Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Requiem


Do que você precisa para esquecer uma torta, uma roupa
Debaixo do ferro
O dedo na porta, as calças do terno
O horário do filme, da aula, do enterro.

Do que você precisa para ajuntar povos e sorrisos de lamentos
Sobre um buraco de caixão
Uma vida inteira de conexões jogada em 4 segundos e meio de frustração
12 andares abaixo.

Do que você precisa para dizerem que te conheciam,
Que nunca desconfiavam,
Que merecias um troféu ou no mínimo uma medalha ou no máximo um afago
Ao fim
De cada dez minutos de uniforme.
Do que você precisa para manter a cabeça fria
e não despertar a fome de lágrima
E aquele anseio pelo absoluto negativo
Do zero empalado pelo meio
O cair, o ceder, o retroceder ao berço.

Do que você precisa para esquecer e não ser esquecido
Morrer burlando o sentido do negativo
Morrer para se transformar em ponto final da História.
Ah, suicida, que sede de coerência! Que pressões extremas moldaram-lhe os sentimentos.
Que sentimento, o dos dedos sobre o cimento do beiral,
O cheiro da umidade dos aparelhos de ar-condicionado
O vento que sopra no lugar onde ninguém deveria estar.

Do que você precisou para pular,
Para não congelar,
E não se arrepender, mas dar
O passo infinito à frente e se tornar barulho
De encontro ao chão?
Do que precisaram seus vícios, para virarem gás
Seus olhos, para virarem líquido
Sua cabeça bem centrada enquanto esperava o elevador no térreo?


De nada. Você precisava do nada.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Minhocas sobre o miocárdio


            Uma coisa se partiu, e lembro disso tão bem como de nada mais: aniversários, casamentos e crianças aleatórias. Disso eu me lembro tão limpidamente como uma lembrança tornada em pedra, e essa pedra lavada por toda correnteza. Disso lembro como se tivesse ouvido mesmo o estalo – como se tivesse havido aquele mesmo estalo. Do chumbo partido pelo meio; desse peso caindo pelo estômago adentro até as pernas frouxas.
            Essa agonia de alguma forma estarrecida, estrangulada, congelada pela brisa com o grito formado na garganta, os olhos de Metrópolis, a boca se abrindo no grito inconfessável. Congelou e partiu-se. Mas a hospedeira, que ainda é orgânica, chorou umas lágrimas bem amargas, patéticas e impiedosas de quentes contra o gelo de todo o resto, todo o resto. Todo o resto inconfessável do silêncio.
            Lembro bem, porque ainda reverbera no quieto do quarto, ainda finge que trabalha e batuca. De um jeito tão sem jeito, eu me pego gozando dessa dor, a lambiscar o sangue seco sobre a tragédia particular. Tão dilacerada é a minha face mais bonita, a desclássica, a que fala e fala para a mesma boa e velha cabeça sem ouvidos da inspiração. Cospe essa tinta como única forma de vida possível, o único poder criador aqui. As voltas da cachorra ao redor do próprio rabo, a revolta do Desejo que jamais se toca. O nome disto é agonia.
            E eu lembro que, muito adequadamente, chovia. E eu peguei a cadeira de praia e fui tentar ferir a cinza com aquelas cores. Sentei debaixo da chuva e fiquei lá.
            Todas as contas vieram se cobrar, fazendo ficha após ficha cair. Aceitei a derrota como elemento do cenário, como uma árvore no quintal que a prefeitura impediu de derrubar. Preferi pensar que as coisas são assim justo comigo porque nada se cria na felicidade. E eu sou uma criadora.
            Portanto, mais que de cinza, é preciso o luto. É preciso esse chumbo seco partido que jorra tinta por causa do impossível. Posso brincar nessa tinta de noite, dar essa voz a qualquer ouvido leitor, e gerar algo tão completamente livre que, vindo da minha própria morte, alimente outras vidas e salve-as.
            Dessa minha morte, que é a não-vivência de uma vidinha, surgem mais flores, como um cemitério no verão. Esse coração morto alimenta o solo e faz crescer uma oliveira cujas folhas acariciam a promessa do céu azul, e de cujos frutos vem óleo para a cabeça dos reis. Eu prefiro pensar, enquanto a tempestade engole as cores da minha cadeira, que de alguma forma meu coração acaricia a promessa. A vida trocada da felicidade é estéril, além de devaneio do velho Platão. O meu ser é ser tristonha, mas produzir algumas combinações de letras eternas. Pois, ainda que o meu nome se dilua nesse rio, a minha vida foi por isso, pelo imortal, pelo ideal que, este sim, este único vive para sempre.

domingo, 2 de dezembro de 2012

PassaTempo


Até que chegue a nossa hora – de dormir, de levantar durante o sonho, de navegar entre as ondulações que as estrelas produzem na Via – escrevemos. Vivemos, metade por metade, agarrando o beiral palmo a palmo até que os antebraços estejam bem fortes para aguentar o impulso das pernas para cima – para cima da cama, rapaz. Até que a gente se ache, se trombe finalmente, se estremeça sem entender nada, mas com as psiques se arregalando e reconhecendo mutuamente – ah, até lá a gente vai levando. Como dá, ou não. Às vezes não dá mesmo.
Às vezes se afunda num marasmo caudaloso, tão intenso que parece nem se mover. Nessas vezes, só uma força externa para quebrar a inércia – reiterando o que Newton já postulara – e essa força em geral é a amizade. O trabalho faz essas vezes também, mas é escorregadio. Ele embaça mais do que limpa.
Mas a espera prossegue. Os lugares-comuns se sucedem, como uma viagem de volta para casa. É tão tarde que os olhos pesam e eu sei que você me repete as palavras e o sentido. Eu sei que você tem a boca cheia desse gosto acre de não se exercitar como pensa que deveria. Eu sei que seus braços têm as pontas insensíveis e as unhas esbranquiçadas. Eu sei que o seu cabelo está quebradiço e sei que seu conjunto se vai, fraco. Também eu me esvaio e morro a cada grupo de segundos que me dou conta de contar. Por isso que escrevo, deixo de contar.
Porque aqui, é como iluminar a cena. Sob esta luz, seus olhos se vêem, e é a mágica. Por esquecer dos limites do possível, respira um pouquinho e se oxigena – pensa. Isto é carta, é diário; é ficção, lembra. Mas não significa que não seja verdadeiro, ou seja, que nada queira significar. Minha tinta vai dizer exatamente o que você quiser pensar: você é o objeto, e isto é o objetivo. Antes que a objetiva das minhas lentes finalmente te mirem, você já vai me amar pelas minhas palavras.
E vai chegar a nossa vez. É uma questão de fé.