Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Maçã


Era uma vez uma Feiticeira que morava em um reino distante e desconjuntado. Sua magia havia transformado aquele lugar em uma cidade eterna, onde tudo o que chegava sem rumo se encontrava. Seus conterrâneos eram o tipo mais simples do povo, que vivia sem senhores e sem rancor, suando com prazer sobre a terra boa e fértil. A Feiticeira e seu castelo assomavam sobre a única colina em meio ao vale, refletindo os tons sombrios e familiares de uma tarde úmida após a manhã de sol e cinco horas de tempestade.

Os aldeões dos burgos vizinhos contavam que a origem do Reino da Tarde Eterna datava de pelo menos sete séculos e a Feiticeira uma vez foi princesa, vitimada pela maldição do mundo de outrora. Por causa disso, quem desejava visitar o lugar o achava inalcançável: existiam histórias sobre conquistadores e expedições que minguaram durante anos no caminho até a colina, embora ela permanecesse do mesmo tamanho no horizonte. O encanto guardara o espaço do reino e esticara o tempo de maneira misteriosa, conforme a vontade de sua soberana.

Os forasteiros que lá chegavam por acaso, voltavam com relatos sobre jardins suspensos, florestas infinitas, gente humilde de bochechas rosadas e música de clarins que enchia as ruas aonde quer que se andasse; e o mais impressionante, a Feiticeira permanecia jovem como no dia em que o Sol brilhou e a tempestade caiu. Diziam que ela possuía o rosto mais estranho que não se podia imaginar: para alguns era decepcionante e comum, mas para outros constituía a perfeita imperfeição, união de traços inesquecíveis.

Um dia chegou o Cavaleiro Perdido, sobre sua montaria cansada, envergando ainda uma armadura com placas faltando. Depois de ser curado pelo dono da Hospedaria de Apenas um Quarto – pois todos os moradores do Reino da Tarde Eterna também eram dotados de grandes habilidades mágicas –, ele pediu para ser recebido pela Feiticeira e esperou pacientemente durante vinte e nove dias sem noite.

Quando finalmente entrou no salão de pedra do castelo ao alto do morro, ele suspirou pesadamente, pois se viu diante da mulher mais bela de sua vida. A certeza de que encontrara seu grilhão após tantas lutas por liberdade – aquela certeza se estabeleceu na boca de seu estômago, de onde não sairia jamais.

Por sua vez, a Feiticeira ergueu os olhos descansados de quem deixara as relações com reis e aristocratas para trás havia muito. Encarou o Cavaleiro Perdido com curiosidade e segurança: era jovem, apesar dos cabelos cor de cinza e das marcas sobre a pele dura de quem enfrentara muitas lidas. E ele ganhou seu respeito, pois carregava a beleza melancólica dos sobreviventes.

Ao longo de uma medida de tempo em que não houve necessidades humanas, eles se sentaram à mesa de mogno do salão principal e conversaram. Em uma única troca, partilharam todas as histórias de que se lembravam. A Feiticeira descobriu que ainda existiam contendas por pedaços de terra que permaneceriam muito além das pessoas que por ela se matavam; e o Cavaleiro constatou que a magia que dobrava o tempo nascia da mulher, que a cada sorriso lhe causava um prazer intenso e doloroso.

Quando ela lhe disse que era hora de partir, ele pediu que lhe permitisse ficar, pois estava apaixonado por ela.

- Não – respondeu a Feiticeira. – É impossível que um estrangeiro viva aqui. Somente os filhos desta terra podem para cá tornar. Forasteiros são permitidos quando seus pés erram o caminho, pois este é o lugar onde o sem rumo se encontra. Contudo, agora deves partir.

- A senhora que é soberana deste ar e desta terra – suplicou ele. – Certamente poderia conceder uma exceção. Rogo-te que devotarei meus dias à senhora e, se a vida eterna aqui me alcançar, ela será tua para bem dispor como queiras. Não posso retornar àquele mundo, porque mesmo que expulses meu corpo, todos os meus pensamentos errariam de volta para ti.

A Feiticeira sorria quando tornou a falar.

- Se quiseres – ela disse. – Podes deixar uma parte de si para trás, como um presente.

Ela apontou para as paredes do salão, nas quais o olhar do Cavaleiro não pousara nem uma vez até então. Lá ele viu incontáveis prateleiras sobre as quais havia caixas, redomas, urnas, estojos e ganchos de onde todo tipo de pedaço pendia.

- Há quem deixe desejos de paz, ameaças vazias, preces... Assim como mechas de cabelo, unhas, dentes, braços fortes que juraram lealdade e sangue... Por algum motivo, os estrangeiros acreditam que o valor do sangue é altíssimo. No entanto, veja: são todos iguais na textura e na cor. De nada serve fora do coração.

- Já tens o meu amor – respondeu o Cavaleiro. – Podes ter também a fonte dele, do mesmo modo.

E assim, na medida que trouxe a tarde seguinte, a Feiticeira encontrou em seu salão uma nova caixa onde se achava o mais lindo e vermelho coração humano que ela já vira. Segurou-o nas mãos como uma grande maçã coberta por caramelo brilhante e sua boca se encheu de água conforme se aproximou da superfície perfeitamente lisa. Entretanto, seus olhos notaram uma carta junto à caixa, que dizia:

“À Feiticeira do Reino da Tarde Eterna,

Eis o coração que te entrego fisicamente, apesar de que tu o obtiveras no momento em que teus olhos de fogo luziram sobre mim. Em tuas mãos o tens, envernizado com o amor que acordaste em minha alma. Por causa disso, se alguma vez teus lábios benditos encontrarem este coração, tocando o amor desgraçado que o vitimou, deverás sucumbir ao malfadado vazio da morte, que acolhe todos os sentimentos não correspondidos.

Esta foi a única maneira de extrair o que querias de mim. Agora estou contigo, conquanto resistas.”

Assim foi que, durante semanas e meses, a Feiticeira procurou não prestar atenção à caixa onde mantivera o lindo coração, disposto sobre uma prateleira qualquer. Não obstante, ele o chamava com a canção do amor dessangrado, com a ternura do que não deve existir, mas insiste.

Finalmente então ela colocou seu reino em ordem, fez os preparativos e decidiu que deveria morrer.

Havia algo de tão correto no coração do Cavaleiro Perdido, que ela se convenceu de que o proibido também lhe pertencia, assim como o final de sua história. Parecia a melhor forma de encontrar o fim, através do supremo prazer daquela carne perfeita.

No instante em que a Feiticeira abriu seus lábios e recebeu entre eles o doce coração – quando seus dentes afundaram nele e sua boca se encheu do sangue quente – no mesmo instante já nada havia. O coração era novamente o Cavaleiro, íntegro à sua frente.

- Aqui me tens, soberana Feiticeira. Eu também usei um feitiço para quebrar tuas regras. O amor com que embalsamei meu coração jamais se separou de mim. Pelo contrário, escondi-me dentro dele à espera da tua libertação. Quando cedestes, quebraste tu mesma à tua lei, correspondendo ao desejo de um estrangeiro e tornando-lhe parte de teu próprio coração. E, mesmo se resistisses, aqui ficaria ao alcance de teus olhos, para o resto da existência, como é minha vontade. Toma-me agora como queiras: devora-me, mastiga-me, retenhas-me ou lance fora os retalhos que não te servem. Se puder pedir-lhe mais ainda, que beije-me novamente e deixe-me viver e morrer entre teus lábios para sempre.

A Feiticeira tomou nas mãos o rosto áspero do Cavaleiro e riu. Tanto havia fugido, para escapar ao mal do mundo, e o mal da guerra trouxe o amor à sua porta. Beijou afinal o Cavaleiro e a magia os uniu definitivamente: ela outra vez princesa, ele a partir de então feiticeiro. O tempo, o espaço, o amor e a mágica reinaram durante a Tarde Eterna e eles nunca mais foram infelizes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário