Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Água e Leite

Eu tive um dia bom. Acordei cedo e encontrei um sol de manteiga. Tomei banho e me lembrei do resto do dia. Lembrei que tinha que escrever. Então disse adeus ao dia bom, porque escrever tem que vir de baixo. Tem que vir do fundo do poço. Estava dentro do banho, recuperado, mas lembrei e tive que sair e resgatar as rugas. Escrever é exorcizar-se. Não funciona falar sobre sóis de manteiga e céu azul. É descer e procurar a luz e a consolação. Eu tive um dia bom.
Então, do estado de deitado na minha rara paz, me sentei na cadeira de responsável, na poltrona das aspas e me citei: "Procurei aquele fundo breu de inquietação e me encantei que a fase anterior à depressão pudesse ser tão útil - e, assim, boa - e que, bela, me servisse os rancores e amores." De propósito, me desajustei.
Senti... Entre tanto o que senti, foi pena de meus parafusos, um a um soltos rolando para longe. Meu poço exposto, cada pedra em seu lugar. Cada anteparo a se julgar pelas marcas de dedos e infiltração. E calei (só que continuava falando, aqui), pois acredito que enjoam das presenças e das vozes mais rápido do que admitem por aí afora. Calei demais, receio. Caí naquela de encolhimento e até do meu cheiro bom me envergonhava. Encostei a cabeça no ar acima do encosto da cadeira e, de olhos fechados, mesmo abertos, lembrei que não tinha esperança e por isso sofri até ontem. E lembrar que esqueci e agora lembrava me trouxe de volta ao lugar de sempre. E meu cheiro de banho e esquecimento era prova de ingenuidade e natureza humana. E a raiva virou líquido quente de novo, de farelos que amoleceram novamente juntos. Coração que pesou contra as vértebras. Caía quase. Doía. Por voltar a saber que nunca, jamais seria nada. E isto que esquenta desprende cheiro que deixa-me doente, mesmo sendo meu - por quê? sou eu.
Me aposso dos fatos e granulo-os em palavras mesquinhamente. Deixo de esperar e corro à frente, escorro relógio abaixo até o topo das horas empilhadas envergarem. Alto demais; frouxo demais. Me perco no embalo. Os parafusos soltos: por isso ninguém me entende. Viver e escrever, mas a loucura é relativa.
E não me dou por vencido. Sei que o egoísmo é crescer, ser adulto, aparecer, se achar, se enxergar, encontrar sua turma, cair na real, encher a cabeça por um lado e rir do resto que ficou de fora. Rir porque não cabe, porque meu tempo não é suficiente. Rir de ser homem e ter que viver no mundo cheio, mas só poder ser um e não ser suficiente. Rir, sim, da opção que não fiz e dizer que é feia, sem sentido. Só porque estou preso à morte, ao meu próprio tempo e aos, muito meus, limites. Espezinhar dos outros é dar as costas ao espelho. Humanas ou Exatas? Arte. Cardiologia. A vida dentro de uma foto. Invalidez. Covardia. Natureza humana. Forças que não se sabe de onde. Coragem de sentar e se dizer. Palavras pingando da boca do poço. Consolação. Algum dia, um dia bom.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Beijo


            O mundo girava, a água fervia a 100º C. Abria os olhos de manhã e fechava-os à noite. Até que aconteceu: o digno de registro. Como as cores da larva e o suor na chuteira. Agora, é gol e borboleta. A presença eriçou a atenção; quando vê, ouve música. Braços em redor e segundos que só se compreende depois. Vinte anos digerindo um momento. O momento de olhos fechados que viram tudo. Toda a polissemia do silêncio. As cores todas se fundiram naquela boca. Todo o corpo se juntava à mente.
A felicidade existia e se movia sobre a face daquele lago de vazio anterior à luz e ao próprio Gênesis.
O beijo explodiu e queimou a vida e os dedos a largaram em cinzas. Não havia mais mundo além dos olhos fechados. O suor se desprendia das peles a 37,5º. Tinha deixado marcas na vida, segurando-se nela forte demais. Todo o mundo eram os tímpanos e o som que retumbava - o gosto das cores abrasando a língua e as bochechas. Tato elevado ao e da quantidade de movimento.
Agora... A água evapora dos olhos abertos a noite inteira. De manhã é hexacampeão. Mas o mundo, este nunca mais voltou a girar.