Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Capítulo IV - Comum


Faltavam dez minutos para o fim do expediente de Serafim. Ele observava o relógio no canto da tela de seu computador marcar 3:50 da manhã. Estava cansado, mas sentia uma parte de si totalmente alerta, fazendo planos em um canto de sua mente. Tentava ignorar a ideia que surgira em algum ponto das últimas noites, enquanto cumpria o trabalho monótono, mas a hora se aproximava rapidamente em que teria que admitir: três partes estavam despertas e de acordo. Ele iria se submeter.
Desligou o computador e foi ao banheiro lavar a caneca de café. Deu uma olhada no espelho. Seu rosto se refletia cansado e com olheiras, os lábios estavam secos, o cabelo caía de qualquer jeito sobre os ombros. Debaixo das sobrancelhas pesadas, seus olhos escuros encaravam a própria imagem, desdenhoso. “Não está se sentindo o rei da beleza agora, hein.” Ele deu uma risada curta e seca, sacudindo a caneca sob o fio d’água. Não queria ceder à ideia dos outros. Iria parecer um maníaco.
“São 4 da manhã. Ninguém vai te ver agindo feito maníaco.”
“Eu estou vendo agora mesmo. É isso que importa.”
“Não suporto esse drama. É só uma volta para casa por um caminho alternativo. Relaxa.”
A imagem do prédio de Bianca, envolto em sombras na madrugada, surgiu em sua cabeça. Ele imaginou as duas janelas da frente. Uma era a da sala, atrás do sofá onde ela havia subido em seu colo. A outra era a do quarto, atrás da cama em que ela provavelmente dormia naquele momento. Talvez conseguisse divisar uma das estantes de livros, se houvesse alguma luz esquecida acesa. Talvez ela tivesse insônia e estivesse lendo alguma coisa. Talvez estivesse saindo para correr extremamente cedo porque não conseguia dormir e desse de cara com ele ali, em sua calçada, exatamente como um maníaco.
E talvez ela o encarasse com aqueles olhos de bicho e o convidasse para entrar, porque não sentiria medo dele, apesar disso.
Ouviu o barulho da água cessar e se deu conta de que havia fechado a torneira. Engoliu em seco, confundindo lembranças e sonhos. Ele iria até lá, nem que fosse para ter a sensação patética de estar realizando uma ação, sete dias depois daquele encontro. Sim, ele iria, decidiu enquanto voltava à sala e pegava a mochila – e talvez até esperasse ela sair e a convidasse para tomar café da manhã.
Saiu para a noite que minguava lentamente, sentindo o sereno fresco se depositar sobre o rosto. Serafim gostava do seu horário de trabalho insano. Ele havia sido escolhido justamente por sua disponibilidade, afinal, o Up and Date era um aplicativo para assassinos, e estes em geral escolhiam a noite para entrar em ação. Tudo tinha que estar funcionando normalmente a todo o tempo – se um usuário contatasse em busca de ajuda médica, ele responderia com o endereço do hospital mais próximo; se solicitassem mais informações sobre um anúncio, ele realizaria a busca; se enviassem a prova de missão cumprida, ele abriria o processo de verificação e recompensa. Toda a Mind7 funcionava debaixo daquela máxima: uma pessoa valia por várias e nenhuma área era desconhecida a um funcionário. Na prática, era o bom e velho acúmulo de funções, mas o slogan oficial era perfeitamente motivacional e adequado a seu tempo.
Aquela noite tinha sido igual ao resto da semana, com uma única ocorrência.
Eram quase 22 horas quando Henrique postou o anúncio – uma cabeça comum, como chamavam, apenas um pouco acima do valor inicial. Um estuprador de viela, acumulando vítimas e escorregando pelas mãos da polícia. Caso típico. Logo depois da postagem, ele se despediu do colega e foi embora.
Serafim se perguntou se existia algum tipo de estudo sociológico sobre aquilo – o fato de um aplicativo ser mais eficiente no controle criminal do que o próprio Estado. Era um fenômeno recente, pensou, e compreensível. No caso em questão, a cabeça havia vitimado doze pessoas. Dez utilizaram o app. Nos registros policiais constavam as outras duas denúncias. Era o nó dos crimes sexuais. O século XXII estava às portas e a sociedade padecia das mesmas mazelas de sempre: o velho ciclo de pecados e culpas.
Eram 22h03 quando a notificação apareceu na tela: “Hórus aceitou esta missão”.
Ele pensou em correr e chamar Henrique de volta, mas desistiu. Sabe lá em quanto tempo Hórus cumpriria a missão. E ela – presumindo que fosse mesmo “ela” – nunca pedia ajuda mesmo.
Serafim levantou, foi até a mesa no canto da sala, encheu sua caneca de café e voltou a acompanhar os gráficos em outra janela do computador. Quando terminou de beber, a notificação apareceu: “Missão concluída” e o anexo com a foto do homem degolado.
Pouco mais de meia hora para resolver o caso que passou pelo processo de checagem ao longo da semana inteira. A vida realmente era só um detalhe, pensou ele, recordando uma antiga canção.
Prosseguiu com o protocolo de avisar à polícia e encaminhar a solicitação de recompensa referente ao caso 0131476 ao departamento financeiro. Sentindo uma estranha excitação, ele também escreveu o e-mail para Hórus registrando que sua prova havia sido recebida e ela teria o valor na conta cadastrada em até 48 horas úteis.
E aquilo era tudo. Provavelmente algum recorde do app fora quebrado pela velocidade em que o caso havia sido resolvido. Agora estavam novamente sem pendências e Serafim teve um longo e tranquilo plantão, que gerou o vazio necessário à sua mente para desenvolver a ideia terrível de stalkear Bianca.
Depois de quase meia hora de caminhada, ele chegou à rua dela. Diminuiu o passo instintivamente, sabendo que não deveria prosseguir, mas certo de que iria até o fim.
E lá estava.
Exatamente como ele imaginou, exatamente como se lembrava da casa. As janelas estavam escuras. Ela dormia lá dentro, tão próxima e tão distante. Se ao menos fossem 4 da tarde... Ele poderia chamá-la para sair como um cara normal. “Não, querida, meu expediente é de madrugada porque meu trabalho é auxiliar os matadores mais notáveis do país. É, eu sei... Mas o salário é excelente.”
Uma certa parte dele sugeriu que Bianca não era o tipo de mulher que se importaria com aquilo, e sua boca se curvou em um sorriso. O que ela faria se ele batesse em sua porta e dissesse simplesmente “Desculpe o horário, mas só consegui assumir a liderança agora. Os outros três foram dormir.”
O que será que ela iria pedir desta vez?
Serafim se obrigou a balançar a cabeça com força, espantando aqueles pensamentos traiçoeiros. Não era assim que ele queria encontrá-la pela segunda vez. Queria fazer as coisas direito. Para isso tinha que ir embora imediatamente, mas não conseguia se mover. De pé na calçada deserta, no meio do absoluto silêncio, ele percebeu os minutos passando, dizendo a si mesmo que iria quando o céu começasse a clarear.
- Está perdido, senhor Leal?
A voz suave quebrou a noite, pegando-o inteiramente de surpresa. Engoliu em seco, empurrando o coração de volta pro lugar, quando a viu: um rosto cintilante no escuro, completamente tranquila.
Bianca mediu o homem na frente de sua casa, percebendo que se esquecera o quanto ele era alto. Reparou no cansaço estampado em sua figura, os cabelos desgrenhados, a mochila pendendo de um dos ombros de um jeito cômico, pequena demais para ele. Ela também tinha se assustado ao vê-lo parado ali, quando virou a esquina. Era como se ele tivesse caído de seus pensamentos e se materializado pela pura insistência de sua lembrança.
Serafim tentou falar alguma coisa, mas não sabia o que dizer. Deveria pedir desculpas? Ou inventar uma história de que aquele era seu caminho mesmo? Ele abria e fechava a boca, o pulso ainda acelerado apesar do susto já ter passado, e então o medo cresceu: tinha estragado tudo.
Bianca tombou a cabeça de lado, observando a confusão dominá-lo, até que não conseguiu mais esconder o sorriso e resolveu acabar com seu sofrimento.
Ele, vendo ela sorrir, permitiu que o medo diminuísse gradualmente. Não estava tudo perdido, então.
- Bom dia, Bianca.
- Acho que antes das seis ainda é boa noite – replicou, passando por ele e subindo os degraus até a porta – Mas, tudo bem. Bom dia, Serafim.
Havia algo no ar entre eles. Ele se aproximou como se flutuasse, sentindo-se bobo ao pensar nas palavras “dominado pela atração”. No entanto, era muito simples – ele notou enquanto subia a pequena escada. Simples, pensou novamente quando seus olhos se encontraram na mesma altura.
Uma mulher e um homem, juntos. Isto era tudo.

A parede de azulejos do banheiro, embora orvalhada da água quente que vinha do chuveiro, era fria contra as costas de Bianca. Ela precisava retesar as duas pernas ao redor de Serafim para não escorregar e esta era uma tarefa difícil, pois seus braços se encontravam inutilizados, presos à parede pelos pulsos, as mãos enormes dele feito grilhões.
Ela sorria ao sentir os dentes dele em seu pescoço, apenas roçando a pele, sem nunca chegar a morder. Aquele quase mandava arrepios pelo seu corpo abaixo até estremecer as coxas, o que provocava a resposta imediata do homem com nome de anjo: o espaço entre suas costas e a parede sumia e então era seguro relaxar, pois se achava totalmente suspensa nele.
Serafim recebia a água quente no meio das costas, mas só conseguia sentir calafrios. O corpo de Bianca à sua frente, ofegante e vaporoso, parecia irreal após aqueles sete dias de silêncio. Duvidava estar sonhando novamente – mas então os outros se manifestaram, discretamente, lembrando que seu inconsciente não era assim tão generoso. O eco dos gemidos de Bianca, junto ao som da água caindo, estavam causando um efeito arrasador: a estranha sensação de estar unificado, mais uma vez.
Ele libertou uma das mãos e segurou o rosto dela, afastando o cabelo do caminho para alcançar sua boca. Suas mãos se juntaram no pescoço dela, sem apertar, somente tocando – e então ele pôde ver o efeito que causava. A certeza de que seria tragado por aqueles olhos se repetiu, mas desta vez ele estava disposto a cair: ela o engoliu, empurrando-o mais fundo com os calcanhares na base de suas costas. Serafim contou cinco segundos enquanto ela o encarava sem piscar, e então sorriu largamente: mesmo tendo dito que seu nome não era adequado para um grito, foi isso que ecoou pelos azulejos em sua doce voz.

O cheiro de pão torrado e café envolveu Bianca e Serafim, sentados à mesa de uma cafeteria próxima à casa dela. O sol da manhã caía sobre eles através da janela, dando um aspecto saudável ao homem, que estava sem dormir havia quase vinte horas. Podia-se pensar que o banho e o sexo injetaram-lhe ânimo, mas na verdade ele estava usando um artifício típico seu: toda vez que se sentia no limite de suas forças, Serafim “trocava a chave”. Era por isso que encarava a mulher à sua frente com um sorriso relaxado e manso. Seu humor estava agora da cor da esperança.
Bianca bebia seu café apreciando o calor que secava lentamente seu cabelo. Ela percebia que estava sendo observada de maneira incomum e desconfiava da mudança de Serafim, mas estava achando tudo muito divertido.
- É como se tivéssemos pulado a semana, não é?
Ele sorriu, entendendo o que ela quis dizer.
- Quem me dera.
“Se segura, Verde. Ela não precisa saber que estamos de quatro... Apesar de ser literalmente isso.”
“Sério? Ela me encontrou de frente pra janela dela de madrugada. E a ideia nem foi minha.”
“Fica na sua, Branco, você é muito puritano.”
“Calem a boca e concentrem-se. Ela sabe como estamos, é só olhar pra ela.”
Hórus encarava Serafim, fascinada.
- Quem está falando comigo agora?
“Merda.”
Ele estendeu a mão por cima da mesa.
- Serafim Leal, para servi-la.
Ela riu enquanto ele beijava sua mão.
- Você sabe o que eu quis dizer.
- Sei... Bom, por que não tenta adivinhar?
Ela observou ele partir um pão, espalhar a manteiga e comer sem pressa alguma.
- Você não é o todo-bom. Nem o todo-mau.
Ele fez um muxoxo enquanto mastigava.
- Bom com um traço... Divertido, mas de pensamento rápido.
Ele piscou para ela e Bianca se divertiu mais ainda ao perceber que isso lhe provocava uma onda de excitação.
- Por outro lado, não sei bem como seria o mau-com-um-traço.
- O Vermelho? Hum...
Ela ergueu as sobrancelhas.
- São cores?
- É um jeito de chamá-los – ele disse, balançando a cabeça – Branco e Preto, Vermelho e Verde.
A garçonete deixou dois pratos de ovos mexidos na mesa e encheu suas xícaras.
- Então você é o Verde – deduziu Bianca.
- Como disse, ao seu dispor.
- E quem tomou banho comigo?
A garçonete, que estava se afastando, virou a cabeça involuntariamente. No mesmo instante, murmurou alguma coisa e saiu apressada.
- Ora... Parece que o Verde ficou vermelho – disse Bianca maldosamente, garfando a comida. Serafim, que sentia o rosto quente, parou de rir. Encontrou aqueles olhos de bicho e respondeu sem pensar.
- Melhor não brincar com o que não conhece, mocinha.
Hórus cruzou as pernas, percebendo a nova mudança. Não era difícil distingui-los, como havia pensado. Será que ele estava fingindo?
- Não quer que eu brinque com você? Acho que jogamos muito bem juntos.
Ela viu o rosto dele suavizar lentamente, primeiro com suas palavras, depois com o toque da ponta de seu sapato, com o qual alcançou a perna dele por baixo da mesa. Ele respirou fundo, bem devagar, tentando recuperar o controle. Ela subia por sua perna enquanto comia inocentemente o café da manhã, do outro lado da mesa. De repente, tomado pela inspiração, ele derrubou a colher no chão. Bianca fez um ruído de apreciação à comida quando sentiu a mão dele se fechar em seu tornozelo.
Então ele sumiu de vista, em busca da colher perdida. Bianca sentiu-se ficar descalça e então abriu a boca, surpresa: os lábios dele estavam em sua pele novamente. Serafim estava beijando seu pé.
Ela olhou ao redor, rindo como uma adolescente, procurando ver se alguém percebeu o que se passava, mas não havia ninguém por perto. Mal eram sete da manhã de um domingo e o único movimento era na cozinha, do outro lado do balcão onde a garçonete sumira.
Serafim estava de volta, parecendo satisfeito ao constatar as bochechas rosadas da mulher e o jeito que ela apertava os lábios, com evidente prazer.
- No chuveiro estávamos todos – respondeu ele simplesmente, alcançando o garfo e começando a comer.
Bianca assentiu, achando-se subitamente sem palavras. Queria perguntar quem havia acabado de desequilibrá-la, mas riu do próprio pensamento. De repente não parecia mais tão fácil distingui-los.

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