Uma
coisa se partiu, e lembro disso tão bem como de nada mais: aniversários, casamentos e crianças aleatórias. Disso eu
me lembro tão limpidamente como uma lembrança tornada em pedra, e essa pedra
lavada por toda correnteza. Disso lembro como se tivesse
ouvido mesmo o estalo – como se tivesse havido aquele mesmo estalo. Do chumbo
partido pelo meio; desse peso caindo pelo estômago adentro até as pernas
frouxas.
Essa
agonia de alguma forma estarrecida, estrangulada, congelada pela brisa com o
grito formado na garganta, os olhos de Metrópolis, a boca se abrindo no grito
inconfessável. Congelou e partiu-se. Mas a hospedeira, que ainda é orgânica,
chorou umas lágrimas bem amargas, patéticas e impiedosas de quentes contra o
gelo de todo o resto, todo o resto. Todo o resto inconfessável do silêncio.
Lembro
bem, porque ainda reverbera no quieto do quarto, ainda finge que trabalha e
batuca. De um jeito tão sem jeito, eu me pego gozando dessa dor, a lambiscar o
sangue seco sobre a tragédia particular. Tão dilacerada é a minha face mais bonita,
a desclássica, a que fala e fala para a mesma boa e velha cabeça sem ouvidos
da inspiração. Cospe essa tinta como única forma de vida possível, o único poder
criador aqui. As voltas da cachorra ao redor do próprio rabo, a revolta
do Desejo que jamais se toca. O nome disto é agonia.
E
eu lembro que, muito adequadamente, chovia. E eu peguei a cadeira de praia e
fui tentar ferir a cinza com aquelas cores. Sentei debaixo da chuva e fiquei lá.
Todas
as contas vieram se cobrar, fazendo ficha após ficha cair. Aceitei a derrota
como elemento do cenário, como uma árvore no quintal que a prefeitura impediu
de derrubar. Preferi pensar que as coisas são assim justo comigo porque nada se
cria na felicidade. E eu sou uma criadora.
Portanto,
mais que de cinza, é preciso o luto. É preciso esse chumbo seco partido que jorra
tinta por causa do impossível. Posso brincar nessa tinta de noite, dar essa voz a qualquer ouvido leitor, e gerar algo tão completamente livre que, vindo da
minha própria morte, alimente outras vidas e salve-as.
Dessa
minha morte, que é a não-vivência de uma vidinha, surgem mais flores, como um
cemitério no verão. Esse coração morto alimenta o solo e faz crescer uma
oliveira cujas folhas acariciam a promessa do céu azul, e de cujos frutos vem óleo
para a cabeça dos reis. Eu prefiro pensar, enquanto a tempestade engole as
cores da minha cadeira, que de alguma forma meu coração acaricia a promessa. A
vida trocada da felicidade é estéril, além de devaneio do velho Platão. O meu
ser é ser tristonha, mas produzir algumas combinações de letras eternas. Pois,
ainda que o meu nome se dilua nesse rio, a minha vida foi por isso, pelo
imortal, pelo ideal que, este sim, este único vive para sempre.
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