Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sob cachos caóticos

            Usava a caneta apoiada na têmpora como um cano de arma que a qualquer momento fosse explodir – mandando palavras-pensamentos, pré-palavras, palavrentos, pensalavras e sanguetinta pelo ar, deixando marcas indeléveis e inconvenientes, insistentes sob sabão e pó, em todas as quatro paredes.
            Atrás da orelha, a revolução. À frente dos seus olhos, nada. Caneta insiste na têmpora. O dedo acaricia o projétil... Espera disparar a letra.
            Dança a ponta da Bic no papel espalhando seu gozo continuamente, às vezes alegre, divagando sobre nada, às vezes tristonha, riscando a alvura só pelo ato de profanar. Adora errar. Anda viciado em más decisões e verbos de ligação controversos. Não fala, não fala, não fala; mudo, mudo, mudo! Repete o silêncio teimosamente. Incita a exclamação inexistente. Nega-se à ação. Ampara-se no meio do seu nada; o seu nada muito particular. Cai de braços abertos numa escuridão ligeiramente estrábica.
            Recusa-se a falar porque não faz sentido. E, sem pistas de uma conclusão, ponto final.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Paixão


Ele passa e nada acontece. Ela não sente nada. Nem um arrepiozinho ou a descarga de um hormônio qualquer, um calorzinho diferente no peito, ou qualquer diminutivo que o valha. Sua cabeça está cheia de ar. Chega a fazer um esboço de raiva por si mesma. A ausência de reação é revoltante, suspeita que por ser um alívio. Não é amor, não é paixão, não é afeto. É nada. Ou alguns olhos ávidos espreitando, um tanto inocentes, da sua paranóica visão periférica.
Ele era uma possibilidade nadando em volta do seu anzol. Mas ela não quer puxar a linha, não quer nenhum placebo. Sua paixão, pobre menino, desaguaria em lugar nenhum no afã de saciar uma sede inexistente. Estímulos puramente físicos (que nem estão se fazendo presentes agora, imagine!) são superestimados.
A paixão não é exatamente o anzol ou o se debater no chão, capturado pela superfície. É apenas aquele momento de cortar a água, tão quieta e confortável... e descrever aquele belo arco no ar, respingando pérolas de sua vida recém perdida, ainda segurando o fôlego nas guelras, impelido por uma dor tão irresistível que só se pode amá-la. Paixão é um momento muito rápido que em seu ápice já descreve a própria ruína. Porque o fim do arco é o chão. E então a convulsão dentro de uma euforia irracional, que será prontamente esquecida e, uma vez esquecida, o que resta são as pérolas e o ar – volúvel ar, ah.
Aí esse desejo de ser capturado de novo e de voar de novo – mesmo sabendo que o destino é o solo – e de enxergar o mundo sem a ilusão da água – mas o que é a realidade, senão o que nos mantém até o próximo instante? Ansiar por algo que não pode fazer bem só poderia ser típico de gente. Natureza humana.
Mas agora, como já dito, nada há. Só lembrança e sonho que, sozinhos, conseguem ser tão poderosos como o atualmente tangível não alcança ser. Isso, que não nomeio amor por motivos que encheriam outros textos, não explode e não se mata; ao contrário, é tão simples que só respira. E respirando, se faz presente. Estando aqui parado, de olhos abertos e esperando junto dela, já é mais emocionante do que qualquer estímulo possível. Invisível assim é a sua causa. É o que lhe contém sendo. Respirando quente dentro do peito preenchido por algo tão próximo de fé, e é por essa fé que vem andando.

Afinal cada dia é um a menos no caminho até o futuro, esse que se delineia difusamente, sem parecer ter pressa, sabendo muito bem em que dia chegará. Qual é essa esperança, que está na estrada? Às vezes parece que só existe a estrada e ela é tudo. É o real, o que faz barulho. Mas é de fé que ela fica de pé, lembra. O que ela espera é o teu perdão.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Sendo (s)eu

As saudades do Sol. Do terraço, do maiô. Dos meses em tom de sépia que são o cenário da velha alegria.
A saudade das ruas de pedra e árvore, os bairros se sucedendo e as horas para sempre claras. A simples saudade de andar com a música no bolso, um livro debaixo do braço e os olhos atentos. Andar, só andar e imaginar que você também conhece isto, que já fez estes mesmos passos.
Saudade do verão, da esperança verde das amendoeiras, do ar-condicionado do teatro, do ingresso nas mãos e dos seus braços. Saudades de sentar na praça ou à janela e assistir as luzes indo esmaecendo. Uma saudade de respirar aquele ar. De viver aquele tempo, de adivinhar que estou mais perto.
Saudades do Sol, só. Saudade do Rio.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A crônica do contêiner vermelho

 
E no meio da areia e do lixo, ele se erguia como uma afronta a toda a paisagem: um sol caído, escandalosamente vermelho.
Os cachorros não chegam mais perto. As crianças brincam de costas. E é só o inverno. Imagine quando o verão vier, impiedoso. Instigando o suor. Aí vai ser o deserto literal.
Pior é que ninguém sabe o que tem dentro dele. Ou pelo menos prefere dizer que não sabe. Que na verdade o contêiner vermelho, colossal, brilhante e novo como nenhuma vida ali é, está cheio exatamente  de tudo o que há ao redor. De lixo. De nada. De pior-que-nada. Coisas que já foram úteis, que viveram e hoje vegetam. Coisas. Todas despejadas ali de qualquer jeito, encerradas sem ar, na sombra. Um monte de morte junta. Sem nem saber do intenso do outro lado da parede irritando a paisagem: sendo um escândalo encarnado.
Todos os dias eu o encaro jazendo ali, orgulhosamente vivo. E sigo no meu próprio deserto particular. Mastigo palavras, conto sorrisos. E no dia seguinte lá está, com sua tinta tinindo de nova, cortando o ar e o éter. Faz a gente pensar que até o que é feito para ser velho tem que começar novo. E os olhos dóem ao vê-lo. Seco. Irascível. Com seu interior ignoto. No minuto que leva para perdê-lo de vista, não há movimento ao redor. Nada que denuncie seu conteúdo: nada. Ele só existe, e nada mais. Estranhamente comum.
O seu ser-e-nada-mais obriga a pular linhas, pois o raciocínio não é mais válido. Obriga a: parar e pensar. Sinto até certa gratidão. Pensar sobre nada é necessário. Mas não o nada qualquer. Esse mundo está intoxicado de nada. O nada do contêiner vermelho, em sua ambiguidade cintilante, é um nada construtivo. Quebra os limites do absurdo. Ele é nada. O nada é alguma coisa.
É, é sim. Se não for, que será todo o resto? O resto dos presentes que se tornam futuros e também obsoletos e descartáveis. O vermelho insistente, dolorido, enraivecido é a prova cabal de que algo – talvez eu, andando pela rua – faz algum sentido neste algum mundo. Por ser & não ser, nós também somos.  E não somos, claro.
Então posso prosseguir. Acolho a afronta com a boca envergada, cúmplice. Entendo o escândalo com paciência. E vou adiante, um pé à frente do outro, me sentindo um pouco melhor.