Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A crônica do contêiner vermelho

 
E no meio da areia e do lixo, ele se erguia como uma afronta a toda a paisagem: um sol caído, escandalosamente vermelho.
Os cachorros não chegam mais perto. As crianças brincam de costas. E é só o inverno. Imagine quando o verão vier, impiedoso. Instigando o suor. Aí vai ser o deserto literal.
Pior é que ninguém sabe o que tem dentro dele. Ou pelo menos prefere dizer que não sabe. Que na verdade o contêiner vermelho, colossal, brilhante e novo como nenhuma vida ali é, está cheio exatamente  de tudo o que há ao redor. De lixo. De nada. De pior-que-nada. Coisas que já foram úteis, que viveram e hoje vegetam. Coisas. Todas despejadas ali de qualquer jeito, encerradas sem ar, na sombra. Um monte de morte junta. Sem nem saber do intenso do outro lado da parede irritando a paisagem: sendo um escândalo encarnado.
Todos os dias eu o encaro jazendo ali, orgulhosamente vivo. E sigo no meu próprio deserto particular. Mastigo palavras, conto sorrisos. E no dia seguinte lá está, com sua tinta tinindo de nova, cortando o ar e o éter. Faz a gente pensar que até o que é feito para ser velho tem que começar novo. E os olhos dóem ao vê-lo. Seco. Irascível. Com seu interior ignoto. No minuto que leva para perdê-lo de vista, não há movimento ao redor. Nada que denuncie seu conteúdo: nada. Ele só existe, e nada mais. Estranhamente comum.
O seu ser-e-nada-mais obriga a pular linhas, pois o raciocínio não é mais válido. Obriga a: parar e pensar. Sinto até certa gratidão. Pensar sobre nada é necessário. Mas não o nada qualquer. Esse mundo está intoxicado de nada. O nada do contêiner vermelho, em sua ambiguidade cintilante, é um nada construtivo. Quebra os limites do absurdo. Ele é nada. O nada é alguma coisa.
É, é sim. Se não for, que será todo o resto? O resto dos presentes que se tornam futuros e também obsoletos e descartáveis. O vermelho insistente, dolorido, enraivecido é a prova cabal de que algo – talvez eu, andando pela rua – faz algum sentido neste algum mundo. Por ser & não ser, nós também somos.  E não somos, claro.
Então posso prosseguir. Acolho a afronta com a boca envergada, cúmplice. Entendo o escândalo com paciência. E vou adiante, um pé à frente do outro, me sentindo um pouco melhor.

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