Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Aos Ínferos

Ela se viu de frente para a privada branca, muito branca mas não limpa no reservado de compensado encardido. O cheiro distante do álcool usado para esfregar as paredes ainda flutuava ali, como um fantasma do esfolamento sistemático cometido pelos faxineiros. Ela inspirou devagar e fundo pela boca aberta, sentindo-se vazia como aquela água rasa diante da qual estava, e vazia como aquelas paredes manchadas.
Saiu do banheiro e coxeou até a porta da loja cara, depois pelo corredor afora do shopping center. Um princípio de desespero ia crescendo dentro dela, mas continuou rumando para o sul, para a casa de Fernando.
Ele a recebeu com um sorriso de surpresa, apertou-a nos braços no caminho até seu quarto e perguntou o que foi.
- Estou grávida.
Ela assistiu ao seu semblante desmoronar e sobrarem apenas os olhos, muito abertos. Depois sentiu a própria cabeça girando. Piscou os olhos e se sentiu febril, ou como se tivesse chorado, mas não tinha. Então ouviu-se dizendo algo sem sentido, mas que precisava dizer em voz alta.
- Desculpe.
Toda a conversa que tiveram sobre o que deveriam fazer foi pior do que se tivessem apenas sentado lado a lado em silêncio. Logo Gloria pôde tatear aquele desespero, engoli-lo junto com a saliva e quase vê-lo sobre as mãos, deitado entre seus dedos. Por um descuido estúpido, estava apavorada. Olhou de lado para seu namorado, que olhava para frente, a testa franzida no rosto fechado. Não era culpa de ninguém?
Ela tinha horror à gravidez, mas nunca disse a ninguém. Não conseguia embarcar nos devaneios de um futuro no parque conduzindo crianças que gritavam. E então ficou muito claro para si mesma que ainda era jovem demais, próxima demais da infância. Não carregava condições de se tornar uma mãe. Todos os seus devaneios espontâneos, grandes como edifícios fundamentados no mundo onírico, viriam abaixo dali em diante. Tudo o que nasce demanda uma morte, ela pensou amargamente. Como a semente que se deforma e mergulha na terra, afundando-se fundo e fundo pleonasticamente para que outra coisa, totalmente diversa, germinasse na superfície. Gloria gostava da luz e tinha uma visão perfeita. Ela gostava da vida que tinha e se afeiçoara ao ritmo que construíra. Não podia conceber, pensou deixando uma risada mouca escapar, que destruísse o próprio ritmo.
Voltou para casa um pouco depois, naquele estado de preocupação em que o cenário e o tempo se fundem e voam à revelia de quem vive.
Estou ficando louca, ela pensava rapidamente enquanto abria a porta de casa.
Eu o odeio.
Afundou numa cadeira, afundou o rosto entre as mãos, sentiu as costas doerem.
Eu te odiei desde o início.
Não importa quem era Gloria. O que a constituía, o que a rodeava, todo o seu passado. Era irrelevante. Interessa o que ela fez.
E no fim, ela acabou concebendo algo.
Eu te amei até o fim do mundo.
O policial chamou seu nome. O mundo inteiro parecia roxo, cor de tempestade. Ela se moveu como se estivesse dormindo, como se andasse entre a chuva, como se atravessasse uma sopa, a sopa primordial, a sopa da vida.
Sentou na cadeira de metal com um baque. Ela não era atriz. Ela ia mentir.
- Denúncia de estupro?
Ergueu os olhos roxos, roxa de tempestade.
- Sim.
Só se colhe o que se planta.
Calculou as datas e chegou a chorar enquanto se desculpava por não ter vindo antes. O policial, desconcertado, cheio de nuvens nas rugas da testa, disse o que era verdade.
Não seja absurda. A culpa não é sua.
Ela então disse que queria abortar. O pensamento do policial foi de que aquela mulher não poderia ter um filho. Quase inconscientemente, foi o que ele pensou ao olhá-la à sua frente. Ela não poderia.
O tempo passou rápido mais uma vez.
Gloria sumiu de casa, pediu dias no trabalho, adiantaram-lhe as férias. Era uma boa garota. Seus telefones tocaram enquanto ela estava longe. Fernando ficou muito preocupado. Ela lhe deixou um recado. Vago e pequeno.
Mas ela foi ao hospital. Chorou mais uma vez. Esperou deitada, tentando sair do próprio corpo para não atrapalhar o processo.
Não era mais vazio nem desespero. Era um medo substancial e sem cor. Ela engolia em seco, encolhia os dedos, continuava chorando em silêncio. O tempo não voava agora. Olhou para baixo e percebeu as próprias mãos unidas sobre a barriga, como se houvesse algo ali para ser sentido. Como se estivesse num caixão.
Apenas o medo incomensurável, implacável. Até agora ela podia desistir. Podia, num movimento mínimo, ser forte.
Pensou se conseguiria respirar quando adormecesse. Deveria ser como todas as outras vezes até então. O padrão dos cochilos, a facilidade da escorregada, um deslize de terra, um punhado de poeira. Anestesia. Sedação. Horas.
Gloria sentiu olheiras depois de tanta inconsciência. Sentia parte específica de sua pele enegrecida. Devagar, conscientizou-se do resto de seu corpo. Seu pobre e único corpo, o único que possuía. Estava só.
Estava só no quarto do hospital, pouca luz artificial vindo de baixo da porta. Era como observar de dentro da morte. Não havia emergências. O mundo esperava, porque era apenas o que existia. Não um movimento, nem o retrocesso. Tudo era espera.
Quando voltou para casa, Gloria não sentia o corpo muito diferente. Sabia que logo ia esquecer, sendo quem era. Isso a entristecia.
Entrou pelo portão em silêncio, e tomando um certo cuidado para mantê-lo. O dia estava escuro. Viu então, sobre a parede diretamente em frente, um filete negro e, ao se aproximar, percebeu que aquilo se mexia. De um buraco no chão vinham as formigas e se dirigiam para o alto, onde bem no meio havia uma gaiola. A gaiola do pássaro de Gloria.
O dia estava escuro porque era verão, e após dois dias de calor intermitente, ia chover. Gloria estava fora havia mais de 72 horas. A água do bebedouro devia ter acabado pouco depois que saiu.
A gaiola estava na altura de seus olhos. Ela distinguiu seu pequeno pássaro de costas sobre o jornal, em meio a sujeira de penas. Distinguiu as marcas das grades sobre o pescoço e no encontro das asas. Viu, entre seu bico muito aberto, a pequena língua. Os olhos estavam estreitos, nem abertos nem fechados. E viu as formigas. Tantas formigas. Quanto mais olhava, mais se moviam, entre o canário e ao seu redor.
Agarrou a gaiola, puxou-a para longe da parede e sentiu o pequeno corpo rolar.
Começava a chover. Gloria sentia a pressão do ar em seu próprio corpo. Sentiu-se cheia de suor a partir dos dedos agarrados à grade da gaiola, sujos de ferrugem. Pôs-se de joelhos no chão, mas sabia que não ia conseguir tirá-lo dali assim. Não podia tocá-lo com as mãos.
Inferno.
Ela arranjou um lenço grosso que pôs sobre o pobre pássaro. Ainda tinha as chaves no bolso. Saiu novamente.
A chuva quente encharcou a gaiola que Gloria carregava nos braços. Acomodado num canto, o bolinho de pano ia absorvendo a água e ficando escuro, pesado. Gloria andava sem parar no meio das ruas vazias, debaixo de água que não a limpava e carregando um pássaro que não cantava. Havia um terreno lamacento onde meninos jogavam bola. Gloria foi até lá e cavou. O céu estava claro por trás da chuvarada e ela via seus braços cinzentos contra a terra. Agarrou grandes nacos do canto do campo e os arremessou para todos os lados. Gritou enquanto afundava as mãos na água que se acumulava rapidamente. Sentiu a terra estremecer durante um trovão. Cavou com força até se sentir extremamente exausta. Até parar de sentir o ardor nos braços. Até quase deitar para continuar cavando. Quando decidiu parar, esticou-se até a gaiola e deixou que caísse no fundo negro. Arrastou-se de joelhos e, com um movimento largo, empurrou um monte de terra de volta para o buraco. A chuva não permitia que ouvisse o som da terra caindo. Ela empurrou mais e mais até perceber que estava apenas chafurdando na lama. Levantou e foi embora.
Em sua casa estava muito mais escuro. Parecia que era noite há muitas horas. Quando deu por si, estava deitada no chão do banheiro, emporcalhando o piso e o tapete de lama.
O chão era frio contra o seu rosto. Estava tão exausta que não sentia mais cansaço. Pensava devagar. Algumas coisas terríveis tinham acontecido. Sentia que se pensasse sobre elas, aquele momento se tornaria terrível. O que poderia tirá-la dali?
Uma coisa de cada vez. Um passo para o chuveiro, depois outro até a estante com a toalha. Passos, não luzes. Água fria. Bem podia ser que a tempestade tivesse cortado a luz.
Gloria tinha a noite toda pela frente. Fez tudo devagar. Deixou cada evidência desaparecer. As roupas numa sacola plástica, emboladas, para o lixo. Não acendeu nada. Moveu-se no escuro, acomodou-se no chão ao lado da cama, encolhida sobre o carpete. A chuva rugia lá fora.
Amanheceu logo e Gloria acordou de costas sobre o carpete. Não se sentia mais dolorida do que antes. Conseguia ver o amarelo refletido pela luz do sol se infiltrando pelas cortinas. Ela ia levantar, preparar café, pegar o jornal na soleira. Com calma. Foi passando os olhos pelo caderno de cultura enquanto espalhava margarina num biscoito. Ainda havia concertos gratuitos no parque. Havia um hoje, ao meio dia. Se ela saísse agora poderia ver. Então ela deixou a xícara na pia, lavou o rosto e pôs roupas novas. Pegou as chaves e foi para o metrô.

Era o mês do concerto de harpas. O parque, que era na verdade o jardim de um museu, estava cheio. A harpista estava numa pequena ponte sobre o lago e todos os bancos estavam ocupados. Gloria sentou na grama, apenas ouvindo, sem se preocupar em acompanhar os movimentos dolorosamente graciosos da mulher. Estava um lindo dia, apenas um pouco frio. Aquela cor amarela do sol escoava por entre as árvores altas. Havia muitos velhos e muitas crianças. Alguns cachorros. E aquela música que fazia chorar em silêncio, sentada atrás da plateia, aquela canção antiga cujo nome era uma sequência de números em atos. Gloria começou a se sentir melhor.