Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Minhocas sobre o miocárdio


            Uma coisa se partiu, e lembro disso tão bem como de nada mais: aniversários, casamentos e crianças aleatórias. Disso eu me lembro tão limpidamente como uma lembrança tornada em pedra, e essa pedra lavada por toda correnteza. Disso lembro como se tivesse ouvido mesmo o estalo – como se tivesse havido aquele mesmo estalo. Do chumbo partido pelo meio; desse peso caindo pelo estômago adentro até as pernas frouxas.
            Essa agonia de alguma forma estarrecida, estrangulada, congelada pela brisa com o grito formado na garganta, os olhos de Metrópolis, a boca se abrindo no grito inconfessável. Congelou e partiu-se. Mas a hospedeira, que ainda é orgânica, chorou umas lágrimas bem amargas, patéticas e impiedosas de quentes contra o gelo de todo o resto, todo o resto. Todo o resto inconfessável do silêncio.
            Lembro bem, porque ainda reverbera no quieto do quarto, ainda finge que trabalha e batuca. De um jeito tão sem jeito, eu me pego gozando dessa dor, a lambiscar o sangue seco sobre a tragédia particular. Tão dilacerada é a minha face mais bonita, a desclássica, a que fala e fala para a mesma boa e velha cabeça sem ouvidos da inspiração. Cospe essa tinta como única forma de vida possível, o único poder criador aqui. As voltas da cachorra ao redor do próprio rabo, a revolta do Desejo que jamais se toca. O nome disto é agonia.
            E eu lembro que, muito adequadamente, chovia. E eu peguei a cadeira de praia e fui tentar ferir a cinza com aquelas cores. Sentei debaixo da chuva e fiquei lá.
            Todas as contas vieram se cobrar, fazendo ficha após ficha cair. Aceitei a derrota como elemento do cenário, como uma árvore no quintal que a prefeitura impediu de derrubar. Preferi pensar que as coisas são assim justo comigo porque nada se cria na felicidade. E eu sou uma criadora.
            Portanto, mais que de cinza, é preciso o luto. É preciso esse chumbo seco partido que jorra tinta por causa do impossível. Posso brincar nessa tinta de noite, dar essa voz a qualquer ouvido leitor, e gerar algo tão completamente livre que, vindo da minha própria morte, alimente outras vidas e salve-as.
            Dessa minha morte, que é a não-vivência de uma vidinha, surgem mais flores, como um cemitério no verão. Esse coração morto alimenta o solo e faz crescer uma oliveira cujas folhas acariciam a promessa do céu azul, e de cujos frutos vem óleo para a cabeça dos reis. Eu prefiro pensar, enquanto a tempestade engole as cores da minha cadeira, que de alguma forma meu coração acaricia a promessa. A vida trocada da felicidade é estéril, além de devaneio do velho Platão. O meu ser é ser tristonha, mas produzir algumas combinações de letras eternas. Pois, ainda que o meu nome se dilua nesse rio, a minha vida foi por isso, pelo imortal, pelo ideal que, este sim, este único vive para sempre.

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