Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Capítulo III - Deus é uma mulher


Serafim andou pelas ruas como se ainda estivesse dormindo e sonhando. Seus pés se encarregaram de guiá-lo enquanto a cabeça se encheu de vazio e estática. Todo ele era um sentimento, enorme e sem nome, que dançava em sua boca em forma de sorriso e protegia sua cabeça da chuva que recomeçara.
“Lá vai o idiota outra vez”, pensou. “Como se gostasse de chafurdar na própria merda.”
Ele suspirou, sentindo a água fria escorrer pela testa. Como achou que poderia sair sem eles?
“Você é um cínico filho da puta mesmo. Vai dizer que não gostou dela?”
“Todos nós gostamos dela. Acho que podemos partir desse princípio.”
Serafim assentiu para si mesmo, balançando a cabeça na rua vazia.
“É, mas o veadinho já está querendo dar um anel a ela.”
“Nunca vou entender como gostar de uma mulher significa ser ‘veadinho’.”
“Você entendeu, sim. Esse Branco é branco feito um marshmallow mesmo.”
“E você é cor de merda, babaca.”
“Fica quieto, anjinho.”
“Volta pro inferno, projeto de capeta.”
“Podemos concordar também que o Branco é péssimo em insultos?”
- Por favor – grunhiu Serafim, falando sozinho enquanto esperava para atravessar a rua – Escolham um para falar e calem suas respectivas bocas.
“Tecnicamente, somos apenas vozes.”
Houve um resmungo coletivo.
“Bem... Essa é uma mulher interessante. Temos que vê-la outra vez comigo no comando.”
“Você, Preto? Por que alguma vez deixaríamos que você assumisse?”
“Porque ela pediu um encontro comigo, especificamente. E porque eu tenho ideias muito melhores do que fazer com ela do que os sonhos mais ousados de cada um de vocês, de acordo com o que ela quer.”
“É você que está sonhando, irmão. De jeito nenhum vamos deixar as suas mãos chegarem perto daquele pescoço.”
“Possessivo.”
“Reconheça que você acabaria com a diversão rápido demais.”
“Com licença, mas ela não parece o tipo que foge ao sinal de perigo.”
“Tem razão, Verde. Conhecemos o tipo dela. O que o Branco chama de ser ‘enrolado no dedo mindinho’, nós sabemos o que significa de verdade: um grande chute no traseiro.”
“Como vocês conseguem ser tão pessimistas?”
“Presta atenção, Branco. Essa mulher não precisa de nós. Ela não quer nenhum de nós. Mesmo que tenhamos outros encontros e inúmeros orgasmos, ela vai continuar tão envolvida quanto agora.”
“No final da noite, depois que ela tiver nos mastigado bastante, vai nos cuspir de novo e sempre.”
“É a natureza dela.”
Serafim olhou para o céu cinzento, perguntando-se vagamente por que sempre voltava àquele estado de espírito miserável.
“Deveríamos nos ajudar. Trabalhar para o bem comum.”
“Meu caro, é o que estamos fazendo. Você apenas não se deu conta ainda.”
Finalmente ele estava em casa. Por um momento, conseguiu esvaziar a cabeça de novo, como se pudesse fugir de tudo que o atormentava fechando a porta. Mas foi apenas um momento antes que a realidade voltasse com todos: o tormento não era algo que pudesse ser deixado lá fora; tudo estava nele.

Bianca estava em cima dele, e por toda parte: as pernas estendidas em seu colo, os braços em torno de seu pescoço, a boca inquieta. Ela beijava cada centímetro do seu rosto, dizendo sem parar “obrigada, obrigada, obrigada”.
- Por quê? – perguntou ele, segurando-a para que não caísse de seu colo.
Ela se afastou o suficiente para olhá-lo com um sorriso enorme.
- Você não tem medo de mim.
- Por que eu teria medo de você?
- Por causa do que eu sou – respondeu, simplesmente.
Ele segurou o rosto dela com as duas mãos, novamente impressionado com o quanto ela era pequena em comparação. E, no entanto, o que sentia desmentiu aquele fato evidente. Bianca era enorme. Era ele que se sentia preenchido por ela, como se não houvesse sobrado                                  nenhum vazio dentro de seu corpo. Mal conseguia respirar. Mesmo assim, sorria contagiado por sua alegria enigmática.
- O que você é?
- Você sabe – ela disse, virando o rosto para beijar a palma de sua mão.
Antes que pudesse falar mais, Serafim abriu os olhos em seu quarto vazio. Era o meio da tarde de domingo. Já não chovia e o céu estava branco. Ele piscou, confuso, sentindo distintamente o peso de Bianca sobre suas pernas e a pele muito quente onde ela o havia beijado no sonho. A sensação de plenitude começou a se dissolver lentamente, conforme se dava conta de que estava só. Tudo estava em silêncio.
Tudo, inclusive ele mesmo.
Por um momento, ele estranhou o sentimento que não tinha há anos: era apenas Serafim. Nada de cores, somente uma massa cinza. Simples e pacífico.
Ele sabia que não iria durar muito, então respirou fundo e saboreou o instante em tudo o que conseguiu capturar. O cheiro do quarto, a luz da janela, seu corpo que esfriava devagar. E a imagem de Bianca em sua cabeça, ela inteira em um sorriso.
Quando acabou, ele ouviu uma risada distante e seu humor se coloriu novamente, de acordo com o que ria.

Pela primeira vez desde que começou no emprego, quase um ano antes, Serafim se sentia disposto a iniciar seu expediente. Pensando melhor, talvez fosse a primeira vez em sua vida que se sentia ansioso por trabalho, para se distrair com os códigos e chamados da área de tecnologia da Mind7, a maior desenvolvedora de aplicativos do mercado.
Ele ainda teve que amargar as horas mortas da segunda-feira até que chegasse o seu turno. Decidiu que faria uma hora extra e seguiu direto para o prédio no Centro da cidade depois de almoçar. Ao menos andando pelas ruas caóticas, ele dividia sua atenção entre desviar de transeuntes e camelôs e voltar ao ponto cego de seu fim de semana – os lençóis de Bianca.
- Que é isso, meu bom, caiu da cama? – perguntou Henrique, virando-se na cadeira ao ouvir a mochila ser arremessada no cubículo ao seu lado.
Serafim soltou algo entre um suspiro e um bufo, dirigindo-se à mesa do canto da sala para encher sua xícara de café.
- São 6 da tarde, cara.
- Eu sei, e o seu horário começa às 7. O que foi? Cansou de dever horas à empresa?
- Não, vim salvar o teu rabo de ser soterrado pelos chamados do fim de semana.
Henrique riu, ajeitando os óculos no rosto moreno.
- Está tudo sob controle, cara. Você que parece desalinhado.
Serafim se recostou na cadeira e olhou para o teto, percebendo que não tinha a mínima vontade de provar o café.
- Saí com uma mulher. Foi ótimo. Não sei se vou vê-la outra vez.
Henrique encarou o amigo com os olhos arregalados.
- Você?
- É, eu – respondeu Serafim, olhando para ele pela primeira vez, incomodado com seu tom de voz – Qual o problema? Achou que eu era gay?
- Não, não foi o que eu quis dizer – replicou ele, rindo – É que você não é o tipo de cara que fica amuado pelos cantos por causa de mulher.
Serafim voltou a olhar pro teto, desejando que o café fosse uísque. Não pela primeira vez, pensou como era irritante ser julgado como um certo “tipo de cara” por causa de sua aparência. E imediatamente uma das cores gritou “mimizento” ao longe, em sua cabeça.
- Eu não tô amuado... Só... Sei lá.
- Parece a definição exata de amuado.
- Tá bom então, eu tô amuado. Por causa de uma mulher. E agora?
- Agora liga pra ela, ué. Você disse que o encontro foi bom. Ela deve estar amuada também – riu Henrique.
Serafim sorriu sem querer.
- Duvido.
- Ih... Vou nem perguntar mais nada. Se precisar desabafar, tô aqui. Se não quiser, podemos beber umas depois.
- Você não é casado?
- E a gente deixa de ter sede quando casa?
Eles riram enquanto Serafim ligava o computador.
- Tá, o que temos pra hoje?
- Nada mucho, hermano. Pelo que eu soube, tem um caso grande sendo processado, mas só deve sair semana que vem. Enquanto isso, pequenos delitos, mas nada digno de Hórus.
Serafim riu, vendo surgir a interface da Mind7 em seu monitor.
- Há quanto tempo ele não faz nada?
- Mais de um mês. E é “ela”.
- Como você tem tanta certeza?
- Pelo modus operandi, cara. Ela só ataca homens escrotos. Os chefões na conta dela só tinham por perto uma mulher na hora da morte. E as coisas que ela faz com os corpos... Sério. Por que um cara cortaria o pau do outro e sufocaria ele com o bagulho? É uma mulher com certeza!
- Tudo bem – aceitou Serafim, sem pensar muito no assunto. Já ouvira o colega tietar o primeiro lugar do Up and Date muitas vezes, desde que começara a trabalhar ali. Como supervisor do principal aplicativo da Mind7, era natural que Henrique fosse o mais interessado nas flutuações do ranking de caçadores de recompensa; mas ele era um verdadeiro fanboy da pessoa misteriosa denominada Hórus, que ele insistia em dizer que era uma mulher a despeito de não haver nenhuma prova de sua identidade real.
- E o evento do app, já tá sabendo?
- O e-mail não abriu ainda. O que é?
- Uma comemoração pela meta atingida. 50 mil recompensas em 12 meses. Parece até que os top 5 vão ganhar medalhas.
- Alguém disse uma vez que se você mata uma pessoa é assassino, mas se mata centenas é um herói – filosofou Serafim, bebericando finalmente o café.
Henrique riu alto.
- Você não tá entendendo. Vai ser um evento de verdade, tipo baile de gala. Se a pessoa aparecer, ganha o prêmio. Se não aparecer, não ganha.
- Querem coagir os assassinos mais bem-sucedidos de um aplicativo anônimo a aparecer em público, em traje esporte fino, para ganhar mais dinheiro além das recompensas que eles já acumularam? É isso?
- É mais do que isso, meu amigo. É a assassina mais bem-sucedida da história do nosso aplicativo em vestido de noite. Imaginou?
Ele balançou a cabeça, achando graça da animação do colega. “Nosso aplicativo”. Quanta ingenuidade.
- Ela não deve aparecer, Henrique.
- Eu também pensei que não, mas tem mais uma coisa em jogo.
- O quê?
Henrique esperou que Serafim olhasse para ele, fazendo suspense.
- O evento vai ser o anúncio da maior recompensa já oferecida. É nisso que estão trabalhando. E só quem estiver presente vai poder participar.
- Caralho. Que cabeça vai ser essa?
- Há rumores, mas não recebemos nada ainda.
Ele repassou rapidamente os últimos grandes casos de escândalo e os crimes hediondos. Nada de incomum entre as tragédias naturais com fundo de negligência e a corrupção endêmica do governo que caía aos pedaços. Então ele se lembrou.
- Ela não vai vir, sinto muito. Se for mesmo uma mulher, ela não vem.
- Agora é minha vez de perguntar: por que tanta certeza?
- Porque se for a cabeça que eu tô pensando, é outra mulher. E não acho que a Hórus quebre o modus operandi só pelo dinheiro, ainda mais se expondo.
- Outra mulher? Peraí, tá falando da...?
- Ela mesma. Não viu que está foragida? A Língua de Sangue.

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