Serafim
andou pelas ruas como se ainda estivesse dormindo e sonhando. Seus pés se
encarregaram de guiá-lo enquanto a cabeça se encheu de vazio e estática. Todo
ele era um sentimento, enorme e sem nome, que dançava em sua boca em forma de
sorriso e protegia sua cabeça da chuva que recomeçara.
“Lá
vai o idiota outra vez”, pensou. “Como se gostasse de chafurdar na própria
merda.”
Ele
suspirou, sentindo a água fria escorrer pela testa. Como achou que poderia sair
sem eles?
“Você
é um cínico filho da puta mesmo. Vai dizer que não gostou dela?”
“Todos
nós gostamos dela. Acho que podemos partir desse princípio.”
Serafim
assentiu para si mesmo, balançando a cabeça na rua vazia.
“É,
mas o veadinho já está querendo dar um anel a ela.”
“Nunca
vou entender como gostar de uma mulher significa ser ‘veadinho’.”
“Você
entendeu, sim. Esse Branco é branco feito um marshmallow mesmo.”
“E
você é cor de merda, babaca.”
“Fica
quieto, anjinho.”
“Volta
pro inferno, projeto de capeta.”
“Podemos
concordar também que o Branco é péssimo em insultos?”
-
Por favor – grunhiu Serafim, falando sozinho enquanto esperava para atravessar
a rua – Escolham um para falar e calem suas respectivas bocas.
“Tecnicamente,
somos apenas vozes.”
Houve
um resmungo coletivo.
“Bem...
Essa é uma mulher interessante. Temos que vê-la outra vez comigo no comando.”
“Você,
Preto? Por que alguma vez deixaríamos que você assumisse?”
“Porque
ela pediu um encontro comigo, especificamente. E porque eu tenho ideias muito
melhores do que fazer com ela do que os sonhos mais ousados de cada um de vocês,
de acordo com o que ela quer.”
“É
você que está sonhando, irmão. De jeito nenhum vamos deixar as suas mãos
chegarem perto daquele pescoço.”
“Possessivo.”
“Reconheça
que você acabaria com a diversão rápido demais.”
“Com
licença, mas ela não parece o tipo que foge ao sinal de perigo.”
“Tem
razão, Verde. Conhecemos o tipo dela. O que o Branco chama de ser ‘enrolado no
dedo mindinho’, nós sabemos o que significa de verdade: um grande chute no
traseiro.”
“Como
vocês conseguem ser tão pessimistas?”
“Presta
atenção, Branco. Essa mulher não precisa de nós. Ela não quer nenhum de nós.
Mesmo que tenhamos outros encontros e inúmeros orgasmos, ela vai continuar tão
envolvida quanto agora.”
“No
final da noite, depois que ela tiver nos mastigado bastante, vai nos cuspir de
novo e sempre.”
“É
a natureza dela.”
Serafim
olhou para o céu cinzento, perguntando-se vagamente por que sempre voltava
àquele estado de espírito miserável.
“Deveríamos
nos ajudar. Trabalhar para o bem comum.”
“Meu
caro, é o que estamos fazendo. Você apenas não se deu conta ainda.”
Finalmente
ele estava em casa. Por um momento, conseguiu esvaziar a cabeça de novo, como
se pudesse fugir de tudo que o atormentava fechando a porta. Mas foi apenas um
momento antes que a realidade voltasse com todos: o tormento não era algo que
pudesse ser deixado lá fora; tudo estava nele.
Bianca
estava em cima dele, e por toda parte: as pernas estendidas em seu colo, os
braços em torno de seu pescoço, a boca inquieta. Ela beijava cada centímetro do
seu rosto, dizendo sem parar “obrigada, obrigada, obrigada”.
-
Por quê? – perguntou ele, segurando-a para que não caísse de seu colo.
Ela
se afastou o suficiente para olhá-lo com um sorriso enorme.
-
Você não tem medo de mim.
-
Por que eu teria medo de você?
-
Por causa do que eu sou – respondeu, simplesmente.
Ele
segurou o rosto dela com as duas mãos, novamente impressionado com o quanto ela
era pequena em comparação. E, no entanto, o que sentia desmentiu aquele fato
evidente. Bianca era enorme. Era ele que se sentia preenchido por ela, como se
não houvesse sobrado nenhum vazio dentro de seu corpo. Mal
conseguia respirar. Mesmo assim, sorria contagiado por sua alegria enigmática.
-
O que você é?
-
Você sabe – ela disse, virando o rosto para beijar a palma de sua mão.
Antes
que pudesse falar mais, Serafim abriu os olhos em seu quarto vazio. Era o meio
da tarde de domingo. Já não chovia e o céu estava branco. Ele piscou, confuso,
sentindo distintamente o peso de Bianca sobre suas pernas e a pele muito quente
onde ela o havia beijado no sonho. A sensação de plenitude começou a se
dissolver lentamente, conforme se dava conta de que estava só. Tudo estava em
silêncio.
Tudo,
inclusive ele mesmo.
Por
um momento, ele estranhou o sentimento que não tinha há anos: era apenas
Serafim. Nada de cores, somente uma massa cinza. Simples e pacífico.
Ele
sabia que não iria durar muito, então respirou fundo e saboreou o instante em
tudo o que conseguiu capturar. O cheiro do quarto, a luz da janela, seu corpo
que esfriava devagar. E a imagem de Bianca em sua cabeça, ela inteira em um
sorriso.
Quando
acabou, ele ouviu uma risada distante e seu humor se coloriu novamente, de
acordo com o que ria.
Pela
primeira vez desde que começou no emprego, quase um ano antes, Serafim se
sentia disposto a iniciar seu expediente. Pensando melhor, talvez fosse a
primeira vez em sua vida que se sentia ansioso por trabalho, para se distrair
com os códigos e chamados da área de tecnologia da Mind7, a maior
desenvolvedora de aplicativos do mercado.
Ele
ainda teve que amargar as horas mortas da segunda-feira até que chegasse o seu
turno. Decidiu que faria uma hora extra e seguiu direto para o prédio no Centro
da cidade depois de almoçar. Ao menos andando pelas ruas caóticas, ele dividia
sua atenção entre desviar de transeuntes e camelôs e voltar ao ponto cego de
seu fim de semana – os lençóis de Bianca.
-
Que é isso, meu bom, caiu da cama? – perguntou Henrique, virando-se na cadeira
ao ouvir a mochila ser arremessada no cubículo ao seu lado.
Serafim
soltou algo entre um suspiro e um bufo, dirigindo-se à mesa do canto da sala
para encher sua xícara de café.
-
São 6 da tarde, cara.
-
Eu sei, e o seu horário começa às 7. O que foi? Cansou de dever horas à
empresa?
-
Não, vim salvar o teu rabo de ser soterrado pelos chamados do fim de semana.
Henrique
riu, ajeitando os óculos no rosto moreno.
-
Está tudo sob controle, cara. Você que parece desalinhado.
Serafim
se recostou na cadeira e olhou para o teto, percebendo que não tinha a mínima
vontade de provar o café.
-
Saí com uma mulher. Foi ótimo. Não sei se vou vê-la outra vez.
Henrique
encarou o amigo com os olhos arregalados.
-
Você?
-
É, eu – respondeu Serafim, olhando para ele pela primeira vez, incomodado com
seu tom de voz – Qual o problema? Achou que eu era gay?
-
Não, não foi o que eu quis dizer – replicou ele, rindo – É que você não é o
tipo de cara que fica amuado pelos cantos por causa de mulher.
Serafim
voltou a olhar pro teto, desejando que o café fosse uísque. Não pela primeira
vez, pensou como era irritante ser julgado como um certo “tipo de cara” por
causa de sua aparência. E imediatamente uma das cores gritou “mimizento” ao
longe, em sua cabeça.
-
Eu não tô amuado... Só... Sei lá.
-
Parece a definição exata de amuado.
-
Tá bom então, eu tô amuado. Por causa de uma mulher. E agora?
-
Agora liga pra ela, ué. Você disse que o encontro foi bom. Ela deve estar
amuada também – riu Henrique.
Serafim
sorriu sem querer.
-
Duvido.
-
Ih... Vou nem perguntar mais nada. Se precisar desabafar, tô aqui. Se não
quiser, podemos beber umas depois.
-
Você não é casado?
-
E a gente deixa de ter sede quando casa?
Eles
riram enquanto Serafim ligava o computador.
-
Tá, o que temos pra hoje?
-
Nada mucho, hermano. Pelo que eu
soube, tem um caso grande sendo processado, mas só deve sair semana que vem.
Enquanto isso, pequenos delitos, mas nada digno de Hórus.
Serafim
riu, vendo surgir a interface da Mind7 em seu monitor.
-
Há quanto tempo ele não faz nada?
-
Mais de um mês. E é “ela”.
-
Como você tem tanta certeza?
-
Pelo modus operandi, cara. Ela só
ataca homens escrotos. Os chefões na conta dela só tinham por perto uma mulher
na hora da morte. E as coisas que ela faz com os corpos... Sério. Por que um
cara cortaria o pau do outro e sufocaria ele com o bagulho? É uma mulher com
certeza!
-
Tudo bem – aceitou Serafim, sem pensar muito no assunto. Já ouvira o colega
tietar o primeiro lugar do Up and Date muitas vezes, desde que começara a
trabalhar ali. Como supervisor do principal aplicativo da Mind7, era natural
que Henrique fosse o mais interessado nas flutuações do ranking de caçadores de
recompensa; mas ele era um verdadeiro fanboy da pessoa misteriosa denominada
Hórus, que ele insistia em dizer que era uma mulher a despeito de não haver
nenhuma prova de sua identidade real.
-
E o evento do app, já tá sabendo?
-
O e-mail não abriu ainda. O que é?
-
Uma comemoração pela meta atingida. 50 mil recompensas em 12 meses. Parece até
que os top 5 vão ganhar medalhas.
-
Alguém disse uma vez que se você mata uma pessoa é assassino, mas se mata
centenas é um herói – filosofou Serafim, bebericando finalmente o café.
Henrique
riu alto.
-
Você não tá entendendo. Vai ser um evento de verdade, tipo baile de gala. Se a
pessoa aparecer, ganha o prêmio. Se não aparecer, não ganha.
-
Querem coagir os assassinos mais bem-sucedidos de um aplicativo anônimo a
aparecer em público, em traje esporte fino, para ganhar mais dinheiro além das
recompensas que eles já acumularam? É isso?
-
É mais do que isso, meu amigo. É a assassina mais bem-sucedida da história do
nosso aplicativo em vestido de noite. Imaginou?
Ele
balançou a cabeça, achando graça da animação do colega. “Nosso aplicativo”.
Quanta ingenuidade.
-
Ela não deve aparecer, Henrique.
-
Eu também pensei que não, mas tem mais uma coisa em jogo.
-
O quê?
Henrique
esperou que Serafim olhasse para ele, fazendo suspense.
-
O evento vai ser o anúncio da maior recompensa já oferecida. É nisso que estão
trabalhando. E só quem estiver presente vai poder participar.
-
Caralho. Que cabeça vai ser essa?
-
Há rumores, mas não recebemos nada ainda.
Ele
repassou rapidamente os últimos grandes casos de escândalo e os crimes
hediondos. Nada de incomum entre as tragédias naturais com fundo de negligência
e a corrupção endêmica do governo que caía aos pedaços. Então ele se lembrou.
-
Ela não vai vir, sinto muito. Se for mesmo uma mulher, ela não vem.
-
Agora é minha vez de perguntar: por que tanta certeza?
-
Porque se for a cabeça que eu tô pensando, é outra mulher. E não acho que a
Hórus quebre o modus operandi só pelo
dinheiro, ainda mais se expondo.
-
Outra mulher? Peraí, tá falando da...?
-
Ela mesma. Não viu que está foragida? A Língua de Sangue.
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