Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Masoquismo renitente


Parte I


            E ela continuou olhando para a foto de Roberto, quieta como uma bala no gatilho, em silencioso incêndio. Fitou aquela foto até que Roberto deixasse de ser Roberto, até seus olhos se tornarem borrões de luz escura e ele deixasse de ser um homem para ser uma boca que sorria, um tronco que envergava uma camisa azul-marinho, e mais um pouco até o retângulo ser apenas quadro para o jogo de cores que dançava para os seus olhos. E ela prosseguiu olhando até que as formas deixassem de ser representação da pessoa para voltarem a ser a ideia original. Ela olhou até Roberto se desprender daquela imagem e tocar a lembrança dele que ela carregava para todos os lados conforme o som surdo de seu coração batendo. Patética e inflamada, ela viu o encontro dos dois que não eram mais que cópias do seu amado – do seu ideal amado: assim que, sem perceber, trouxe-o a meio caminho dos lábios e, vencendo o resto ela mesma, beijou o retrato.

Parte II


Encontraram-se num dia quente demais. Ela andou o mundo inteiro para chegar até chegar ali, uma miragem trêmula, derretida, de cabelos pegajosos. Ele estendeu os braços para ela antes que fosse possível alcançá-lo, e ela apertou o passo e a mão ao redor da sombrinha ao ver as mãos abertas do outro, como um berço, uma promessa, qualquer coisa que lembrava descanso, morte e renascimento.
            Ao redor, as risadas e as músicas caíam como chuva no mormaço. Só aquele elástico invisível que envolvia os dois destoava. Era domingo. Maria parou debaixo da tenda do lado de fora da loja onde Roberto esperava de mãos estendidas.
            Sentindo o calor em ondas a partir de seu peito, ele esticou os dedos que ecoavam a pulsação, tudo muito quente, para roçar as pontas no rosto dela, mas seu suor se adiantou. A boca entreaberta, o semblante encharcado, a pele vermelha, os pingos de água morna... Roberto esfregou o polegar ao longo de sua mandíbula que, de molhada, estava fria. Ela deixou cair a sombrinha. Não havia vento para carregá-la.
            Maria fechou seus olhos de caramelo derretido e deu um suspiro profundo e quente, como tudo. Minúsculas gotas surgiram debaixo das pálpebras e, mesmo à penumbra, Roberto as viu brilhar.
            Ele se achegou e sua própria respiração pareceu mais fresca do que o ar em volta. Beijou os lábios salgados de Maria exausta como quem vem da guerra.
            Como estava tão abafado, foi bem-vindo virar água naquele momento.
            O desconforto, a dor, a angústia da espera dissolvida de repente, ainda fervia n’água como um sal de frutas para cair no fundo do estômago dolorido. Amarem-se era tão bom que doía. Os mesmos movimentos macios das peles em uníssono faziam correr calafrios em plena tarde fornalha – e eram calafrios que não pertenciam a outros, senão ao medo, aquele medo acre e cego, medo de criança que a gente nunca deixa pra trás. Reluzia ali no vazio da tarde de domingo um encontro imprevisível, uma queda de pressão e o batucar deslocado de um pavor sem nome. Em seu oásis, Roberto e Maria morriam felizes de estar morrendo.

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