Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Óleo sobre tela

 

            A tela em branco me encarava, cobrando uma ideia. No entanto, eu estava diante dela para trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas uma reminiscência. Uma reticência. E, ainda por cima, velha. Velha? Não. Antiga.

            A antiga dúvida começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a lembrança do dia.

O grande ornamento brilhava no centro do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real ao mesmo tempo em que era impossível. Rodeada por varais de bandeirinhas coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se espalhava no meio das escadas rolantes com grandes troncos de isopor pintados de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e, sem mais nem menos, entre todas aquelas cores e sons de quadrilha, uma figura do outro lado da multidão ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem três passos, reconheci a garotinha na ponta dos pés, rindo para a fogueira de brinquedo, e sua mãe que a segurava pelos ombros do casaco, também sorridente. Confirmações de que eu não tinha confundido o homem ao lado delas.

Meus amigos faziam observações animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava insistentemente o homem do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como ele chamava aquilo mesmo? Feitiço? Não, encanto. Ele dizia que era o meu encantamento. E funcionou. Ele ergueu os olhos direto para mim.

Meu rosto se moveu por conta própria, na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus lábios tremeram. Tantos anos entre nós. Não. Não seja boba, mulher. Nada mais havia entre nós. Esta era a dúvida: o que vinha depois do nada? A distância, o silêncio, o sumiço, as redes sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, a enteada, a esposa – será que ela era mesmo parecida comigo ou eu é que lembrava o amor da vida dele que ainda não tinha conhecido?

Ele sorriu para mim além das chamas falsas, os olhos límpidos, a boca entreaberta exatamente como alguém que revê uma velha amiga. Velha? Antiga. Dá na mesma.

Meus amigos começaram a se virar na direção das escadas. A mão dele se ergueu numa despedida. Eu respondi com um aceno de cabeça. Meu namorado falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei para trás, ele já não olhava mais. Estava se abaixando para pegar a menininha no colo.

Dou um passo para trás e me sento no banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja, vermelho, preto ou púrpura. Talvez tenha ficado dramático demais. Bem, já está feito. A resposta para a antiga dúvida estava ali. Eu já devia ter aprendido, porém, que o lugar de uma reminiscência jamais é ocupado por uma solução. Assim que repassei mais uma vez a memória, desta vez em velocidade 1.5, a questão novinha em folha me encarou de frente:

Isto que sinto agora é leveza ou vazio?

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