Ela se viu de frente para a privada branca,
muito branca mas não limpa no reservado de compensado encardido. O cheiro
distante do álcool usado para esfregar as paredes ainda flutuava ali, como um
fantasma do esfolamento sistemático cometido pelos faxineiros. Ela inspirou
devagar e fundo pela boca aberta, sentindo-se vazia como aquela água rasa
diante da qual estava, e vazia como aquelas paredes manchadas.
Saiu do banheiro e coxeou até a porta da
loja cara, depois pelo corredor afora do shopping center. Um princípio de
desespero ia crescendo dentro dela, mas continuou rumando para o sul, para a
casa de Fernando.
Ele a recebeu com um sorriso de surpresa,
apertou-a nos braços no caminho até seu quarto e perguntou o que foi.
- Estou grávida.
Ela assistiu ao seu semblante desmoronar e
sobrarem apenas os olhos, muito abertos. Depois sentiu a própria cabeça
girando. Piscou os olhos e se sentiu febril, ou como se tivesse chorado, mas
não tinha. Então ouviu-se dizendo algo sem sentido, mas que precisava dizer em
voz alta.
- Desculpe.
Toda a conversa que tiveram sobre o que
deveriam fazer foi pior do que se tivessem apenas sentado lado a lado em
silêncio. Logo Gloria pôde tatear aquele desespero, engoli-lo junto com a
saliva e quase vê-lo sobre as mãos, deitado entre seus dedos. Por um descuido
estúpido, estava apavorada. Olhou de lado para seu namorado, que olhava para
frente, a testa franzida no rosto fechado. Não era culpa de ninguém?
Ela tinha horror à gravidez, mas nunca disse
a ninguém. Não conseguia embarcar nos devaneios de um futuro no parque
conduzindo crianças que gritavam. E então ficou muito claro para si mesma que
ainda era jovem demais, próxima demais da infância. Não carregava condições de
se tornar uma mãe. Todos os seus devaneios espontâneos, grandes como edifícios
fundamentados no mundo onírico, viriam abaixo dali em diante. Tudo o que nasce
demanda uma morte, ela pensou amargamente. Como a semente que se deforma e
mergulha na terra, afundando-se fundo e fundo pleonasticamente para que outra
coisa, totalmente diversa, germinasse na superfície. Gloria gostava da luz e
tinha uma visão perfeita. Ela gostava da vida que tinha e se afeiçoara ao ritmo
que construíra. Não podia conceber, pensou deixando uma risada mouca escapar,
que destruísse o próprio ritmo.
Voltou para casa um pouco depois, naquele
estado de preocupação em que o cenário e o tempo se fundem e voam à revelia de
quem vive.
Estou ficando louca, ela pensava rapidamente
enquanto abria a porta de casa.
Eu o odeio.
Afundou numa cadeira, afundou o rosto entre
as mãos, sentiu as costas doerem.
Eu te odiei desde o início.
Não importa quem era Gloria. O que a
constituía, o que a rodeava, todo o seu passado. Era irrelevante. Interessa o
que ela fez.
E no fim, ela acabou concebendo algo.
Eu te amei até o fim do mundo.
O policial chamou seu nome. O mundo inteiro
parecia roxo, cor de tempestade. Ela se moveu como se estivesse dormindo, como
se andasse entre a chuva, como se atravessasse uma sopa, a sopa primordial, a
sopa da vida.
Sentou na cadeira de metal com um baque. Ela
não era atriz. Ela ia mentir.
- Denúncia de estupro?
Ergueu os olhos roxos, roxa de tempestade.
- Sim.
Só se colhe o que se planta.
Calculou as datas e chegou a chorar enquanto
se desculpava por não ter vindo antes. O policial, desconcertado, cheio de
nuvens nas rugas da testa, disse o que era verdade.
Não seja absurda. A culpa não é sua.
Ela então disse que queria abortar. O
pensamento do policial foi de que aquela mulher não poderia ter um filho. Quase
inconscientemente, foi o que ele pensou ao olhá-la à sua frente. Ela não
poderia.
O tempo passou rápido mais uma vez.
Gloria sumiu de casa, pediu dias no
trabalho, adiantaram-lhe as férias. Era uma boa garota. Seus telefones tocaram
enquanto ela estava longe. Fernando ficou muito preocupado. Ela lhe deixou um
recado. Vago e pequeno.
Mas ela foi ao hospital. Chorou mais uma
vez. Esperou deitada, tentando sair do próprio corpo para não atrapalhar o
processo.
Não era mais vazio nem desespero. Era um
medo substancial e sem cor. Ela engolia em seco, encolhia os dedos, continuava
chorando em silêncio. O tempo não voava agora. Olhou para baixo e percebeu as
próprias mãos unidas sobre a barriga, como se houvesse algo ali para ser
sentido. Como se estivesse num caixão.
Apenas o medo incomensurável, implacável.
Até agora ela podia desistir. Podia, num movimento mínimo, ser forte.
Pensou se conseguiria respirar quando
adormecesse. Deveria ser como todas as outras vezes até então. O padrão dos
cochilos, a facilidade da escorregada, um deslize de terra, um punhado de
poeira. Anestesia. Sedação. Horas.
Gloria sentiu olheiras depois de tanta
inconsciência. Sentia parte específica de sua pele enegrecida. Devagar,
conscientizou-se do resto de seu corpo. Seu pobre e único corpo, o único que
possuía. Estava só.
Estava só no quarto do hospital, pouca luz
artificial vindo de baixo da porta. Era como observar de dentro da morte. Não
havia emergências. O mundo esperava, porque era apenas o que existia. Não um
movimento, nem o retrocesso. Tudo era espera.
Quando voltou para casa, Gloria não sentia o
corpo muito diferente. Sabia que logo ia esquecer, sendo quem era. Isso a
entristecia.
Entrou pelo portão em silêncio, e tomando um
certo cuidado para mantê-lo. O dia estava escuro. Viu então, sobre a parede
diretamente em frente, um filete negro e, ao se aproximar, percebeu que aquilo
se mexia. De um buraco no chão vinham as formigas e se dirigiam para o alto,
onde bem no meio havia uma gaiola. A gaiola do pássaro de Gloria.
O dia estava escuro porque era verão, e após
dois dias de calor intermitente, ia chover. Gloria estava fora havia mais de 72
horas. A água do bebedouro devia ter acabado pouco depois que saiu.
A gaiola estava na altura de seus olhos. Ela
distinguiu seu pequeno pássaro de costas sobre o jornal, em meio a sujeira de
penas. Distinguiu as marcas das grades sobre o pescoço e no encontro das asas.
Viu, entre seu bico muito aberto, a pequena língua. Os olhos estavam estreitos,
nem abertos nem fechados. E viu as formigas. Tantas formigas. Quanto mais
olhava, mais se moviam, entre o canário e ao seu redor.
Agarrou a gaiola, puxou-a para longe da
parede e sentiu o pequeno corpo rolar.
Começava a chover. Gloria sentia a pressão
do ar em seu próprio corpo. Sentiu-se cheia de suor a partir dos dedos
agarrados à grade da gaiola, sujos de ferrugem. Pôs-se de joelhos no chão, mas
sabia que não ia conseguir tirá-lo dali assim. Não podia tocá-lo com as mãos.
Inferno.
Ela arranjou um lenço grosso que pôs sobre o
pobre pássaro. Ainda tinha as chaves no bolso. Saiu novamente.
A chuva quente encharcou a gaiola que Gloria
carregava nos braços. Acomodado num canto, o bolinho de pano ia absorvendo a
água e ficando escuro, pesado. Gloria andava sem parar no meio das ruas vazias,
debaixo de água que não a limpava e carregando um pássaro que não cantava.
Havia um terreno lamacento onde meninos jogavam bola. Gloria foi até lá e
cavou. O céu estava claro por trás da chuvarada e ela via seus braços cinzentos
contra a terra. Agarrou grandes nacos do canto do campo e os arremessou para
todos os lados. Gritou enquanto afundava as mãos na água que se acumulava
rapidamente. Sentiu a terra estremecer durante um trovão. Cavou com força até
se sentir extremamente exausta. Até parar de sentir o ardor nos braços. Até
quase deitar para continuar cavando. Quando decidiu parar, esticou-se até a
gaiola e deixou que caísse no fundo negro. Arrastou-se de joelhos e, com um
movimento largo, empurrou um monte de terra de volta para o buraco. A chuva não
permitia que ouvisse o som da terra caindo. Ela empurrou mais e mais até
perceber que estava apenas chafurdando na lama. Levantou e foi embora.
Em sua casa estava muito mais escuro.
Parecia que era noite há muitas horas. Quando deu por si, estava deitada no
chão do banheiro, emporcalhando o piso e o tapete de lama.
O chão era frio contra o seu rosto. Estava
tão exausta que não sentia mais cansaço. Pensava devagar. Algumas coisas
terríveis tinham acontecido. Sentia que se pensasse sobre elas, aquele momento
se tornaria terrível. O que poderia tirá-la dali?
Uma coisa de cada vez. Um passo para o
chuveiro, depois outro até a estante com a toalha. Passos, não luzes. Água
fria. Bem podia ser que a tempestade tivesse cortado a luz.
Gloria tinha a noite toda pela frente. Fez
tudo devagar. Deixou cada evidência desaparecer. As roupas numa sacola
plástica, emboladas, para o lixo. Não acendeu nada. Moveu-se no escuro,
acomodou-se no chão ao lado da cama, encolhida sobre o carpete. A chuva rugia
lá fora.
Amanheceu logo e Gloria acordou de costas
sobre o carpete. Não se sentia mais dolorida do que antes. Conseguia ver o
amarelo refletido pela luz do sol se infiltrando pelas cortinas. Ela ia
levantar, preparar café, pegar o jornal na soleira. Com calma. Foi passando os
olhos pelo caderno de cultura enquanto espalhava margarina num biscoito. Ainda
havia concertos gratuitos no parque. Havia um hoje, ao meio dia. Se ela saísse
agora poderia ver. Então ela deixou a xícara na pia, lavou o rosto e pôs roupas
novas. Pegou as chaves e foi para o metrô.
Era o mês do concerto de harpas. O parque,
que era na verdade o jardim de um museu, estava cheio. A harpista estava numa
pequena ponte sobre o lago e todos os bancos estavam ocupados. Gloria sentou na
grama, apenas ouvindo, sem se preocupar em acompanhar os movimentos dolorosamente
graciosos da mulher. Estava um lindo dia, apenas um pouco frio. Aquela cor
amarela do sol escoava por entre as árvores altas. Havia muitos velhos e muitas
crianças. Alguns cachorros. E aquela música que fazia chorar em silêncio, sentada
atrás da plateia, aquela canção antiga cujo nome era uma sequência de números
em atos. Gloria começou a se sentir melhor.