Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Aos Ínferos

Ela se viu de frente para a privada branca, muito branca mas não limpa no reservado de compensado encardido. O cheiro distante do álcool usado para esfregar as paredes ainda flutuava ali, como um fantasma do esfolamento sistemático cometido pelos faxineiros. Ela inspirou devagar e fundo pela boca aberta, sentindo-se vazia como aquela água rasa diante da qual estava, e vazia como aquelas paredes manchadas.
Saiu do banheiro e coxeou até a porta da loja cara, depois pelo corredor afora do shopping center. Um princípio de desespero ia crescendo dentro dela, mas continuou rumando para o sul, para a casa de Fernando.
Ele a recebeu com um sorriso de surpresa, apertou-a nos braços no caminho até seu quarto e perguntou o que foi.
- Estou grávida.
Ela assistiu ao seu semblante desmoronar e sobrarem apenas os olhos, muito abertos. Depois sentiu a própria cabeça girando. Piscou os olhos e se sentiu febril, ou como se tivesse chorado, mas não tinha. Então ouviu-se dizendo algo sem sentido, mas que precisava dizer em voz alta.
- Desculpe.
Toda a conversa que tiveram sobre o que deveriam fazer foi pior do que se tivessem apenas sentado lado a lado em silêncio. Logo Gloria pôde tatear aquele desespero, engoli-lo junto com a saliva e quase vê-lo sobre as mãos, deitado entre seus dedos. Por um descuido estúpido, estava apavorada. Olhou de lado para seu namorado, que olhava para frente, a testa franzida no rosto fechado. Não era culpa de ninguém?
Ela tinha horror à gravidez, mas nunca disse a ninguém. Não conseguia embarcar nos devaneios de um futuro no parque conduzindo crianças que gritavam. E então ficou muito claro para si mesma que ainda era jovem demais, próxima demais da infância. Não carregava condições de se tornar uma mãe. Todos os seus devaneios espontâneos, grandes como edifícios fundamentados no mundo onírico, viriam abaixo dali em diante. Tudo o que nasce demanda uma morte, ela pensou amargamente. Como a semente que se deforma e mergulha na terra, afundando-se fundo e fundo pleonasticamente para que outra coisa, totalmente diversa, germinasse na superfície. Gloria gostava da luz e tinha uma visão perfeita. Ela gostava da vida que tinha e se afeiçoara ao ritmo que construíra. Não podia conceber, pensou deixando uma risada mouca escapar, que destruísse o próprio ritmo.
Voltou para casa um pouco depois, naquele estado de preocupação em que o cenário e o tempo se fundem e voam à revelia de quem vive.
Estou ficando louca, ela pensava rapidamente enquanto abria a porta de casa.
Eu o odeio.
Afundou numa cadeira, afundou o rosto entre as mãos, sentiu as costas doerem.
Eu te odiei desde o início.
Não importa quem era Gloria. O que a constituía, o que a rodeava, todo o seu passado. Era irrelevante. Interessa o que ela fez.
E no fim, ela acabou concebendo algo.
Eu te amei até o fim do mundo.
O policial chamou seu nome. O mundo inteiro parecia roxo, cor de tempestade. Ela se moveu como se estivesse dormindo, como se andasse entre a chuva, como se atravessasse uma sopa, a sopa primordial, a sopa da vida.
Sentou na cadeira de metal com um baque. Ela não era atriz. Ela ia mentir.
- Denúncia de estupro?
Ergueu os olhos roxos, roxa de tempestade.
- Sim.
Só se colhe o que se planta.
Calculou as datas e chegou a chorar enquanto se desculpava por não ter vindo antes. O policial, desconcertado, cheio de nuvens nas rugas da testa, disse o que era verdade.
Não seja absurda. A culpa não é sua.
Ela então disse que queria abortar. O pensamento do policial foi de que aquela mulher não poderia ter um filho. Quase inconscientemente, foi o que ele pensou ao olhá-la à sua frente. Ela não poderia.
O tempo passou rápido mais uma vez.
Gloria sumiu de casa, pediu dias no trabalho, adiantaram-lhe as férias. Era uma boa garota. Seus telefones tocaram enquanto ela estava longe. Fernando ficou muito preocupado. Ela lhe deixou um recado. Vago e pequeno.
Mas ela foi ao hospital. Chorou mais uma vez. Esperou deitada, tentando sair do próprio corpo para não atrapalhar o processo.
Não era mais vazio nem desespero. Era um medo substancial e sem cor. Ela engolia em seco, encolhia os dedos, continuava chorando em silêncio. O tempo não voava agora. Olhou para baixo e percebeu as próprias mãos unidas sobre a barriga, como se houvesse algo ali para ser sentido. Como se estivesse num caixão.
Apenas o medo incomensurável, implacável. Até agora ela podia desistir. Podia, num movimento mínimo, ser forte.
Pensou se conseguiria respirar quando adormecesse. Deveria ser como todas as outras vezes até então. O padrão dos cochilos, a facilidade da escorregada, um deslize de terra, um punhado de poeira. Anestesia. Sedação. Horas.
Gloria sentiu olheiras depois de tanta inconsciência. Sentia parte específica de sua pele enegrecida. Devagar, conscientizou-se do resto de seu corpo. Seu pobre e único corpo, o único que possuía. Estava só.
Estava só no quarto do hospital, pouca luz artificial vindo de baixo da porta. Era como observar de dentro da morte. Não havia emergências. O mundo esperava, porque era apenas o que existia. Não um movimento, nem o retrocesso. Tudo era espera.
Quando voltou para casa, Gloria não sentia o corpo muito diferente. Sabia que logo ia esquecer, sendo quem era. Isso a entristecia.
Entrou pelo portão em silêncio, e tomando um certo cuidado para mantê-lo. O dia estava escuro. Viu então, sobre a parede diretamente em frente, um filete negro e, ao se aproximar, percebeu que aquilo se mexia. De um buraco no chão vinham as formigas e se dirigiam para o alto, onde bem no meio havia uma gaiola. A gaiola do pássaro de Gloria.
O dia estava escuro porque era verão, e após dois dias de calor intermitente, ia chover. Gloria estava fora havia mais de 72 horas. A água do bebedouro devia ter acabado pouco depois que saiu.
A gaiola estava na altura de seus olhos. Ela distinguiu seu pequeno pássaro de costas sobre o jornal, em meio a sujeira de penas. Distinguiu as marcas das grades sobre o pescoço e no encontro das asas. Viu, entre seu bico muito aberto, a pequena língua. Os olhos estavam estreitos, nem abertos nem fechados. E viu as formigas. Tantas formigas. Quanto mais olhava, mais se moviam, entre o canário e ao seu redor.
Agarrou a gaiola, puxou-a para longe da parede e sentiu o pequeno corpo rolar.
Começava a chover. Gloria sentia a pressão do ar em seu próprio corpo. Sentiu-se cheia de suor a partir dos dedos agarrados à grade da gaiola, sujos de ferrugem. Pôs-se de joelhos no chão, mas sabia que não ia conseguir tirá-lo dali assim. Não podia tocá-lo com as mãos.
Inferno.
Ela arranjou um lenço grosso que pôs sobre o pobre pássaro. Ainda tinha as chaves no bolso. Saiu novamente.
A chuva quente encharcou a gaiola que Gloria carregava nos braços. Acomodado num canto, o bolinho de pano ia absorvendo a água e ficando escuro, pesado. Gloria andava sem parar no meio das ruas vazias, debaixo de água que não a limpava e carregando um pássaro que não cantava. Havia um terreno lamacento onde meninos jogavam bola. Gloria foi até lá e cavou. O céu estava claro por trás da chuvarada e ela via seus braços cinzentos contra a terra. Agarrou grandes nacos do canto do campo e os arremessou para todos os lados. Gritou enquanto afundava as mãos na água que se acumulava rapidamente. Sentiu a terra estremecer durante um trovão. Cavou com força até se sentir extremamente exausta. Até parar de sentir o ardor nos braços. Até quase deitar para continuar cavando. Quando decidiu parar, esticou-se até a gaiola e deixou que caísse no fundo negro. Arrastou-se de joelhos e, com um movimento largo, empurrou um monte de terra de volta para o buraco. A chuva não permitia que ouvisse o som da terra caindo. Ela empurrou mais e mais até perceber que estava apenas chafurdando na lama. Levantou e foi embora.
Em sua casa estava muito mais escuro. Parecia que era noite há muitas horas. Quando deu por si, estava deitada no chão do banheiro, emporcalhando o piso e o tapete de lama.
O chão era frio contra o seu rosto. Estava tão exausta que não sentia mais cansaço. Pensava devagar. Algumas coisas terríveis tinham acontecido. Sentia que se pensasse sobre elas, aquele momento se tornaria terrível. O que poderia tirá-la dali?
Uma coisa de cada vez. Um passo para o chuveiro, depois outro até a estante com a toalha. Passos, não luzes. Água fria. Bem podia ser que a tempestade tivesse cortado a luz.
Gloria tinha a noite toda pela frente. Fez tudo devagar. Deixou cada evidência desaparecer. As roupas numa sacola plástica, emboladas, para o lixo. Não acendeu nada. Moveu-se no escuro, acomodou-se no chão ao lado da cama, encolhida sobre o carpete. A chuva rugia lá fora.
Amanheceu logo e Gloria acordou de costas sobre o carpete. Não se sentia mais dolorida do que antes. Conseguia ver o amarelo refletido pela luz do sol se infiltrando pelas cortinas. Ela ia levantar, preparar café, pegar o jornal na soleira. Com calma. Foi passando os olhos pelo caderno de cultura enquanto espalhava margarina num biscoito. Ainda havia concertos gratuitos no parque. Havia um hoje, ao meio dia. Se ela saísse agora poderia ver. Então ela deixou a xícara na pia, lavou o rosto e pôs roupas novas. Pegou as chaves e foi para o metrô.

Era o mês do concerto de harpas. O parque, que era na verdade o jardim de um museu, estava cheio. A harpista estava numa pequena ponte sobre o lago e todos os bancos estavam ocupados. Gloria sentou na grama, apenas ouvindo, sem se preocupar em acompanhar os movimentos dolorosamente graciosos da mulher. Estava um lindo dia, apenas um pouco frio. Aquela cor amarela do sol escoava por entre as árvores altas. Havia muitos velhos e muitas crianças. Alguns cachorros. E aquela música que fazia chorar em silêncio, sentada atrás da plateia, aquela canção antiga cujo nome era uma sequência de números em atos. Gloria começou a se sentir melhor.

sábado, 22 de junho de 2013

Claudio e Veridiana, parte III

            Claudio amava Veridiana. Amava-a na ponta de cada dedo e no estreito vazio entre os dentes de cima e os de baixo, no fundo da boca fechada. Ele a amava antes de acordar e a amava depois, sem distinguir entre sonhos, lembranças e devaneios. Amava-a em cada fímbria de seus músculos e em cada pêlo de sua pele, descoberta ou agasalhada. Amava-a em volta do relógio e da sua nuca, amava sem volta, com cada ruga se firmando em volta dos lábios, de tanto que pensava nela. Ele a amava distraído e determinado, rumando forte até o centro da história que escreviam em tardes folheadas a ouro no Parque das XX. Pressentia o perigo do seu coração pesado que voava a muitos metros do chão, mal seguro por uma cordinha enrolada em sua mão; mas prosseguia porque seu amor era nascido e inevitável. Agora que ele conhecia o ar e a luz, não voltaria jamais ao útero inexistente do amo. Seu amor era alto e ereto, era firme sob a tarde e suave em meio às noites. Queimava ao longo de toda a pele da virgem Veridiana, cega aos efeitos que gerava em sua calma perfeição.
            Cláudio a amava sem escolta, sozinho e bravamente, suprimindo o medo com as duas mãos, guardando o grito na boca que só se abria para beijá-la. Como ele a amava, jovem e ignorante do resto de suas vidas, entregue ao delirante espetáculo de um passeio de mãos dadas pelas ruas. Ele só a amava, sem precisar fazer força. Olhava para os seus olhos de lago e suspendia a respiração, pois amá-la era sempre mais fácil do que respirar.
            Até o dia em que ela se virou sobre o banco de pedra e anunciou em poucos períodos que estava de viagem para a própria vida: calçar sapatilhas e ser bailarina na Rússia. O verde Cláudio, pesado sobre as pernas estendidas, sentiu o seu próprio amor rodar em torno do eixo e, feito bola translúcida, tocar a base de seu pescoço e ganhar os quilos de 3 milhões de grãos de desespero. A luz foi cruel e permaneceu brilhante. O mundo não oscilou, a chuva não se derramou, a água dos lagos de Veridiana não ferveu. Ele estava só, e pior: acompanhado de todo aquele amor bastardo.
            Cláudio ainda a amava, e não conseguia nem por força se achar um desgraçado. Ele via que a fonte daquele amor era a graça primeira e inabalável de Veridiana, rodando no céu dos seus pensamentos desencontrados. Era o único elo entre todas as letras guardadas na sua cabeça. E mesmo sofrendo feito um cão, nos dois anos que passou sem vê-la, ele ainda sabia o que era que ardia em sua consciência. Como a certeza da existência de um Deus onipotente, amar Veridiana era o ato definitivo e imutável, posto em seu imo e externado à sua revelia. Não importava que ela não o sentisse; o amor se fazia, comia, bebia, respirava e filosofava, maior do que antes, melhor como sempre, e mais forte do que as simples estruturas de um homem e de uma bailarina.
            Foi a formação deste pensamento que levou Cláudio à neve que margeava o Pacífico, o Ártico, o Negro e o Cáspio.

sábado, 4 de maio de 2013

Claudio e Veridiana, parte I


Do nada, o garoto soube que estava, como que dizer, perdido. Sentou de volta na sala de aula, com o rosto lavado de sorrisos e a boca ainda gostosa de Veridiana. Tinha uns 15 minutos a esperar ainda na sala fria aonde pouco a pouco chegava gente. Uns bons e longos minutos em que, prazerosamente, o seu olhar vagava entre o papel branco do caderno aberto, o chão cinzento limpo, o quadro de bordas azuis. Ficou piscando os olhos sem se aperceber, e sentindo-se preso – ou antes, enredado – num estado de espírito esticado, que não se decidia entre o cheio e o vazio. Estava exaurido.
Era ali no “depois” que ele passava a saber, e a dar-se plena consciência de como se sentia. Durante a estada de Veridiana, ele apenas sentia. E se levava pela corrente das suas palavras úmidas de riso. Era sempre quente com Veridiana, como se as horas dela fossem as horas do sol da justiça firmado no mais alto dos céus.
Era na presença dela que ele aspirava o ar com mais afinco, como se seu corpo botasse então por necessidade prioritária o Oxigênio. Era o ser-com-ela que guiava o trilho de suas horas, as horas de espera e todas as outras. Por aquelas tardes singulares, raiadas de verde esmeralda, vividas sempre na lista dos lugares-comuns, o seu espírito se reunia ao corpo e aumentava então a demanda por fôlego.
Põe-se agora o garoto sobre a mão e os cotovelos, no momento em que o espírito começava a voltar a dormir, quase suspirando. Todo sensacional cedia lugar ao banal e era chegado o seu momento de cinza nas horas. Aquelas horas, tais quais as de Romeu, que são alongadas por não (mais) terem o que as tornaria breves. Sim, sentado ali ele deixava que o patético lhe tomasse, contínuo e certeiro como onda crescendo do mar à areia. E todo dia que acordava sabendo que não a veria, era um dia arrastado e aparentemente despropositado no fim das contas de seu Universo. Além disso, ele se enxerga agora, tropeçado e prostrado num dia oco. Foi tirando conclusões.
Chegou ali pensando que aquela coexistência exuberante a que chamavam “namoro” era algo perturbador quando pensado de uma certa distância. Era como doses de maravilhamento entremeadas pela vida real. Como uma comunhão metafísica exposta em filas de cinema e vivida sobre mantas de crochê perfuradas pela grama. Do nada, todo aquele raciocínio lhe nasceu da terra. Só a palma solitária e a voz do professor vieram lhe buscar de volta pro mundo dos reais.
Mas a boca, esta continuava acordada até quando o resto do corpo e o espírito adormeciam.

sábado, 20 de abril de 2013

Não


Ela chorava por antecipação,
Porque sabia o que estava por vir.
Que a escuridão do que estava por vir
Estava para sair de si.

Conhecia
Que haveria de dizer
Aquela palavra
E já
A sentia sobre a língua
Dura e quente
Feito um bolo de ferro
Que se haveria
De derramar definitiva e lentamente
Até bater no chão e empestear o quarto inteiro
E ainda: arder de volta nos olhos antes de impregnar nas paredes

Como fuligem.
Debruçada sobre o pano de prato que bordava chorava já,
Pois sabia que a hora ia vir até ela
Como estação de trem longínqua
Que estivesse em algum lugar do espaço,
O quarto,
Fatídico esperando
Que ela chegasse. Esperando pela sua boca.

Esperando pela sua coragem.
Pois já podia ver os olhos desviados do outro
E previa cada centímetro daquela pele escura
Se colorindo de frustração.
E já podia sentir as ondas
A partir do seu arriar de ombros
E dos cantos dos seus lábios
Insoluços, para baixo.

Chorava já e sim,
Pois conhecia a lei da lógica
E a reação
Para todo não
É o fim.

Traçava no pano alvo uma linha azul
Que desenhava uma flor sobrenatural e feia
E aquela uma palavra que tinha como certeza
Justificava todas suas razões para chorar.

domingo, 7 de abril de 2013

Breve história de uma paixão superada


Era domingo, de manhã. O dia de viver em sociedade. A cidadezinha estava quieta e esparsa, o sol apenas aquecia. Bom dia para andar de chinelos e vestido de florzinha. Bom dia para ter cabelo cacheado. A gente estava toda misturada: crianças, adultos de bicicleta, adultos que queriam crianças e garotas que nunca iam envelhecer. Posamos todos para a foto, com o vento agitando panfletos de evangelismo.
Foi um domingo longo, como sempre parecem os dias que dividimos com os outros. A mulher na mesa do bar em pleno domingo de manhã nos contou a história da vida de alguém que já estava morto. Alguém mais novo do que ela. Debaixo do sol de domingo, o dia mais bonito, ouvimos as lágrimas da mãe, uma mãe, uma mulher de muita pele e olhos caídos que andavam mais do que ela, mas menos do que seus pensamentos, que rodopiavam entre sonhos e lembranças. Entre o tom da razão e o da revolta, o revolto do coração que bebia cerveja. Uma mulher com nome de boneca, Emília nos contando como ela pensava, logo existia – e como ela amava o que já não existia.
Seguimos, as pseudo-irmãs procurando o rebanho adiantado pelas ruas quase vazias, parando para fotos em preto e branco debaixo do sol. Mas primeiro, um encontro. Mais um naquela selva desmatada de cidadezinha, um quase homem, alto segurando um pacote meio devorado de biscoitos. E ele nos abraçou como se fizesse todo o sentido, não falou uma palavra, me apertou, seu queixo em minha cabeça como Bogart e Bergman nas cores estúpidas de uma manhã de domingo.
E ainda fomos embora. Muitas partidas naquele dia, muito descascar de alhos. Fomos adotadas pro almoço e chegou mais um, só para ter que partir também. Este não era alto, nem abraçou ninguém. Só falava e falava e ouvia e quebrou meu chaveiro, mas teve conserto. E continuava a falar com aquela voz de cantor, voz que tinha a mesma cor morena e bonita de sua pele. Confessou vários medos rindo. E era o mesmo, só que diferente.
Um almoço em família.
Que depois acabou, e já era tarde. Tarde de domingo. Preguiçosa, matadora de tempos.
Depois, histórias engraçadas, embora a noite estivesse fria. Uma noite rara em que eu usava saltos. Tramava eu contra mim? Possivelmente.
Só que eu escrevo do futuro, então os últimos acontecimentos perderam parte de sua força. Apenas uma observação muito estranha de que ele prefere amar à distância.
O que quer que isso signifique.

sábado, 2 de março de 2013

Profecia


Eles se terão, peito sobre peitos.
Peles que se alongam até o gigantesco.
Eles se haverão de ter, lindamente mútuos
Insistentes
Espirrando cores sobre os muros e paredes.
Se roçarão e
Se aspirarão, assim mesmo como se fossem
Carreiras de fragmentos aromáticos
Carreiras de desilusão.

O cordão de cruz balançará sem piedade característica
Fará cócegas por cima do suor vermelho,
Encontro restaurado.
A profanação romântica.
Enganchará na cordinha preta
Que o segura
- ai, ao redor do pescoço, como Judas
e lança o pingente para o meio das costas
Que lugar de cruz é nas costas.
E as unhas
E as pontas da madeira
Furam na certa pressão
Imersa em ritmo
De dança que limita o ardor e a dor.

Mas é o tempo
Que antes os terá sobre a barriga.
Quando eles se tiverem, será
Por dias e por horas
Que nenhuma preocupação se ocupará de contar.
Quando se tiverem, serão conjugadores
Do deitar, do muito, do rio, do leito.
O rio quente o escaldar o renascer
.
Pois que toda morte é
Linda
E é pura
No que purifica a vida.
A que fica,
Que resta
Sobre os dedos que
Descansarão quando se tiverem.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Diálogo nº 3


- Eu sempre soube o que quero da vida.
- Eu odeio generalizações.
- Mas algumas generalizações são válidas.
- Você é adepta do “sempre” ou do “quase”?
- E você é adepto do ódio aos dois?
- Você vai pensar que é impossível me agradar.
- “Impossível” também é generalização.
- Exatamente. Você, adepta disso, vai logo me generalizar.
- Sempre odiei preconceitos.
- Então você é uma contradição, porque odeia o que pratica.
- Não sei se posso contestar a visão que você tem de mim, pois isso é algo muito seu...
- Fique à vontade.
- ...Mas praticar algo que se odeia, ou com que não se concorda, é comum. Odeio ter que me equilibrar em fios todos os dias, mas não poderia deixar de fazê-lo.
- Aí há uma diferença de ódio à necessidade. O que eu disse foi que você odeia o que pratica, e não que pratica o que odeia.
- Não é a mesma coisa?
- Nem sempre (olha o quase). Quando você odeia o que pratica, como os preconceitos que traz, é porque vai além da sua capacidade negar-se a isso. Incorre no erro que lhe é inerente e por isso mesmo, talvez, é que o odeie.
- O que está dentro de mim não posso tirar.
- Já praticar o que se odeia requere uma ação antes mesmo do pensamento. Na maioria das vezes você pode pensar antes de agir. Quando você pode pensar, chegar a uma conclusão (se ama ou se odeia) e daí tomar uma decisão, a culpa é sua.
- O que escolho tocar é a mácula premeditada... Mas e quando as causas não me deixam saída?
- Entranhas conjunturais. Mas acabam sendo influência da sua estrutura.
- Isso é bíblico! “O bem que quero, este não faço. O mal que não quero persegue os meus passos”.
- E assim “o mundo jaz no maligno”.
- Mas, afinal... O que eu sempre quis da vida foi ser feliz.
- Tudo quer. Isto não é uma generalização. É a constatação de um flagrante.
- Mas é necessário quem alguém sofra em algum momento, para que outro esteja feliz.
- Momentos passam tão rápido...
- Existe algo que possa ser generalizado?
- Não existe equilíbrio. Por isso, não.
- O que existe?
- Nós, que pensamos e que somos, ao mesmo tempo, estruturas completas de nós mesmos e conjunturas na imensa máquina da vida.
- Do mundo?
- O mundo também passa, assim como nós. Mas dentro da gente, o pensamento pode voar a outros mundos. Vida e existir são mais.
- Existo como contradição, é isso?
- Acho que ninguém escapa de ser contradito pelo mundo.
- Eu quero ser feliz, mas mais: quero fazer coisas que sejam lembradas por outros que ajudei a ser felizes.
- Será que isso quer dizer que você quer o seu bem lembrado e o seu mal esquecido? No entanto, isso seria viver pela metade. Qualquer mal ajuda um bem em algum momento.
- E vice-versa?
- O mundo gira, não cai de um lado pra outro.
- Engraçado que estejamos inscritos num círculo, por natureza equilibrado, e que nunca alcancemos o equilíbrio.
- É um mal que serve ao bem. O objetivo é tão importante quanto o objeto sem cor, utópico. Mas concebê-lo, sonhar com ele já denuncia algo muito importante.
- O quê?
- A nossa contradição.

(Da série “Abolindo o Narrador” [2 pássaros sobre o fio do telefone])

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Glicerina (Claudio e Veridiana, parte II, narração em 1ª pessoa)


            Chegamos na casa dela, e enquanto acendia a luz e batia a porta, Ana despejou um pesado suspiro sobre o assoalho marrom. Disse que ia tomar banho. Eu bebi qualquer coisa da geladeira, tirei a calça e os sapatos e deitei na cama sob a janela.
            Alguns minutos depois ela veio, e eu fingindo dormir, senti o cheiro feliz da mistura do seu xampu com o sabonete, algo de frutas que lembrava o cor-de-rosa. A mesma Ana desligou as luzes e subiu, mãos e joelhos, para se largar por cima do cobertor. Eu, ainda de olhos fechados, cerquei ela com meu braço e posicionei meu nariz entre seus cabelos úmidos e a pele, fresca mas pulsante. E inalei bem fundo um jato de flores e uma lembrança de água quente. Corri a mão por suas costas, as curvas e dobras, depressão e vale debaixo dos meus dedos, e desembaracei uma mecha caída do seu cabelo no escuro, gelado, imprudente. Arranjei melhor seu corpo molengo de sono e pesado de entrega ao estado semi-consciente sobre o meu próprio, não muito distante disso, mas ainda um pouco responsável, de modo à sua pele ficar quase livre do molhado.
            Pisquei mais umas duas vezes e pensei, mal e mal, sobre o por que do meu sorriso desapercebido, aparentemente imotivado, ainda mais quando uma de suas pernas adormecidas se jogou sobre as minhas (decididamente imprudente). O neon clichê da placa do outro lado da rua jogava raios vermelhos sobre o pequeno quarto-cozinha. E eu fechei os olhos seguindo o caminho de Ana, ignorando as possíveis perguntas que, como todas que eram importantes, eu ia morrer sem responder.

Capitulação


Eu chego perto e, sem chegar,
percebo que não é para ser meu
e não será.
Não até
Que o temor se torne coragem,
o jejum se faça banquete,
pulseiras de torniquetes
e a alma lavada com esta honra
que era para lhe dar.

Não é para ser meu,
e não será
enquanto o que é olhar for da janela,
o que for lembrança lembrar-se dela
e o que for desejo
se parcele em sonho,
em outono,
em saudades do verão.

Não é pra ser meu,
e não será
enquanto não estivermos na mesma sala
E nem será quando estivermos,
mas ambos os corações continuarem lá fora.

Não sou meu.
Por isso é que não é para ser.
Por isso é que te expulso
e evito
sem poder, antes, expulsar é a mim.

Não é para ser meu,
e não será
enquanto o que é paixão for desejo;
o que é desejo for sonho;
e o sonho manter-se
Intocado,
Acima,
Almejado,
Antegozado
E sempre, muito mais
Forte.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Estupro

            Ele a via parada feito um bicho: os olhos como um desenho sobreposto, rasgado em rajas. O corpo, dos lábios ao peito e os dedos, indo pra cima e pra baixo num ofegar barulhento. Acuada, presa da própria fraqueza – mas com aqueles olhos, não havia real necessidade de palavras.
            Ele a rodeia, grande, apenas um pouco menos barulhento. Gravitam lágrimas, sobe suor. São quentes os dedos que ele fecha, que ele aperta naquela pele. Ela pálida, ele desconhecendo autocontrole, mira: sem amarras mais do que os nós dos dedos. Quando alcança a boca daquele bichinho cativo, aspira daquela respiração acelerada, bebe do vapor que sua presa transpira. Corre os dentes por aquela carne tão molhada e continua salivando como um faminto chamado à mesa de repente; sobe a mão direita como um fanático àquele lugar delgado onde mora sua cegueira. Ela treme, ele não. Se há alteração alguma, é que é mais firme agora a mão fechada enquanto o beijo se aperta mais, o corpo se afasta e a mão esquerda comanda – ela se dobra e deixa as costas no horizonte; ele se acerca, fundamenta os joelhos. O ar se vai. Ele abre a boca e apenas sente aquelas veias, como um vampiro que não precisa de dentes. Quase delicado, seu dedo esfrega a pele tensa, os poros de pé, o vermelho nas retinas; estica o outro braço e se afunda naquele corpo que era somente pulsação sob carne e pele arrasada, mal sustentada por ossos que iam ceder ao seu próprio comando.
            Ele ia, o puro pecador, a mão se antecipando ao fogo eterno. Puxa os lábios sobre os da presa rendida, aberta em cruz, com o sangue correndo tanto que diria querer explodir-se para se ter então ao mesmo tempo em toda parte do outro corpo, que a consumia por grama e mililitro.
E como ele a engolia através das peles e dos pelos e dos mesmos dedos, que queriam ir tão profundo quanto nunca lhes seria permitido.
Não havia nem dor, nem anjos, nem mesmo terra ou cheiro ou alguns últimos escrúpulos escondidos que se acendessem agora numa lembrança salvadora. Não havia um pingo de razão naquele corpo comandado pela doutrina dos dedos e das digitais que se condensavam naquele pescoço cada vez mais estreito, cada vez mais compacto, e por debaixo a respiração alta do sangue também cego, cada vez mais diluído.
Ele sabia e agora era governado por isso - por saber-se mais elevado quanto mais fundo a tinha, e quanto mais ela morria sem dúvidas, mais ele se sentia, sem um pingo de razão, mas com todo o corpo consciente e o inconsciente latejando: vivo.
Do momento em que ele abriu os olhos até voltar a sentar-se sobre as pernas, era como se continuasse cego. E o que mirava eram justamente aqueles primeiros olhos rasgados que jamais se fecharam debaixo de si. Com o coração leve antes que ela (a razão) lhe voltasse, ele estendeu mais uma vez sua mão para aquele corpo vazio e baixou-lhe as pálpebras com os mesmos dedos que a estrangularam até o orgasmo.

Sinestesia

            Suspira sobre a minha pele descoberta. Vêm percorrendo os lábios entreabertos, e à medida que se movem, abrem-se mais para que possa me abrir: assim que seus dentes me rasgam como a capa de um crème-brûlée e magicamente o sangue não jorra. Ele me toma sem fazer sujeira. De olhos fechados, tudo se retém, nada chega a escorrer. E ele prossegue inexorável em seu rumo, passando por derme, membranas, afastando as veias com a língua, sem rompê-las. Eu o sinto nos olhos fechados, vermelho e negro, mergulhando aonde nem eu em mim mesma já fui. Lambuza-se em meu peito aberto, navega entre a pulsação que ele mesmo inspira. Num golpe súbito, ele fecha os lábios e aspira, suga o que não sai do lugar. Tremo entre sua boca e meu pulmão, mas não é isso que ele quer. Ele quer a mais, então nem respira e afunda, estica a língua até que toque o meu inviolado coração. E ouço um gemido quase alheio, mas que vem mesmo dali, de dentro. Tenho seus cabelos presos entre meus dedos, ajudando a me engolir. Eu o ajudo a me matar de uma pequena morte, já que nenhum dos dois sucumbe, por mais que tente. Eu o ajudo no dilacerar que causa dor, porque a dor é seu prazer em mim. Portanto, a dor é nosso prazer.
            Com o mesmo jeito ele volta, e em sua mágica, me realoca. Sela-me a pele apenas avermelhada, sem mais sinais do que os que tinha antes. E vem lamber meu rosto salgado com aqueles mesmos lábios.

sábado, 26 de janeiro de 2013

As hipérboles


            Eu tenho esse amor, tenho como se o tivesse pagado a prestação. Há mais de 3 anos que insisto nele, como uma tatuagem ou uma permanente ou uma maquiagem definitiva. O fato é que lhe tenho e fico atribuindo as batidas do coração a ele, e vou pensando em tudo e relacionando a ele, e olhando pelo mesmo prisma arroxeado as flores, os postes, os degraus, as placas que contam o preço do pingado, os acidentes na Marginal, as unhas roídas nos pés, os copos d’água servindo à oração.
Pois é, é esse amor que eu tenho, que já se dá o luxo de recusar as aspas, mas ainda borbulha na boca quando é caso de dizer seu nome. É essa coisa chamada de docinho, mas que é na verdade acidez nas laterais da língua, batendo panela e acordando as glândulas salivares que só as crianças têm. E não apenas: caindo também amargo e arrepiante com toque de gelo azul e cristal grosso, mas transparente. Eu não entendo esse amor, que me decapita a razão, que drena a minha paixão pelas feridinhas do pescoço, que me percorre por fora e por dentro e que me dá o ar com a única condição de tê-lo sempre para ele. Acho que não é pra se entender, mesmo. Eu o tenho, afinal. E não se pode dizer que não faço uso dele, assim como ele me faz. Eu tenho esse amor como desculpa para o meu vício de dizer Não, tenho-lhe como escape para os momentos de passagem, tenho-o como personagem dos clipes de cada canção do rádio e dos fones. Eu o tenho como protagonista em meu próprio detrimento, eu o tenho como mártir e como eterno, como sustento, muito mais do que como fardo, pois esse é o amor de um refugiado por uma egoísta e nós, egoístas, fazemos qualquer coisa a partir do amor. Porque é isso, ele está em mim, então eu o tenho. E faço o que quiser, até pensar que é ele que me faz fazer o que não quero. Mas não, assim como ninguém aprende de ninguém, assim como não se aprende nada, mas apenas se assimila. Isso quando não se faz outro pensamento a partir do primeiro, ou se plagia uma ideologia cristã e se inventa a Inquisição.
            Acho que é isso. É isso mesmo. Já posso ir? Preciso jurar de novo?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A poesia está em tudo. Está hoje,
nos seus olhos caídos, em suas palavras inesperadas, em seus passos vacilantes.
Está no suspiro dos trens, lá adiante
e no vapor aplacado pela chuva que vem desse céu tão branco.
A poesia é nas suas mãos que amassam o rosto
Até nesse silêncio extremo, no seu tédio. Há poesia mesmo na sua facilidade de ser trágico e engraçado. E na pressa com que você transita entre os dois.
Pois a poesia é assim, triste, e inútil como se vivesse por aparelhos.
Não há necessidade de grandes invenções.
Esta paisagem ordinária, essas absurdas vias de contato, aquele diz-que-disque maroto, sim, creia, ela é lá.
A mesma,
no concreto e nas linhas retas,
na originalidade de cada nova imitação,
na falta de jeito com que você vive, sobrevive, fica mudo e depois embala, com talento,
qualquer multidão.
A poesia não está onde eu te vejo, mas quando lembro de você,
de forma expressa e infundada.
Castelo de areia, nuvem que vai, vaso de flores que cai, cidade bruta, enregelada, encardida.

Não digo que qualquer coisa te invoque em mim mas eu, sendo assim, é que te criaria se não houvesse você.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Masoquismo renitente


Parte I


            E ela continuou olhando para a foto de Roberto, quieta como uma bala no gatilho, em silencioso incêndio. Fitou aquela foto até que Roberto deixasse de ser Roberto, até seus olhos se tornarem borrões de luz escura e ele deixasse de ser um homem para ser uma boca que sorria, um tronco que envergava uma camisa azul-marinho, e mais um pouco até o retângulo ser apenas quadro para o jogo de cores que dançava para os seus olhos. E ela prosseguiu olhando até que as formas deixassem de ser representação da pessoa para voltarem a ser a ideia original. Ela olhou até Roberto se desprender daquela imagem e tocar a lembrança dele que ela carregava para todos os lados conforme o som surdo de seu coração batendo. Patética e inflamada, ela viu o encontro dos dois que não eram mais que cópias do seu amado – do seu ideal amado: assim que, sem perceber, trouxe-o a meio caminho dos lábios e, vencendo o resto ela mesma, beijou o retrato.

Parte II


Encontraram-se num dia quente demais. Ela andou o mundo inteiro para chegar até chegar ali, uma miragem trêmula, derretida, de cabelos pegajosos. Ele estendeu os braços para ela antes que fosse possível alcançá-lo, e ela apertou o passo e a mão ao redor da sombrinha ao ver as mãos abertas do outro, como um berço, uma promessa, qualquer coisa que lembrava descanso, morte e renascimento.
            Ao redor, as risadas e as músicas caíam como chuva no mormaço. Só aquele elástico invisível que envolvia os dois destoava. Era domingo. Maria parou debaixo da tenda do lado de fora da loja onde Roberto esperava de mãos estendidas.
            Sentindo o calor em ondas a partir de seu peito, ele esticou os dedos que ecoavam a pulsação, tudo muito quente, para roçar as pontas no rosto dela, mas seu suor se adiantou. A boca entreaberta, o semblante encharcado, a pele vermelha, os pingos de água morna... Roberto esfregou o polegar ao longo de sua mandíbula que, de molhada, estava fria. Ela deixou cair a sombrinha. Não havia vento para carregá-la.
            Maria fechou seus olhos de caramelo derretido e deu um suspiro profundo e quente, como tudo. Minúsculas gotas surgiram debaixo das pálpebras e, mesmo à penumbra, Roberto as viu brilhar.
            Ele se achegou e sua própria respiração pareceu mais fresca do que o ar em volta. Beijou os lábios salgados de Maria exausta como quem vem da guerra.
            Como estava tão abafado, foi bem-vindo virar água naquele momento.
            O desconforto, a dor, a angústia da espera dissolvida de repente, ainda fervia n’água como um sal de frutas para cair no fundo do estômago dolorido. Amarem-se era tão bom que doía. Os mesmos movimentos macios das peles em uníssono faziam correr calafrios em plena tarde fornalha – e eram calafrios que não pertenciam a outros, senão ao medo, aquele medo acre e cego, medo de criança que a gente nunca deixa pra trás. Reluzia ali no vazio da tarde de domingo um encontro imprevisível, uma queda de pressão e o batucar deslocado de um pavor sem nome. Em seu oásis, Roberto e Maria morriam felizes de estar morrendo.