A tela em
branco me encarava, cobrando uma ideia. No entanto, eu estava diante dela para
trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas uma reminiscência. Uma
reticência. E, ainda por cima, velha. Velha? Não. Antiga.
A antiga
dúvida começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a
lembrança do dia.
O grande ornamento brilhava no centro
do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real
ao mesmo tempo em que era impossível. Rodeada por varais de bandeirinhas
coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se
espalhava no meio das escadas rolantes com grandes troncos de isopor pintados
de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo
andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e, sem mais nem menos, entre
todas aquelas cores e sons de quadrilha, uma figura do outro lado da multidão
ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem
três passos, reconheci a garotinha na ponta dos pés, rindo para a fogueira de
brinquedo, e sua mãe que a segurava pelos ombros do casaco, também sorridente. Confirmações
de que eu não tinha confundido o homem ao lado delas.
Meus amigos faziam observações
animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava
insistentemente o homem do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como
ele chamava aquilo mesmo? Feitiço? Não, encanto. Ele dizia que era o meu
encantamento. E funcionou. Ele ergueu os olhos direto para mim.
Meu rosto se moveu por conta própria,
na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus lábios tremeram. Tantos anos
entre nós. Não. Não seja boba, mulher. Nada mais havia entre nós. Esta era a
dúvida: o que vinha depois do nada? A distância, o silêncio, o sumiço, as redes
sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, a enteada, a
esposa – será que ela era mesmo parecida comigo ou eu é que lembrava o amor da
vida dele que ainda não tinha conhecido?
Ele sorriu para mim além das chamas
falsas, os olhos límpidos, a boca entreaberta exatamente como alguém que revê
uma velha amiga. Velha? Antiga. Dá na mesma.
Meus amigos começaram a se virar na
direção das escadas. A mão dele se ergueu numa despedida. Eu respondi com um
aceno de cabeça. Meu namorado falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei
para trás, ele já não olhava mais. Estava se abaixando para pegar a menininha
no colo.
Dou um passo para trás e me sento no
banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e
avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja,
vermelho, preto ou púrpura. Talvez tenha ficado dramático demais. Bem, já está
feito. A resposta para a antiga dúvida estava ali. Eu já devia ter aprendido,
porém, que o lugar de uma reminiscência jamais é ocupado por uma solução. Assim
que repassei mais uma vez a memória, desta vez em velocidade 1.5, a questão
novinha em folha me encarou de frente:
Isto que sinto agora é leveza ou
vazio?
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