugada, surgiu em sua cabeça. Ele imaginou as duas janelas da frente. Uma era a da sala, atrás do sofá onde ela havia subido em seu colo. A outra era a do quarto, atrás da cama em que ela provavelmente dormia naquele momento. Talvez conseguisse divisar uma das estantes de livros, se houvesse alguma luz esquecida acesa. Talvez ela tivesse insônia e estivesse lendo alguma coisa. Talvez estivesse saindo para correr extremamente cedo porque não conseguia dormir e desse de cara com ele ali, em sua calçada, exatamente como um maníaco.
E talvez ela o encarasse com aqueles olhos de bicho e o convidasse para entrar, porque não sentiria medo dele, apesar disso.
Ouviu o barulho da água cessar e se deu conta de que havia fechado a torneira. Engoliu em seco, confundindo lembranças e sonhos. Ele iria até lá, nem que fosse para ter a sensação patética de estar realizando uma ação, sete dias depois daquele encontro. Sim, ele iria, decidiu enquanto voltava à sala e pegava a mochila – e talvez até esperasse ela sair e a convidasse para tomar café da manhã.
Saiu para a noite que minguava lentamente, sentindo o sereno fresco se depositar sobre o rosto. Serafim gostava do seu horário de trabalho insano. Ele havia sido escolhido justamente por sua disponibilidade, afinal, o Up and Date era um aplicativo para assassinos, e estes em geral escolhiam a noite para entrar em ação. Tudo tinha que estar funcionando normalmente a todo o tempo – se um usuário contatasse em busca de ajuda médica, ele responderia com o endereço do hospital mais próximo; se solicitassem mais informações sobre um anúncio, ele realizaria a busca; se enviassem a prova de missão cumprida, ele abriria o processo de verificação e recompensa. Toda a Mind7 funcionava debaixo daquela máxima: uma pessoa valia por várias e nenhuma área era desconhecida a um funcionário. Na prática, era o bom e velho acúmulo de funções, mas o slogan oficial era perfeitamente motivacional e adequado a seu tempo.
Aquela noite tinha sido igual ao resto da semana, com uma única ocorrência.
Eram quase 22 horas quando Henrique postou o anúncio – uma cabeça comum, como chamavam, apenas um pouco acima do valor inicial. Um estuprador de viela, acumulando vítimas e escorregando pelas mãos da polícia. Caso típico. Logo depois da postagem, ele se despediu do colega e foi embora.
Serafim se perguntou se existia algum tipo de estudo sociológico sobre aquilo – o fato de um aplicativo ser mais eficiente no controle criminal do que o próprio Estado. Era um fenômeno recente, pensou, e compreensível. No caso em questão, a cabeça havia vitimado doze pessoas. Dez utilizaram o app. Nos registros policiais constavam as outras duas denúncias. Era o nó dos crimes sexuais. O século XXII estava às portas e a sociedade padecia das mesmas mazelas de sempre: o velho ciclo de pecados e culpas.
Eram 22h03 quando a notificação apareceu na tela: “Hórus aceitou esta missão”.
Ele pensou em correr e chamar Henrique de volta, mas desistiu. Sabe lá em quanto tempo Hórus cumpriria a missão. E ela – presumindo que fosse mesmo “ela” – nunca pedia ajuda mesmo.
Serafim levantou, foi até a mesa no canto da sala, encheu sua caneca de café e voltou a acompanhar os gráficos em outra janela do computador. Quando terminou de beber, a notificação apareceu: “Missão concluída” e o anexo com a foto do homem degolado.
Pouco mais de meia hora para resolver o caso que passou pelo processo de checagem ao longo da semana inteira. A vida realmente era só um detalhe, pensou ele, recordando uma antiga canção.
Prosseguiu com o protocolo de avisar à polícia e encaminhar a solicitação de recompensa referente ao caso 0131476 ao departamento financeiro. Sentindo uma estranha excitação, ele também escreveu o e-mail para Hórus registrando que sua prova havia sido recebida e ela teria o valor na conta cadastrada em até 48 horas úteis.
E aquilo era tudo. Provavelmente algum recorde do app fora quebrado pela velocidade em que o caso havia sido resolvido. Agora estavam novamente sem pendências e Serafim teve um longo e tranquilo plantão, que gerou o vazio necessário à sua mente para desenvolver a ideia terrível de stalkear Bianca.
Depois de quase meia hora de caminhada, ele chegou à rua dela. Diminuiu o passo instintivamente, sabendo que não deveria prosseguir, mas certo de que iria até o fim.
E lá estava.
Exatamente como ele imaginou, exatamente como se lembrava da casa. As janelas estavam escuras. Ela dormia lá dentro, tão próxima e tão distante. Se ao menos fossem 4 da tarde... Ele poderia chamá-la para sair como um cara normal. “Não, querida, meu expediente é de madrugada porque meu trabalho é auxiliar os matadores mais notáveis do país. É, eu sei... Mas o salário é excelente.”
Uma certa parte dele sugeriu que Bianca não era o tipo de mulher que se importaria com aquilo, e sua boca se curvou em um sorriso. O que ela faria se ele batesse em sua porta e dissesse simplesmente “Desculpe o horário, mas só consegui assumir a liderança agora. Os outros três foram dormir.”
O que será que ela iria pedir desta vez?
Serafim se obrigou a balançar a cabeça com força, espantando aqueles pensamentos traiçoeiros. Não era assim que ele queria encontrá-la pela segunda vez. Queria fazer as coisas direito. Para isso tinha que ir embora imediatamente, mas não conseguia se mover. De pé na calçada deserta, no meio do absoluto silêncio, ele percebeu os minutos passando, dizendo a si mesmo que iria quando o céu começasse a clarear.
- Está perdido, senhor Leal?
A voz suave quebrou a noite, pegando-o inteiramente de surpresa. Engoliu em seco, empurrando o coração de volta pro lugar, quando a viu: um rosto cintilante no escuro, completamente tranquila.
Bianca mediu o homem na frente de sua casa, percebendo que se esquecera o quanto ele era alto. Reparou no cansaço estampado em sua figura, os cabelos desgrenhados, a mochila pendendo de um dos ombros de um jeito cômico, pequena demais para ele. Ela também tinha se assustado ao vê-lo parado ali, quando virou a esquina. Era como se ele tivesse caído de seus pensamentos e se materializado pela pura insistência de sua lembrança.
Serafim tentou falar alguma coisa, mas não sabia o que dizer. Deveria pedir desculpas? Ou inventar uma história de que aquele era seu caminho mesmo? Ele abria e fechava a boca, o pulso ainda acelerado apesar do susto já ter passado, e então o medo cresceu: tinha estragado tudo.
Bianca tombou a cabeça de lado, observando a confusão dominá-lo, até que não conseguiu mais esconder o sorriso e resolveu acabar com seu sofrimento.
Ele, vendo ela sorrir, permitiu que o medo diminuísse gradualmente. Não estava tudo perdido, então.
- Bom dia, Bianca.
- Acho que antes das seis ainda é boa noite – replicou, passando por ele e subindo os degraus até a porta – Mas, tudo bem. Bom dia, Serafim.
Havia algo no ar entre eles. Ele se aproximou como se flutuasse, sentindo-se bobo ao pensar nas palavras “dominado pela atração”. No entanto, era muito simples – ele notou enquanto subia a pequena escada. Simples, pensou novamente quando seus olhos se encontraram na mesma altura.
Uma mulher e um homem, juntos. Isto era tudo.

A parede de azulejos do banheiro, embora orvalhada da água quente que vinha do chuveiro, era fria contra as costas de Bianca. Ela precisava retesar as duas pernas ao redor de Serafim para não escorregar e esta era uma tarefa difícil, pois seus braços se encontravam inutilizados, presos à parede pelos pulsos, as mãos enormes dele feito grilhões.
Ela sorria ao sentir os dentes dele em seu pescoço, apenas roçando a pele, sem nunca chegar a morder. Aquele quase mandava arrepios pelo seu corpo abaixo até estremecer as coxas, o que provocava a resposta imediata do homem com nome de anjo: o espaço entre suas costas e a parede sumia e então era seguro relaxar, pois se achava totalmente suspensa nele.
Serafim recebia a água quente no meio das costas, mas só conseguia sentir calafrios. O corpo de Bianca à sua frente, ofegante e vaporoso, parecia irreal após aqueles sete dias de silêncio. Duvidava estar sonhando novamente – mas então os outros se manifestaram, discretamente, lembrando que seu inconsciente não era assim tão generoso. O eco dos gemidos de Bianca, junto ao som da água caindo, estavam causando um efeito arrasador: a estranha sensação de estar unificado, mais uma vez.
Ele libertou uma das mãos e segurou o rosto dela, afastando o cabelo do caminho para alcançar sua boca. Suas mãos se juntaram no pescoço dela, sem apertar, somente tocando – e então ele pôde ver o efeito que causava. A certeza de que seria tragado por aqueles olhos se repetiu, mas desta vez ele estava disposto a cair: ela o engoliu, empurrando-o mais fundo com os calcanhares na base de suas costas. Serafim contou cinco segundos enquanto ela o encarava sem piscar, e então sorriu largamente: mesmo tendo dito que seu nome não era adequado para um grito, foi isso que ecoou pelos azulejos em sua doce voz.

O cheiro de pão torrado e café envolveu Bianca e Serafim, sentados à mesa de uma cafeteria próxima à casa dela. O sol da manhã caía sobre eles através da janela, dando um aspecto saudável ao homem, que estava sem dormir havia quase vinte horas. Podia-se pensar que o banho e o sexo injetaram-lhe ânimo, mas na verdade ele estava usando um artifício típico seu: toda vez que se sentia no limite de suas forças, Serafim “trocava a chave”. Era por isso que encarava a mulher à sua frente com um sorriso relaxado e manso. Seu humor estava agora da cor da esperança.
Bianca bebia seu café apreciando o calor que secava lentamente seu cabelo. Ela percebia que estava sendo observada de maneira incomum e desconfiava da mudança de Serafim, mas estava achando tudo muito divertido.
- É como se tivéssemos pulado a semana, não é?
Ele sorriu, entendendo o que ela quis dizer.
- Quem me dera.
“Se segura, Verde. Ela não precisa saber que estamos de quatro... Apesar de ser literalmente isso.”
“Sério? Ela me encontrou de frente pra janela dela de madrugada. E a ideia nem foi minha.”
“Fica na sua, Branco, você é muito puritano.”
“Calem a boca e concentrem-se. Ela sabe como estamos, é só olhar pra ela.”
Hórus encarava Serafim, fascinada.
- Quem está falando comigo agora?
“Merda.”
Ele estendeu a mão por cima da mesa.
- Serafim Leal, para servi-la.
Ela riu enquanto ele beijava sua mão.
- Você sabe o que eu quis dizer.
- Sei... Bom, por que não tenta adivinhar?
Ela observou ele partir um pão, espalhar a manteiga e comer sem pressa alguma.
- Você não é o todo-bom. Nem o todo-mau.
Ele fez um muxoxo enquanto mastigava.
- Bom com um traço... Divertido, mas de pensamento rápido.
Ele piscou para ela e Bianca se divertiu mais ainda ao perceber que isso lhe provocava uma onda de excitação.
- Por outro lado, não sei bem como seria o mau-com-um-traço.
- O Vermelho? Hum...
Ela ergueu as sobrancelhas.
- São cores?
- É um jeito de chamá-los – ele disse, balançando a cabeça – Branco e Preto, Vermelho e Verde.
A garçonete deixou dois pratos de ovos mexidos na mesa e encheu suas xícaras.
- Então você é o Verde – deduziu Bianca.
- Como disse, ao seu dispor.
- E quem tomou banho comigo?
A garçonete, que estava se afastando, virou a cabeça involuntariamente. No mesmo instante, murmurou alguma coisa e saiu apressada.
- Ora... Parece que o Verde ficou vermelho – disse Bianca maldosamente, garfando a comida. Serafim, que sentia o rosto quente, parou de rir. Encontrou aqueles olhos de bicho e respondeu sem pensar.
- Melhor não brincar com o que não conhece, mocinha.
Hórus cruzou as pernas, percebendo a nova mudança. Não era difícil distingui-los, como havia pensado. Será que ele estava fingindo?
- Não quer que eu brinque com você? Acho que jogamos muito bem juntos.
Ela viu o rosto dele suavizar lentamente, primeiro com suas palavras, depois com o toque da ponta de seu sapato, com o qual alcançou a perna dele por baixo da mesa. Ele respirou fundo, bem devagar, tentando recuperar o controle. Ela subia por sua perna enquanto comia inocentemente o café da manhã, do outro lado da mesa. De repente, tomado pela inspiração, ele derrubou a colher no chão. Bianca fez um ruído de apreciação à comida quando sentiu a mão dele se fechar em seu tornozelo.
Então ele sumiu de vista, em busca da colher perdida. Bianca sentiu-se ficar descalça e então abriu a boca, surpresa: os lábios dele estavam em sua pele novamente. Serafim estava beijando seu pé.
Ela olhou ao redor, rindo como uma adolescente, procurando ver se alguém percebeu o que se passava, mas não havia ninguém por perto. Mal eram sete da manhã de um domingo e o único movimento era na cozinha, do outro lado do balcão onde a garçonete sumira.
Serafim estava de volta, parecendo satisfeito ao constatar as bochechas rosadas da mulher e o jeito que ela apertava os lábios, com evidente prazer.
- No chuveiro estávamos todos – respondeu ele simplesmente, alcançando o garfo e começando a comer.
Bianca assentiu, achando-se subitamente sem palavras. Queria perguntar quem havia acabado de desequilibrá-la, mas riu do próprio pensamento. De repente não parecia mais tão fácil distingui-los.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Capítulo III - Deus é uma mulher


Serafim andou pelas ruas como se ainda estivesse dormindo e sonhando. Seus pés se encarregaram de guiá-lo enquanto a cabeça se encheu de vazio e estática. Todo ele era um sentimento, enorme e sem nome, que dançava em sua boca em forma de sorriso e protegia sua cabeça da chuva que recomeçara.
“Lá vai o idiota outra vez”, pensou. “Como se gostasse de chafurdar na própria merda.”
Ele suspirou, sentindo a água fria escorrer pela testa. Como achou que poderia sair sem eles?
“Você é um cínico filho da puta mesmo. Vai dizer que não gostou dela?”
“Todos nós gostamos dela. Acho que podemos partir desse princípio.”
Serafim assentiu para si mesmo, balançando a cabeça na rua vazia.
“É, mas o veadinho já está querendo dar um anel a ela.”
“Nunca vou entender como gostar de uma mulher significa ser ‘veadinho’.”
“Você entendeu, sim. Esse Branco é branco feito um marshmallow mesmo.”
“E você é cor de merda, babaca.”
“Fica quieto, anjinho.”
“Volta pro inferno, projeto de capeta.”
“Podemos concordar também que o Branco é péssimo em insultos?”
- Por favor – grunhiu Serafim, falando sozinho enquanto esperava para atravessar a rua – Escolham um para falar e calem suas respectivas bocas.
“Tecnicamente, somos apenas vozes.”
Houve um resmungo coletivo.
“Bem... Essa é uma mulher interessante. Temos que vê-la outra vez comigo no comando.”
“Você, Preto? Por que alguma vez deixaríamos que você assumisse?”
“Porque ela pediu um encontro comigo, especificamente. E porque eu tenho ideias muito melhores do que fazer com ela do que os sonhos mais ousados de cada um de vocês, de acordo com o que ela quer.”
“É você que está sonhando, irmão. De jeito nenhum vamos deixar as suas mãos chegarem perto daquele pescoço.”
“Possessivo.”
“Reconheça que você acabaria com a diversão rápido demais.”
“Com licença, mas ela não parece o tipo que foge ao sinal de perigo.”
“Tem razão, Verde. Conhecemos o tipo dela. O que o Branco chama de ser ‘enrolado no dedo mindinho’, nós sabemos o que significa de verdade: um grande chute no traseiro.”
“Como vocês conseguem ser tão pessimistas?”
“Presta atenção, Branco. Essa mulher não precisa de nós. Ela não quer nenhum de nós. Mesmo que tenhamos outros encontros e inúmeros orgasmos, ela vai continuar tão envolvida quanto agora.”
“No final da noite, depois que ela tiver nos mastigado bastante, vai nos cuspir de novo e sempre.”
“É a natureza dela.”
Serafim olhou para o céu cinzento, perguntando-se vagamente por que sempre voltava àquele estado de espírito miserável.
“Deveríamos nos ajudar. Trabalhar para o bem comum.”
“Meu caro, é o que estamos fazendo. Você apenas não se deu conta ainda.”
Finalmente ele estava em casa. Por um momento, conseguiu esvaziar a cabeça de novo, como se pudesse fugir de tudo que o atormentava fechando a porta. Mas foi apenas um momento antes que a realidade voltasse com todos: o tormento não era algo que pudesse ser deixado lá fora; tudo estava nele.

Bianca estava em cima dele, e por toda parte: as pernas estendidas em seu colo, os braços em torno de seu pescoço, a boca inquieta. Ela beijava cada centímetro do seu rosto, dizendo sem parar “obrigada, obrigada, obrigada”.
- Por quê? – perguntou ele, segurando-a para que não caísse de seu colo.
Ela se afastou o suficiente para olhá-lo com um sorriso enorme.
- Você não tem medo de mim.
- Por que eu teria medo de você?
- Por causa do que eu sou – respondeu, simplesmente.
Ele segurou o rosto dela com as duas mãos, novamente impressionado com o quanto ela era pequena em comparação. E, no entanto, o que sentia desmentiu aquele fato evidente. Bianca era enorme. Era ele que se sentia preenchido por ela, como se não houvesse sobrado                                  nenhum vazio dentro de seu corpo. Mal conseguia respirar. Mesmo assim, sorria contagiado por sua alegria enigmática.
- O que você é?
- Você sabe – ela disse, virando o rosto para beijar a palma de sua mão.
Antes que pudesse falar mais, Serafim abriu os olhos em seu quarto vazio. Era o meio da tarde de domingo. Já não chovia e o céu estava branco. Ele piscou, confuso, sentindo distintamente o peso de Bianca sobre suas pernas e a pele muito quente onde ela o havia beijado no sonho. A sensação de plenitude começou a se dissolver lentamente, conforme se dava conta de que estava só. Tudo estava em silêncio.
Tudo, inclusive ele mesmo.
Por um momento, ele estranhou o sentimento que não tinha há anos: era apenas Serafim. Nada de cores, somente uma massa cinza. Simples e pacífico.
Ele sabia que não iria durar muito, então respirou fundo e saboreou o instante em tudo o que conseguiu capturar. O cheiro do quarto, a luz da janela, seu corpo que esfriava devagar. E a imagem de Bianca em sua cabeça, ela inteira em um sorriso.
Quando acabou, ele ouviu uma risada distante e seu humor se coloriu novamente, de acordo com o que ria.

Pela primeira vez desde que começou no emprego, quase um ano antes, Serafim se sentia disposto a iniciar seu expediente. Pensando melhor, talvez fosse a primeira vez em sua vida que se sentia ansioso por trabalho, para se distrair com os códigos e chamados da área de tecnologia da Mind7, a maior desenvolvedora de aplicativos do mercado.
Ele ainda teve que amargar as horas mortas da segunda-feira até que chegasse o seu turno. Decidiu que faria uma hora extra e seguiu direto para o prédio no Centro da cidade depois de almoçar. Ao menos andando pelas ruas caóticas, ele dividia sua atenção entre desviar de transeuntes e camelôs e voltar ao ponto cego de seu fim de semana – os lençóis de Bianca.
- Que é isso, meu bom, caiu da cama? – perguntou Henrique, virando-se na cadeira ao ouvir a mochila ser arremessada no cubículo ao seu lado.
Serafim soltou algo entre um suspiro e um bufo, dirigindo-se à mesa do canto da sala para encher sua xícara de café.
- São 6 da tarde, cara.
- Eu sei, e o seu horário começa às 7. O que foi? Cansou de dever horas à empresa?
- Não, vim salvar o teu rabo de ser soterrado pelos chamados do fim de semana.
Henrique riu, ajeitando os óculos no rosto moreno.
- Está tudo sob controle, cara. Você que parece desalinhado.
Serafim se recostou na cadeira e olhou para o teto, percebendo que não tinha a mínima vontade de provar o café.
- Saí com uma mulher. Foi ótimo. Não sei se vou vê-la outra vez.
Henrique encarou o amigo com os olhos arregalados.
- Você?
- É, eu – respondeu Serafim, olhando para ele pela primeira vez, incomodado com seu tom de voz – Qual o problema? Achou que eu era gay?
- Não, não foi o que eu quis dizer – replicou ele, rindo – É que você não é o tipo de cara que fica amuado pelos cantos por causa de mulher.
Serafim voltou a olhar pro teto, desejando que o café fosse uísque. Não pela primeira vez, pensou como era irritante ser julgado como um certo “tipo de cara” por causa de sua aparência. E imediatamente uma das cores gritou “mimizento” ao longe, em sua cabeça.
- Eu não tô amuado... Só... Sei lá.
- Parece a definição exata de amuado.
- Tá bom então, eu tô amuado. Por causa de uma mulher. E agora?
- Agora liga pra ela, ué. Você disse que o encontro foi bom. Ela deve estar amuada também – riu Henrique.
Serafim sorriu sem querer.
- Duvido.
- Ih... Vou nem perguntar mais nada. Se precisar desabafar, tô aqui. Se não quiser, podemos beber umas depois.
- Você não é casado?
- E a gente deixa de ter sede quando casa?
Eles riram enquanto Serafim ligava o computador.
- Tá, o que temos pra hoje?
- Nada mucho, hermano. Pelo que eu soube, tem um caso grande sendo processado, mas só deve sair semana que vem. Enquanto isso, pequenos delitos, mas nada digno de Hórus.
Serafim riu, vendo surgir a interface da Mind7 em seu monitor.
- Há quanto tempo ele não faz nada?
- Mais de um mês. E é “ela”.
- Como você tem tanta certeza?
- Pelo modus operandi, cara. Ela só ataca homens escrotos. Os chefões na conta dela só tinham por perto uma mulher na hora da morte. E as coisas que ela faz com os corpos... Sério. Por que um cara cortaria o pau do outro e sufocaria ele com o bagulho? É uma mulher com certeza!
- Tudo bem – aceitou Serafim, sem pensar muito no assunto. Já ouvira o colega tietar o primeiro lugar do Up and Date muitas vezes, desde que começara a trabalhar ali. Como supervisor do principal aplicativo da Mind7, era natural que Henrique fosse o mais interessado nas flutuações do ranking de caçadores de recompensa; mas ele era um verdadeiro fanboy da pessoa misteriosa denominada Hórus, que ele insistia em dizer que era uma mulher a despeito de não haver nenhuma prova de sua identidade real.
- E o evento do app, já tá sabendo?
- O e-mail não abriu ainda. O que é?
- Uma comemoração pela meta atingida. 50 mil recompensas em 12 meses. Parece até que os top 5 vão ganhar medalhas.
- Alguém disse uma vez que se você mata uma pessoa é assassino, mas se mata centenas é um herói – filosofou Serafim, bebericando finalmente o café.
Henrique riu alto.
- Você não tá entendendo. Vai ser um evento de verdade, tipo baile de gala. Se a pessoa aparecer, ganha o prêmio. Se não aparecer, não ganha.
- Querem coagir os assassinos mais bem-sucedidos de um aplicativo anônimo a aparecer em público, em traje esporte fino, para ganhar mais dinheiro além das recompensas que eles já acumularam? É isso?
- É mais do que isso, meu amigo. É a assassina mais bem-sucedida da história do nosso aplicativo em vestido de noite. Imaginou?
Ele balançou a cabeça, achando graça da animação do colega. “Nosso aplicativo”. Quanta ingenuidade.
- Ela não deve aparecer, Henrique.
- Eu também pensei que não, mas tem mais uma coisa em jogo.
- O quê?
Henrique esperou que Serafim olhasse para ele, fazendo suspense.
- O evento vai ser o anúncio da maior recompensa já oferecida. É nisso que estão trabalhando. E só quem estiver presente vai poder participar.
- Caralho. Que cabeça vai ser essa?
- Há rumores, mas não recebemos nada ainda.
Ele repassou rapidamente os últimos grandes casos de escândalo e os crimes hediondos. Nada de incomum entre as tragédias naturais com fundo de negligência e a corrupção endêmica do governo que caía aos pedaços. Então ele se lembrou.
- Ela não vai vir, sinto muito. Se for mesmo uma mulher, ela não vem.
- Agora é minha vez de perguntar: por que tanta certeza?
- Porque se for a cabeça que eu tô pensando, é outra mulher. E não acho que a Hórus quebre o modus operandi só pelo dinheiro, ainda mais se expondo.
- Outra mulher? Peraí, tá falando da...?
- Ela mesma. Não viu que está foragida? A Língua de Sangue.