Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Diálogo nº 3


- Eu sempre soube o que quero da vida.
- Eu odeio generalizações.
- Mas algumas generalizações são válidas.
- Você é adepta do “sempre” ou do “quase”?
- E você é adepto do ódio aos dois?
- Você vai pensar que é impossível me agradar.
- “Impossível” também é generalização.
- Exatamente. Você, adepta disso, vai logo me generalizar.
- Sempre odiei preconceitos.
- Então você é uma contradição, porque odeia o que pratica.
- Não sei se posso contestar a visão que você tem de mim, pois isso é algo muito seu...
- Fique à vontade.
- ...Mas praticar algo que se odeia, ou com que não se concorda, é comum. Odeio ter que me equilibrar em fios todos os dias, mas não poderia deixar de fazê-lo.
- Aí há uma diferença de ódio à necessidade. O que eu disse foi que você odeia o que pratica, e não que pratica o que odeia.
- Não é a mesma coisa?
- Nem sempre (olha o quase). Quando você odeia o que pratica, como os preconceitos que traz, é porque vai além da sua capacidade negar-se a isso. Incorre no erro que lhe é inerente e por isso mesmo, talvez, é que o odeie.
- O que está dentro de mim não posso tirar.
- Já praticar o que se odeia requere uma ação antes mesmo do pensamento. Na maioria das vezes você pode pensar antes de agir. Quando você pode pensar, chegar a uma conclusão (se ama ou se odeia) e daí tomar uma decisão, a culpa é sua.
- O que escolho tocar é a mácula premeditada... Mas e quando as causas não me deixam saída?
- Entranhas conjunturais. Mas acabam sendo influência da sua estrutura.
- Isso é bíblico! “O bem que quero, este não faço. O mal que não quero persegue os meus passos”.
- E assim “o mundo jaz no maligno”.
- Mas, afinal... O que eu sempre quis da vida foi ser feliz.
- Tudo quer. Isto não é uma generalização. É a constatação de um flagrante.
- Mas é necessário quem alguém sofra em algum momento, para que outro esteja feliz.
- Momentos passam tão rápido...
- Existe algo que possa ser generalizado?
- Não existe equilíbrio. Por isso, não.
- O que existe?
- Nós, que pensamos e que somos, ao mesmo tempo, estruturas completas de nós mesmos e conjunturas na imensa máquina da vida.
- Do mundo?
- O mundo também passa, assim como nós. Mas dentro da gente, o pensamento pode voar a outros mundos. Vida e existir são mais.
- Existo como contradição, é isso?
- Acho que ninguém escapa de ser contradito pelo mundo.
- Eu quero ser feliz, mas mais: quero fazer coisas que sejam lembradas por outros que ajudei a ser felizes.
- Será que isso quer dizer que você quer o seu bem lembrado e o seu mal esquecido? No entanto, isso seria viver pela metade. Qualquer mal ajuda um bem em algum momento.
- E vice-versa?
- O mundo gira, não cai de um lado pra outro.
- Engraçado que estejamos inscritos num círculo, por natureza equilibrado, e que nunca alcancemos o equilíbrio.
- É um mal que serve ao bem. O objetivo é tão importante quanto o objeto sem cor, utópico. Mas concebê-lo, sonhar com ele já denuncia algo muito importante.
- O quê?
- A nossa contradição.

(Da série “Abolindo o Narrador” [2 pássaros sobre o fio do telefone])

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