Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Capítulo IV - Comum


Faltavam dez minutos para o fim do expediente de Serafim. Ele observava o relógio no canto da tela de seu computador marcar 3:50 da manhã. Estava cansado, mas sentia uma parte de si totalmente alerta, fazendo planos em um canto de sua mente. Tentava ignorar a ideia que surgira em algum ponto das últimas noites, enquanto cumpria o trabalho monótono, mas a hora se aproximava rapidamente em que teria que admitir: três partes estavam despertas e de acordo. Ele iria se submeter.
Desligou o computador e foi ao banheiro lavar a caneca de café. Deu uma olhada no espelho. Seu rosto se refletia cansado e com olheiras, os lábios estavam secos, o cabelo caía de qualquer jeito sobre os ombros. Debaixo das sobrancelhas pesadas, seus olhos escuros encaravam a própria imagem, desdenhoso. “Não está se sentindo o rei da beleza agora, hein.” Ele deu uma risada curta e seca, sacudindo a caneca sob o fio d’água. Não queria ceder à ideia dos outros. Iria parecer um maníaco.
“São 4 da manhã. Ninguém vai te ver agindo feito maníaco.”
“Eu estou vendo agora mesmo. É isso que importa.”
“Não suporto esse drama. É só uma volta para casa por um caminho alternativo. Relaxa.”
A imagem do prédio de Bianca, envolto em sombras na madrugada, surgiu em sua cabeça. Ele imaginou as duas janelas da frente. Uma era a da sala, atrás do sofá onde ela havia subido em seu colo. A outra era a do quarto, atrás da cama em que ela provavelmente dormia naquele momento. Talvez conseguisse divisar uma das estantes de livros, se houvesse alguma luz esquecida acesa. Talvez ela tivesse insônia e estivesse lendo alguma coisa. Talvez estivesse saindo para correr extremamente cedo porque não conseguia dormir e desse de cara com ele ali, em sua calçada, exatamente como um maníaco.
E talvez ela o encarasse com aqueles olhos de bicho e o convidasse para entrar, porque não sentiria medo dele, apesar disso.
Ouviu o barulho da água cessar e se deu conta de que havia fechado a torneira. Engoliu em seco, confundindo lembranças e sonhos. Ele iria até lá, nem que fosse para ter a sensação patética de estar realizando uma ação, sete dias depois daquele encontro. Sim, ele iria, decidiu enquanto voltava à sala e pegava a mochila – e talvez até esperasse ela sair e a convidasse para tomar café da manhã.
Saiu para a noite que minguava lentamente, sentindo o sereno fresco se depositar sobre o rosto. Serafim gostava do seu horário de trabalho insano. Ele havia sido escolhido justamente por sua disponibilidade, afinal, o Up and Date era um aplicativo para assassinos, e estes em geral escolhiam a noite para entrar em ação. Tudo tinha que estar funcionando normalmente a todo o tempo – se um usuário contatasse em busca de ajuda médica, ele responderia com o endereço do hospital mais próximo; se solicitassem mais informações sobre um anúncio, ele realizaria a busca; se enviassem a prova de missão cumprida, ele abriria o processo de verificação e recompensa. Toda a Mind7 funcionava debaixo daquela máxima: uma pessoa valia por várias e nenhuma área era desconhecida a um funcionário. Na prática, era o bom e velho acúmulo de funções, mas o slogan oficial era perfeitamente motivacional e adequado a seu tempo.
Aquela noite tinha sido igual ao resto da semana, com uma única ocorrência.
Eram quase 22 horas quando Henrique postou o anúncio – uma cabeça comum, como chamavam, apenas um pouco acima do valor inicial. Um estuprador de viela, acumulando vítimas e escorregando pelas mãos da polícia. Caso típico. Logo depois da postagem, ele se despediu do colega e foi embora.
Serafim se perguntou se existia algum tipo de estudo sociológico sobre aquilo – o fato de um aplicativo ser mais eficiente no controle criminal do que o próprio Estado. Era um fenômeno recente, pensou, e compreensível. No caso em questão, a cabeça havia vitimado doze pessoas. Dez utilizaram o app. Nos registros policiais constavam as outras duas denúncias. Era o nó dos crimes sexuais. O século XXII estava às portas e a sociedade padecia das mesmas mazelas de sempre: o velho ciclo de pecados e culpas.
Eram 22h03 quando a notificação apareceu na tela: “Hórus aceitou esta missão”.
Ele pensou em correr e chamar Henrique de volta, mas desistiu. Sabe lá em quanto tempo Hórus cumpriria a missão. E ela – presumindo que fosse mesmo “ela” – nunca pedia ajuda mesmo.
Serafim levantou, foi até a mesa no canto da sala, encheu sua caneca de café e voltou a acompanhar os gráficos em outra janela do computador. Quando terminou de beber, a notificação apareceu: “Missão concluída” e o anexo com a foto do homem degolado.
Pouco mais de meia hora para resolver o caso que passou pelo processo de checagem ao longo da semana inteira. A vida realmente era só um detalhe, pensou ele, recordando uma antiga canção.
Prosseguiu com o protocolo de avisar à polícia e encaminhar a solicitação de recompensa referente ao caso 0131476 ao departamento financeiro. Sentindo uma estranha excitação, ele também escreveu o e-mail para Hórus registrando que sua prova havia sido recebida e ela teria o valor na conta cadastrada em até 48 horas úteis.
E aquilo era tudo. Provavelmente algum recorde do app fora quebrado pela velocidade em que o caso havia sido resolvido. Agora estavam novamente sem pendências e Serafim teve um longo e tranquilo plantão, que gerou o vazio necessário à sua mente para desenvolver a ideia terrível de stalkear Bianca.
Depois de quase meia hora de caminhada, ele chegou à rua dela. Diminuiu o passo instintivamente, sabendo que não deveria prosseguir, mas certo de que iria até o fim.
E lá estava.
Exatamente como ele imaginou, exatamente como se lembrava da casa. As janelas estavam escuras. Ela dormia lá dentro, tão próxima e tão distante. Se ao menos fossem 4 da tarde... Ele poderia chamá-la para sair como um cara normal. “Não, querida, meu expediente é de madrugada porque meu trabalho é auxiliar os matadores mais notáveis do país. É, eu sei... Mas o salário é excelente.”
Uma certa parte dele sugeriu que Bianca não era o tipo de mulher que se importaria com aquilo, e sua boca se curvou em um sorriso. O que ela faria se ele batesse em sua porta e dissesse simplesmente “Desculpe o horário, mas só consegui assumir a liderança agora. Os outros três foram dormir.”
O que será que ela iria pedir desta vez?
Serafim se obrigou a balançar a cabeça com força, espantando aqueles pensamentos traiçoeiros. Não era assim que ele queria encontrá-la pela segunda vez. Queria fazer as coisas direito. Para isso tinha que ir embora imediatamente, mas não conseguia se mover. De pé na calçada deserta, no meio do absoluto silêncio, ele percebeu os minutos passando, dizendo a si mesmo que iria quando o céu começasse a clarear.
- Está perdido, senhor Leal?
A voz suave quebrou a noite, pegando-o inteiramente de surpresa. Engoliu em seco, empurrando o coração de volta pro lugar, quando a viu: um rosto cintilante no escuro, completamente tranquila.
Bianca mediu o homem na frente de sua casa, percebendo que se esquecera o quanto ele era alto. Reparou no cansaço estampado em sua figura, os cabelos desgrenhados, a mochila pendendo de um dos ombros de um jeito cômico, pequena demais para ele. Ela também tinha se assustado ao vê-lo parado ali, quando virou a esquina. Era como se ele tivesse caído de seus pensamentos e se materializado pela pura insistência de sua lembrança.
Serafim tentou falar alguma coisa, mas não sabia o que dizer. Deveria pedir desculpas? Ou inventar uma história de que aquele era seu caminho mesmo? Ele abria e fechava a boca, o pulso ainda acelerado apesar do susto já ter passado, e então o medo cresceu: tinha estragado tudo.
Bianca tombou a cabeça de lado, observando a confusão dominá-lo, até que não conseguiu mais esconder o sorriso e resolveu acabar com seu sofrimento.
Ele, vendo ela sorrir, permitiu que o medo diminuísse gradualmente. Não estava tudo perdido, então.
- Bom dia, Bianca.
- Acho que antes das seis ainda é boa noite – replicou, passando por ele e subindo os degraus até a porta – Mas, tudo bem. Bom dia, Serafim.
Havia algo no ar entre eles. Ele se aproximou como se flutuasse, sentindo-se bobo ao pensar nas palavras “dominado pela atração”. No entanto, era muito simples – ele notou enquanto subia a pequena escada. Simples, pensou novamente quando seus olhos se encontraram na mesma altura.
Uma mulher e um homem, juntos. Isto era tudo.

A parede de azulejos do banheiro, embora orvalhada da água quente que vinha do chuveiro, era fria contra as costas de Bianca. Ela precisava retesar as duas pernas ao redor de Serafim para não escorregar e esta era uma tarefa difícil, pois seus braços se encontravam inutilizados, presos à parede pelos pulsos, as mãos enormes dele feito grilhões.
Ela sorria ao sentir os dentes dele em seu pescoço, apenas roçando a pele, sem nunca chegar a morder. Aquele quase mandava arrepios pelo seu corpo abaixo até estremecer as coxas, o que provocava a resposta imediata do homem com nome de anjo: o espaço entre suas costas e a parede sumia e então era seguro relaxar, pois se achava totalmente suspensa nele.
Serafim recebia a água quente no meio das costas, mas só conseguia sentir calafrios. O corpo de Bianca à sua frente, ofegante e vaporoso, parecia irreal após aqueles sete dias de silêncio. Duvidava estar sonhando novamente – mas então os outros se manifestaram, discretamente, lembrando que seu inconsciente não era assim tão generoso. O eco dos gemidos de Bianca, junto ao som da água caindo, estavam causando um efeito arrasador: a estranha sensação de estar unificado, mais uma vez.
Ele libertou uma das mãos e segurou o rosto dela, afastando o cabelo do caminho para alcançar sua boca. Suas mãos se juntaram no pescoço dela, sem apertar, somente tocando – e então ele pôde ver o efeito que causava. A certeza de que seria tragado por aqueles olhos se repetiu, mas desta vez ele estava disposto a cair: ela o engoliu, empurrando-o mais fundo com os calcanhares na base de suas costas. Serafim contou cinco segundos enquanto ela o encarava sem piscar, e então sorriu largamente: mesmo tendo dito que seu nome não era adequado para um grito, foi isso que ecoou pelos azulejos em sua doce voz.

O cheiro de pão torrado e café envolveu Bianca e Serafim, sentados à mesa de uma cafeteria próxima à casa dela. O sol da manhã caía sobre eles através da janela, dando um aspecto saudável ao homem, que estava sem dormir havia quase vinte horas. Podia-se pensar que o banho e o sexo injetaram-lhe ânimo, mas na verdade ele estava usando um artifício típico seu: toda vez que se sentia no limite de suas forças, Serafim “trocava a chave”. Era por isso que encarava a mulher à sua frente com um sorriso relaxado e manso. Seu humor estava agora da cor da esperança.
Bianca bebia seu café apreciando o calor que secava lentamente seu cabelo. Ela percebia que estava sendo observada de maneira incomum e desconfiava da mudança de Serafim, mas estava achando tudo muito divertido.
- É como se tivéssemos pulado a semana, não é?
Ele sorriu, entendendo o que ela quis dizer.
- Quem me dera.
“Se segura, Verde. Ela não precisa saber que estamos de quatro... Apesar de ser literalmente isso.”
“Sério? Ela me encontrou de frente pra janela dela de madrugada. E a ideia nem foi minha.”
“Fica na sua, Branco, você é muito puritano.”
“Calem a boca e concentrem-se. Ela sabe como estamos, é só olhar pra ela.”
Hórus encarava Serafim, fascinada.
- Quem está falando comigo agora?
“Merda.”
Ele estendeu a mão por cima da mesa.
- Serafim Leal, para servi-la.
Ela riu enquanto ele beijava sua mão.
- Você sabe o que eu quis dizer.
- Sei... Bom, por que não tenta adivinhar?
Ela observou ele partir um pão, espalhar a manteiga e comer sem pressa alguma.
- Você não é o todo-bom. Nem o todo-mau.
Ele fez um muxoxo enquanto mastigava.
- Bom com um traço... Divertido, mas de pensamento rápido.
Ele piscou para ela e Bianca se divertiu mais ainda ao perceber que isso lhe provocava uma onda de excitação.
- Por outro lado, não sei bem como seria o mau-com-um-traço.
- O Vermelho? Hum...
Ela ergueu as sobrancelhas.
- São cores?
- É um jeito de chamá-los – ele disse, balançando a cabeça – Branco e Preto, Vermelho e Verde.
A garçonete deixou dois pratos de ovos mexidos na mesa e encheu suas xícaras.
- Então você é o Verde – deduziu Bianca.
- Como disse, ao seu dispor.
- E quem tomou banho comigo?
A garçonete, que estava se afastando, virou a cabeça involuntariamente. No mesmo instante, murmurou alguma coisa e saiu apressada.
- Ora... Parece que o Verde ficou vermelho – disse Bianca maldosamente, garfando a comida. Serafim, que sentia o rosto quente, parou de rir. Encontrou aqueles olhos de bicho e respondeu sem pensar.
- Melhor não brincar com o que não conhece, mocinha.
Hórus cruzou as pernas, percebendo a nova mudança. Não era difícil distingui-los, como havia pensado. Será que ele estava fingindo?
- Não quer que eu brinque com você? Acho que jogamos muito bem juntos.
Ela viu o rosto dele suavizar lentamente, primeiro com suas palavras, depois com o toque da ponta de seu sapato, com o qual alcançou a perna dele por baixo da mesa. Ele respirou fundo, bem devagar, tentando recuperar o controle. Ela subia por sua perna enquanto comia inocentemente o café da manhã, do outro lado da mesa. De repente, tomado pela inspiração, ele derrubou a colher no chão. Bianca fez um ruído de apreciação à comida quando sentiu a mão dele se fechar em seu tornozelo.
Então ele sumiu de vista, em busca da colher perdida. Bianca sentiu-se ficar descalça e então abriu a boca, surpresa: os lábios dele estavam em sua pele novamente. Serafim estava beijando seu pé.
Ela olhou ao redor, rindo como uma adolescente, procurando ver se alguém percebeu o que se passava, mas não havia ninguém por perto. Mal eram sete da manhã de um domingo e o único movimento era na cozinha, do outro lado do balcão onde a garçonete sumira.
Serafim estava de volta, parecendo satisfeito ao constatar as bochechas rosadas da mulher e o jeito que ela apertava os lábios, com evidente prazer.
- No chuveiro estávamos todos – respondeu ele simplesmente, alcançando o garfo e começando a comer.
Bianca assentiu, achando-se subitamente sem palavras. Queria perguntar quem havia acabado de desequilibrá-la, mas riu do próprio pensamento. De repente não parecia mais tão fácil distingui-los.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Capítulo III - Deus é uma mulher


Serafim andou pelas ruas como se ainda estivesse dormindo e sonhando. Seus pés se encarregaram de guiá-lo enquanto a cabeça se encheu de vazio e estática. Todo ele era um sentimento, enorme e sem nome, que dançava em sua boca em forma de sorriso e protegia sua cabeça da chuva que recomeçara.
“Lá vai o idiota outra vez”, pensou. “Como se gostasse de chafurdar na própria merda.”
Ele suspirou, sentindo a água fria escorrer pela testa. Como achou que poderia sair sem eles?
“Você é um cínico filho da puta mesmo. Vai dizer que não gostou dela?”
“Todos nós gostamos dela. Acho que podemos partir desse princípio.”
Serafim assentiu para si mesmo, balançando a cabeça na rua vazia.
“É, mas o veadinho já está querendo dar um anel a ela.”
“Nunca vou entender como gostar de uma mulher significa ser ‘veadinho’.”
“Você entendeu, sim. Esse Branco é branco feito um marshmallow mesmo.”
“E você é cor de merda, babaca.”
“Fica quieto, anjinho.”
“Volta pro inferno, projeto de capeta.”
“Podemos concordar também que o Branco é péssimo em insultos?”
- Por favor – grunhiu Serafim, falando sozinho enquanto esperava para atravessar a rua – Escolham um para falar e calem suas respectivas bocas.
“Tecnicamente, somos apenas vozes.”
Houve um resmungo coletivo.
“Bem... Essa é uma mulher interessante. Temos que vê-la outra vez comigo no comando.”
“Você, Preto? Por que alguma vez deixaríamos que você assumisse?”
“Porque ela pediu um encontro comigo, especificamente. E porque eu tenho ideias muito melhores do que fazer com ela do que os sonhos mais ousados de cada um de vocês, de acordo com o que ela quer.”
“É você que está sonhando, irmão. De jeito nenhum vamos deixar as suas mãos chegarem perto daquele pescoço.”
“Possessivo.”
“Reconheça que você acabaria com a diversão rápido demais.”
“Com licença, mas ela não parece o tipo que foge ao sinal de perigo.”
“Tem razão, Verde. Conhecemos o tipo dela. O que o Branco chama de ser ‘enrolado no dedo mindinho’, nós sabemos o que significa de verdade: um grande chute no traseiro.”
“Como vocês conseguem ser tão pessimistas?”
“Presta atenção, Branco. Essa mulher não precisa de nós. Ela não quer nenhum de nós. Mesmo que tenhamos outros encontros e inúmeros orgasmos, ela vai continuar tão envolvida quanto agora.”
“No final da noite, depois que ela tiver nos mastigado bastante, vai nos cuspir de novo e sempre.”
“É a natureza dela.”
Serafim olhou para o céu cinzento, perguntando-se vagamente por que sempre voltava àquele estado de espírito miserável.
“Deveríamos nos ajudar. Trabalhar para o bem comum.”
“Meu caro, é o que estamos fazendo. Você apenas não se deu conta ainda.”
Finalmente ele estava em casa. Por um momento, conseguiu esvaziar a cabeça de novo, como se pudesse fugir de tudo que o atormentava fechando a porta. Mas foi apenas um momento antes que a realidade voltasse com todos: o tormento não era algo que pudesse ser deixado lá fora; tudo estava nele.

Bianca estava em cima dele, e por toda parte: as pernas estendidas em seu colo, os braços em torno de seu pescoço, a boca inquieta. Ela beijava cada centímetro do seu rosto, dizendo sem parar “obrigada, obrigada, obrigada”.
- Por quê? – perguntou ele, segurando-a para que não caísse de seu colo.
Ela se afastou o suficiente para olhá-lo com um sorriso enorme.
- Você não tem medo de mim.
- Por que eu teria medo de você?
- Por causa do que eu sou – respondeu, simplesmente.
Ele segurou o rosto dela com as duas mãos, novamente impressionado com o quanto ela era pequena em comparação. E, no entanto, o que sentia desmentiu aquele fato evidente. Bianca era enorme. Era ele que se sentia preenchido por ela, como se não houvesse sobrado                                  nenhum vazio dentro de seu corpo. Mal conseguia respirar. Mesmo assim, sorria contagiado por sua alegria enigmática.
- O que você é?
- Você sabe – ela disse, virando o rosto para beijar a palma de sua mão.
Antes que pudesse falar mais, Serafim abriu os olhos em seu quarto vazio. Era o meio da tarde de domingo. Já não chovia e o céu estava branco. Ele piscou, confuso, sentindo distintamente o peso de Bianca sobre suas pernas e a pele muito quente onde ela o havia beijado no sonho. A sensação de plenitude começou a se dissolver lentamente, conforme se dava conta de que estava só. Tudo estava em silêncio.
Tudo, inclusive ele mesmo.
Por um momento, ele estranhou o sentimento que não tinha há anos: era apenas Serafim. Nada de cores, somente uma massa cinza. Simples e pacífico.
Ele sabia que não iria durar muito, então respirou fundo e saboreou o instante em tudo o que conseguiu capturar. O cheiro do quarto, a luz da janela, seu corpo que esfriava devagar. E a imagem de Bianca em sua cabeça, ela inteira em um sorriso.
Quando acabou, ele ouviu uma risada distante e seu humor se coloriu novamente, de acordo com o que ria.

Pela primeira vez desde que começou no emprego, quase um ano antes, Serafim se sentia disposto a iniciar seu expediente. Pensando melhor, talvez fosse a primeira vez em sua vida que se sentia ansioso por trabalho, para se distrair com os códigos e chamados da área de tecnologia da Mind7, a maior desenvolvedora de aplicativos do mercado.
Ele ainda teve que amargar as horas mortas da segunda-feira até que chegasse o seu turno. Decidiu que faria uma hora extra e seguiu direto para o prédio no Centro da cidade depois de almoçar. Ao menos andando pelas ruas caóticas, ele dividia sua atenção entre desviar de transeuntes e camelôs e voltar ao ponto cego de seu fim de semana – os lençóis de Bianca.
- Que é isso, meu bom, caiu da cama? – perguntou Henrique, virando-se na cadeira ao ouvir a mochila ser arremessada no cubículo ao seu lado.
Serafim soltou algo entre um suspiro e um bufo, dirigindo-se à mesa do canto da sala para encher sua xícara de café.
- São 6 da tarde, cara.
- Eu sei, e o seu horário começa às 7. O que foi? Cansou de dever horas à empresa?
- Não, vim salvar o teu rabo de ser soterrado pelos chamados do fim de semana.
Henrique riu, ajeitando os óculos no rosto moreno.
- Está tudo sob controle, cara. Você que parece desalinhado.
Serafim se recostou na cadeira e olhou para o teto, percebendo que não tinha a mínima vontade de provar o café.
- Saí com uma mulher. Foi ótimo. Não sei se vou vê-la outra vez.
Henrique encarou o amigo com os olhos arregalados.
- Você?
- É, eu – respondeu Serafim, olhando para ele pela primeira vez, incomodado com seu tom de voz – Qual o problema? Achou que eu era gay?
- Não, não foi o que eu quis dizer – replicou ele, rindo – É que você não é o tipo de cara que fica amuado pelos cantos por causa de mulher.
Serafim voltou a olhar pro teto, desejando que o café fosse uísque. Não pela primeira vez, pensou como era irritante ser julgado como um certo “tipo de cara” por causa de sua aparência. E imediatamente uma das cores gritou “mimizento” ao longe, em sua cabeça.
- Eu não tô amuado... Só... Sei lá.
- Parece a definição exata de amuado.
- Tá bom então, eu tô amuado. Por causa de uma mulher. E agora?
- Agora liga pra ela, ué. Você disse que o encontro foi bom. Ela deve estar amuada também – riu Henrique.
Serafim sorriu sem querer.
- Duvido.
- Ih... Vou nem perguntar mais nada. Se precisar desabafar, tô aqui. Se não quiser, podemos beber umas depois.
- Você não é casado?
- E a gente deixa de ter sede quando casa?
Eles riram enquanto Serafim ligava o computador.
- Tá, o que temos pra hoje?
- Nada mucho, hermano. Pelo que eu soube, tem um caso grande sendo processado, mas só deve sair semana que vem. Enquanto isso, pequenos delitos, mas nada digno de Hórus.
Serafim riu, vendo surgir a interface da Mind7 em seu monitor.
- Há quanto tempo ele não faz nada?
- Mais de um mês. E é “ela”.
- Como você tem tanta certeza?
- Pelo modus operandi, cara. Ela só ataca homens escrotos. Os chefões na conta dela só tinham por perto uma mulher na hora da morte. E as coisas que ela faz com os corpos... Sério. Por que um cara cortaria o pau do outro e sufocaria ele com o bagulho? É uma mulher com certeza!
- Tudo bem – aceitou Serafim, sem pensar muito no assunto. Já ouvira o colega tietar o primeiro lugar do Up and Date muitas vezes, desde que começara a trabalhar ali. Como supervisor do principal aplicativo da Mind7, era natural que Henrique fosse o mais interessado nas flutuações do ranking de caçadores de recompensa; mas ele era um verdadeiro fanboy da pessoa misteriosa denominada Hórus, que ele insistia em dizer que era uma mulher a despeito de não haver nenhuma prova de sua identidade real.
- E o evento do app, já tá sabendo?
- O e-mail não abriu ainda. O que é?
- Uma comemoração pela meta atingida. 50 mil recompensas em 12 meses. Parece até que os top 5 vão ganhar medalhas.
- Alguém disse uma vez que se você mata uma pessoa é assassino, mas se mata centenas é um herói – filosofou Serafim, bebericando finalmente o café.
Henrique riu alto.
- Você não tá entendendo. Vai ser um evento de verdade, tipo baile de gala. Se a pessoa aparecer, ganha o prêmio. Se não aparecer, não ganha.
- Querem coagir os assassinos mais bem-sucedidos de um aplicativo anônimo a aparecer em público, em traje esporte fino, para ganhar mais dinheiro além das recompensas que eles já acumularam? É isso?
- É mais do que isso, meu amigo. É a assassina mais bem-sucedida da história do nosso aplicativo em vestido de noite. Imaginou?
Ele balançou a cabeça, achando graça da animação do colega. “Nosso aplicativo”. Quanta ingenuidade.
- Ela não deve aparecer, Henrique.
- Eu também pensei que não, mas tem mais uma coisa em jogo.
- O quê?
Henrique esperou que Serafim olhasse para ele, fazendo suspense.
- O evento vai ser o anúncio da maior recompensa já oferecida. É nisso que estão trabalhando. E só quem estiver presente vai poder participar.
- Caralho. Que cabeça vai ser essa?
- Há rumores, mas não recebemos nada ainda.
Ele repassou rapidamente os últimos grandes casos de escândalo e os crimes hediondos. Nada de incomum entre as tragédias naturais com fundo de negligência e a corrupção endêmica do governo que caía aos pedaços. Então ele se lembrou.
- Ela não vai vir, sinto muito. Se for mesmo uma mulher, ela não vem.
- Agora é minha vez de perguntar: por que tanta certeza?
- Porque se for a cabeça que eu tô pensando, é outra mulher. E não acho que a Hórus quebre o modus operandi só pelo dinheiro, ainda mais se expondo.
- Outra mulher? Peraí, tá falando da...?
- Ela mesma. Não viu que está foragida? A Língua de Sangue.