Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

domingo, 20 de maio de 2012

Um caco

Foi recebido pela luz amarela do quarto. O peso das costas deixado num canto. Tão cansado que nem lembra como começar a se despir. Uma música massageia suas lembranças boas, longínquas, que depois de um dia tão cheio só vêm à tona quando se sente em casa: com a água quente nas costas e o cheiro familiar do sabonete.
Vem para a cama sem a luz, com o silêncio; e debaixo da coberta começa enfim a desabotoar o peito. Desamarra devagar o que reveste o coração, e se desprotege com a suavidade de um cego. Respira, exposto ao próprio calor, que se esquenta de verdade agora despido, nu de qualquer olhar, dos próprios olhos vagando dóceis entre o teto e a escuridão.

Um coração assim despreocupado,
cumpridor de seus deveres,
presente sem se dar a algum pecado de paixão,
nem parece coração.
Mente sereníssima presa do sono leve que segue aos dias pesados.

Deitado em sua cama, um homem que não pensa em ninguém. Que não jantou, que cheira a banho, pijama e sombra. Um homem que se traiu com o sorriso, nem de todo inocente, que veio despontando depois do peito descoberto esperando o sono a passos lentos.
Mas se era de fato homem, aquele calor deveria arder.

Ser-normal em nenhuma conjugação
rima com coração.

E aquele sorrisinho de soberba do homem que tinha coração e o via na própria mão, foi a lasca: coração não é para ser próprio. Se o quê da vida era ganhar o de um outro (ou fazer coleção), a regra é clara: não está certo segurar o seu, era até feio sentir o próprio calor, em controle de batidas, compassado – puramente biológico. O quê da vida não era dormir; era sonhar.
Foi quando o pensamento, como se fosse fala, calou. E o homem, ressabendo quem era, abriu melhor os olhos. O próprio coração que via, flutuando sobre o peito, leve, leve, leve, num gesto brusco da mão lhe apontou – A unha lhe varou – O indicador lhe empalou – E de tão leve que estava, seu coração estourou.
- Maria, meu amor...