Crônicas de uma Exploradora do Invisível.

sábado, 9 de julho de 2022

Aquarela

 

            A tela em branco me encarava, cobrando uma ideia. Entretanto, eu estava diante dela para trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas um antigo gancho. Um "e se?".

            A velha cisma começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a lembrança do dia.

O grande ornamento brilhava no meio do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real ao mesmo tempo em que era impossível. Cercada por varais de bandeirinhas coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se espalhava no grande vão entre as escadas rolantes com troncos de isopor pintados de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e então, sem mais nem menos, uma figura da multidão ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem três passos, reconheci o garotinho sentado nos ombros do pai, rindo para a fogueira de brinquedo. Confirmações de que eu não tinha confundido a mulher ao lado deles.

Meus amigos faziam observações animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava insistentemente a moça do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como era que ela chamava aquilo? Encantamento? Não, feitiço. Ela dizia que era a minha bruxaria. E funcionou. Ela ergueu os olhos direto para mim.

Meu rosto se moveu por conta própria, na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus dentes rangeram. Tantos anos entre nós. Não. Não seja bobo, homem. Nada mais havia entre nós. Esta era a cisma: o que vinha depois do nada? O distanciamento, o silêncio, o sumiço, as redes sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, o enteado, o marido – será que ele era mesmo diferente de mim em cada detalhe como se fosse de propósito, ou eu não deveria me dar tanta importância?

Ela sorriu para mim além das chamas falsas, os olhos ternos, as sobrancelhas erguidas exatamente como alguém que revê um velho amigo. E nada mais.

Meus amigos começaram a ir para as escadas. A mão dela se ergueu numa despedida. Eu respondi com um aceno de cabeça. Minha namorada falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei para trás, ela já não olhava mais. Estava na ponta dos pés para ouvir o menininho.

Recuo um passo e me sento no banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja, vermelho, roxo ou amarelo. Talvez tenha ficado pueril demais. Bem, já está feito. A resposta para a antiga cisma estava ali. Eu já devia ter aprendido, porém, que um gancho não é solucionado tão facilmente. Assim que repassei mais uma vez a lembrança, desta vez em velocidade 1.5, a questão novinha em folha me encarou de frente:

Isto que sinto agora é leveza ou vazio?

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Óleo sobre tela

 

            A tela em branco me encarava, cobrando uma ideia. No entanto, eu estava diante dela para trapacear. Não seria uma nova inspiração a preenchê-la, mas uma reminiscência. Uma reticência. E, ainda por cima, velha. Velha? Não. Antiga.

            A antiga dúvida começou a rodar conforme eu mexia a mistura das tintas, junto com a lembrança do dia.

O grande ornamento brilhava no centro do shopping, escandaloso e vibrante. De longe, a fogueira parecia real ao mesmo tempo em que era impossível. Rodeada por varais de bandeirinhas coloridas e funcionários com camisas de flanela xadrez, ela se espalhava no meio das escadas rolantes com grandes troncos de isopor pintados de marrom na base e as chamas mais altas de papel crepom sopradas até o segundo andar. Meus amigos e eu nos dirigimos para lá e, sem mais nem menos, entre todas aquelas cores e sons de quadrilha, uma figura do outro lado da multidão ganhou o foco. Coloquei a lembrança em câmera lenta. No instante em que cabem três passos, reconheci a garotinha na ponta dos pés, rindo para a fogueira de brinquedo, e sua mãe que a segurava pelos ombros do casaco, também sorridente. Confirmações de que eu não tinha confundido o homem ao lado delas.

Meus amigos faziam observações animadas sobre a festa junina indoors. Enquanto isso, eu mirava insistentemente o homem do outro lado da fogueira, como tantas vezes antes. Como ele chamava aquilo mesmo? Feitiço? Não, encanto. Ele dizia que era o meu encantamento. E funcionou. Ele ergueu os olhos direto para mim.

Meu rosto se moveu por conta própria, na memória e agora. O sorriso se formou, mas meus lábios tremeram. Tantos anos entre nós. Não. Não seja boba, mulher. Nada mais havia entre nós. Esta era a dúvida: o que vinha depois do nada? A distância, o silêncio, o sumiço, as redes sociais dos outros por quem acompanhei sua vida indo em frente, a enteada, a esposa – será que ela era mesmo parecida comigo ou eu é que lembrava o amor da vida dele que ainda não tinha conhecido?

Ele sorriu para mim além das chamas falsas, os olhos límpidos, a boca entreaberta exatamente como alguém que revê uma velha amiga. Velha? Antiga. Dá na mesma.

Meus amigos começaram a se virar na direção das escadas. A mão dele se ergueu numa despedida. Eu respondi com um aceno de cabeça. Meu namorado falou alguma coisa e eu disse que sim. Quando olhei para trás, ele já não olhava mais. Estava se abaixando para pegar a menininha no colo.

Dou um passo para trás e me sento no banquinho do estúdio. Respiro profundamente o cheiro reconfortante de tinta e avalio o quadro. Não restou nenhum espaço sem ser consumido por um traço laranja, vermelho, preto ou púrpura. Talvez tenha ficado dramático demais. Bem, já está feito. A resposta para a antiga dúvida estava ali. Eu já devia ter aprendido, porém, que o lugar de uma reminiscência jamais é ocupado por uma solução. Assim que repassei mais uma vez a memória, desta vez em velocidade 1.5, a questão novinha em folha me encarou de frente:

Isto que sinto agora é leveza ou vazio?

Maçã


Era uma vez uma Feiticeira que morava em um reino distante e desconjuntado. Sua magia havia transformado aquele lugar em uma cidade eterna, onde tudo o que chegava sem rumo se encontrava. Seus conterrâneos eram o tipo mais simples do povo, que vivia sem senhores e sem rancor, suando com prazer sobre a terra boa e fértil. A Feiticeira e seu castelo assomavam sobre a única colina em meio ao vale, refletindo os tons sombrios e familiares de uma tarde úmida após a manhã de sol e cinco horas de tempestade.

Os aldeões dos burgos vizinhos contavam que a origem do Reino da Tarde Eterna datava de pelo menos sete séculos e a Feiticeira uma vez foi princesa, vitimada pela maldição do mundo de outrora. Por causa disso, quem desejava visitar o lugar o achava inalcançável: existiam histórias sobre conquistadores e expedições que minguaram durante anos no caminho até a colina, embora ela permanecesse do mesmo tamanho no horizonte. O encanto guardara o espaço do reino e esticara o tempo de maneira misteriosa, conforme a vontade de sua soberana.

Os forasteiros que lá chegavam por acaso, voltavam com relatos sobre jardins suspensos, florestas infinitas, gente humilde de bochechas rosadas e música de clarins que enchia as ruas aonde quer que se andasse; e o mais impressionante, a Feiticeira permanecia jovem como no dia em que o Sol brilhou e a tempestade caiu. Diziam que ela possuía o rosto mais estranho que não se podia imaginar: para alguns era decepcionante e comum, mas para outros constituía a perfeita imperfeição, união de traços inesquecíveis.

Um dia chegou o Cavaleiro Perdido, sobre sua montaria cansada, envergando ainda uma armadura com placas faltando. Depois de ser curado pelo dono da Hospedaria de Apenas um Quarto – pois todos os moradores do Reino da Tarde Eterna também eram dotados de grandes habilidades mágicas –, ele pediu para ser recebido pela Feiticeira e esperou pacientemente durante vinte e nove dias sem noite.

Quando finalmente entrou no salão de pedra do castelo ao alto do morro, ele suspirou pesadamente, pois se viu diante da mulher mais bela de sua vida. A certeza de que encontrara seu grilhão após tantas lutas por liberdade – aquela certeza se estabeleceu na boca de seu estômago, de onde não sairia jamais.

Por sua vez, a Feiticeira ergueu os olhos descansados de quem deixara as relações com reis e aristocratas para trás havia muito. Encarou o Cavaleiro Perdido com curiosidade e segurança: era jovem, apesar dos cabelos cor de cinza e das marcas sobre a pele dura de quem enfrentara muitas lidas. E ele ganhou seu respeito, pois carregava a beleza melancólica dos sobreviventes.

Ao longo de uma medida de tempo em que não houve necessidades humanas, eles se sentaram à mesa de mogno do salão principal e conversaram. Em uma única troca, partilharam todas as histórias de que se lembravam. A Feiticeira descobriu que ainda existiam contendas por pedaços de terra que permaneceriam muito além das pessoas que por ela se matavam; e o Cavaleiro constatou que a magia que dobrava o tempo nascia da mulher, que a cada sorriso lhe causava um prazer intenso e doloroso.

Quando ela lhe disse que era hora de partir, ele pediu que lhe permitisse ficar, pois estava apaixonado por ela.

- Não – respondeu a Feiticeira. – É impossível que um estrangeiro viva aqui. Somente os filhos desta terra podem para cá tornar. Forasteiros são permitidos quando seus pés erram o caminho, pois este é o lugar onde o sem rumo se encontra. Contudo, agora deves partir.

- A senhora que é soberana deste ar e desta terra – suplicou ele. – Certamente poderia conceder uma exceção. Rogo-te que devotarei meus dias à senhora e, se a vida eterna aqui me alcançar, ela será tua para bem dispor como queiras. Não posso retornar àquele mundo, porque mesmo que expulses meu corpo, todos os meus pensamentos errariam de volta para ti.

A Feiticeira sorria quando tornou a falar.

- Se quiseres – ela disse. – Podes deixar uma parte de si para trás, como um presente.

Ela apontou para as paredes do salão, nas quais o olhar do Cavaleiro não pousara nem uma vez até então. Lá ele viu incontáveis prateleiras sobre as quais havia caixas, redomas, urnas, estojos e ganchos de onde todo tipo de pedaço pendia.

- Há quem deixe desejos de paz, ameaças vazias, preces... Assim como mechas de cabelo, unhas, dentes, braços fortes que juraram lealdade e sangue... Por algum motivo, os estrangeiros acreditam que o valor do sangue é altíssimo. No entanto, veja: são todos iguais na textura e na cor. De nada serve fora do coração.

- Já tens o meu amor – respondeu o Cavaleiro. – Podes ter também a fonte dele, do mesmo modo.

E assim, na medida que trouxe a tarde seguinte, a Feiticeira encontrou em seu salão uma nova caixa onde se achava o mais lindo e vermelho coração humano que ela já vira. Segurou-o nas mãos como uma grande maçã coberta por caramelo brilhante e sua boca se encheu de água conforme se aproximou da superfície perfeitamente lisa. Entretanto, seus olhos notaram uma carta junto à caixa, que dizia:

“À Feiticeira do Reino da Tarde Eterna,

Eis o coração que te entrego fisicamente, apesar de que tu o obtiveras no momento em que teus olhos de fogo luziram sobre mim. Em tuas mãos o tens, envernizado com o amor que acordaste em minha alma. Por causa disso, se alguma vez teus lábios benditos encontrarem este coração, tocando o amor desgraçado que o vitimou, deverás sucumbir ao malfadado vazio da morte, que acolhe todos os sentimentos não correspondidos.

Esta foi a única maneira de extrair o que querias de mim. Agora estou contigo, conquanto resistas.”

Assim foi que, durante semanas e meses, a Feiticeira procurou não prestar atenção à caixa onde mantivera o lindo coração, disposto sobre uma prateleira qualquer. Não obstante, ele o chamava com a canção do amor dessangrado, com a ternura do que não deve existir, mas insiste.

Finalmente então ela colocou seu reino em ordem, fez os preparativos e decidiu que deveria morrer.

Havia algo de tão correto no coração do Cavaleiro Perdido, que ela se convenceu de que o proibido também lhe pertencia, assim como o final de sua história. Parecia a melhor forma de encontrar o fim, através do supremo prazer daquela carne perfeita.

No instante em que a Feiticeira abriu seus lábios e recebeu entre eles o doce coração – quando seus dentes afundaram nele e sua boca se encheu do sangue quente – no mesmo instante já nada havia. O coração era novamente o Cavaleiro, íntegro à sua frente.

- Aqui me tens, soberana Feiticeira. Eu também usei um feitiço para quebrar tuas regras. O amor com que embalsamei meu coração jamais se separou de mim. Pelo contrário, escondi-me dentro dele à espera da tua libertação. Quando cedestes, quebraste tu mesma à tua lei, correspondendo ao desejo de um estrangeiro e tornando-lhe parte de teu próprio coração. E, mesmo se resistisses, aqui ficaria ao alcance de teus olhos, para o resto da existência, como é minha vontade. Toma-me agora como queiras: devora-me, mastiga-me, retenhas-me ou lance fora os retalhos que não te servem. Se puder pedir-lhe mais ainda, que beije-me novamente e deixe-me viver e morrer entre teus lábios para sempre.

A Feiticeira tomou nas mãos o rosto áspero do Cavaleiro e riu. Tanto havia fugido, para escapar ao mal do mundo, e o mal da guerra trouxe o amor à sua porta. Beijou afinal o Cavaleiro e a magia os uniu definitivamente: ela outra vez princesa, ele a partir de então feiticeiro. O tempo, o espaço, o amor e a mágica reinaram durante a Tarde Eterna e eles nunca mais foram infelizes.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Luto

Há vezes em que a nossa expectativa supera em muitos quilômetros a realidade. Mera realidade, fruto de acasos e fortuna. Eu, que sempre contei com a presença de Juliano na maioria das cenas de minha vida, achava incrivelmente absurdo que de repente restasse do meu amigo apenas a ausência, pedaço vazio de ar, vivo apenas dentro de minha cabeça.

Juliano vivia plena e fortemente dentro de mim. Sua lembrança se movia como um mestre de cena dirigindo minhas emoções: com um braço, erguia meus olhos pro céu; com um aceno, fazia-me chorar diante da xícara de café. Com esforço, após algumas horas bem quieto, enunciava claramente o meu nome em sua voz que reverberava em meus ouvidos - sim, juro, reverberava como se de fato soara junto a mim e não de memória - e assim podia descansar o resto da noite, havendo-se vivificado em minha tola reação.

Eu era a testemunha que restara de sua existência.

Diversas vezes, nos últimos meses, desenvolvi uma nova necessidade de retirar-me da presença dos outros e sozinha ficar, cismada, a contemplar novamente aquele absurdo. Somente após o desaparecimento de Juliano eu aprendi o significado desta palavra torpe. "Absurdo", escapava-me às vezes o sussurro que não se continha no oco de minha garganta e rolava-se dos lábios. "Absurdo", repetia outra vez tentando agarrar-me ao patético som de minha voz sozinha no banheiro. Um dia aqui e outro não mais. Um dia a menos, é tudo o que os dias são. Este é o fim. Este é o gosto do não-ser.

Eu me via refletida no espelho como um caco insistente após a ronda da vassoura. Sobrevivia, mas não vencia aquela guerra de forma alguma.

Vivi, sussurrava ele quando eu menos desejava ouvi-lo. E era apenas o que a lembrança me repetia, sem imaginação alguma. Vivi, chamava ele do além em meu cérebro. Vivi, gritou uma vez durante meu sono.

Doze meses se empilharam à minha frente antes que eu me desse conta de que a morte de Juliano era uma criança enrolada em minha nuca. Pesada, torta, carente por atenção. Faminta. De olhos fundos e presentes.

Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi. Vivi.

Eu não sei o que eles esperam de mim. Deveria segui-lo até aquele mesmo patamar e tentar jogar a criança-saudade no mesmo chão onde o meu amigo se espatifara?

Tudo o que eu queria de você era você, Juliano.

Mas você só conseguia se enxergar em tudo à volta. Não havia Vivi. Haviam olhos que te olhavam e ouvidos que te ouviam. Nada mais. Você nunca quis nada mais. Não se deu conta que o único jeito de escapar de você era encontrar os outros. Mas os outros não valiam nada perto de você, Juliano. E quando você se reconheceu como nada também, o mundo acabou.

O dia em que esperei por você no restaurante, como em todas as outras semanas, numa quinta feira, às 17h30, para conversarmos sobre nossas vidas. Seus livros, minhas músicas, as esculturas de Beth e as contas de José Luiz. Confirmou no dia anterior. Nunca apareceu. Em minha cabeça eu vi minha própria ironia tomar forma para quando você chegasse. Vinte e cinco anos e resolveu inventar um fuso horário agora? Você iria sorrir por meio segundo, pedir desculpas e partir pro assunto do dia. Eu o vi antes de chegar. E eu o vi antes de jamais chegar. A morte é acostumar-se com o fato de que nunca mais haverá à frente aquela pessoa em todos os detalhes tolos que formam alguém. Uns cabelos fora do lugar, uma textura do lóbulo da orelha, o nariz exatamente daquele tamanho e que aumentava sempre quando ria. Você e você, como era e como era quando eu o olhava. Este é o que ainda está aqui.

Juliano, leva esta criança-saudade embora e deixa-me dormir em silêncio. Sei que peço a mim através do espelho do banheiro, onde ainda outra vez refugiei-me de te esquecer. Viveste. É certo. Mataste-te. É certo. Vives ainda em mim enquanto eu viver. Desculpa-me. Sei que era o teu desejo parar de existir. Sei agora. Respeito-te. Queda-te de mim. Deixo-te ir. Vence esta batalha.

Vivo ainda na guerra. Abro a porta e saio. Outros vinte e cinco anos me esperam. Deixo-te ao nada que é teu.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Capítulo VI - Podre


Ela se deitou na antiga cama, cheirando os lençóis limpos trocados pela mãe na noite anterior. A janela estava aberta para arejar e por isso o quarto estava dourado. Parecia uma ironia contra seu estado de espírito, mas ali sempre fora assim, disso tinha certeza. A pequena cidade das contradições. A primeira havia sido a diferença entre ela e a irmã.
Aos quinze anos, Luísa estava apaixonada. Ela fazia a irmã de confessionário, contando cada detalhe do que sentia e do que fantasiava. A Caçula ouvia, animada, a irmã mais velha que era sua heroína e modelo. Quando veio a decepção de Luísa, ela repetiu cada uma de suas lágrimas.
O homem era duas décadas mais velho e engordara cada uma das ilusões da menina até comê-la. Então, disse-lhe exatamente isso: "eu já te comi, agora só preciso palitar os dentes."
A Caçula sentiu-se envelhecer um ano a cada dia que passava vendo a irmã chorar, suspirar, xingar, se debater, cortar os braços e pedir para morrer. Na sétima semana, Luísa pegou o ônibus para a fazenda dos avós, roubou uma cartela de comprimidos do armário do banheiro e foi encontrada rígida caída contra o vaso sanitário, horas depois.
A Caçula nunca soube se ela tinha realmente a intenção de se matar ou se queria apenas voltar a dormir. Mas se lembrava muito bem da sensação de quando viu seus pais receberem a notícia, depois de horas esperando pelo pior, ainda magoados por suas palavras e gestos toda vez que tentavam descobrir o que estava acontecendo. E eles tentaram muito. Luísa só confiava em sua Caçula e deixou claro que, para continuar confiando, ela tinha que guardar seu segredo. A criança lhe foi fiel. E agora estava velando seu corpo na Câmara Mortuária da cidade.
A culpa se apoderou da menina com a força de um mau espírito. Ela chorou copiosamente durante sete dias, em que envelheceu outros sete anos. No final, aprendeu sua primeira lição. A ideia de um assassinato é algo capaz de criar mãos e sufocar o pescoço da cabeça que a concebe.
Ela criou mãos quando viu o homem em sua sala de estar, de preto, dizendo seus pêsames ao senhor Reis, seu colega de trabalho. Como uma reação química, ela sentiu seu luto derreter e se transformar em ódio ao som da voz do homem e, enquanto o observava, o mesmo ódio se solidificou em algo frio e cheio de farpas. Um cristal de desprezo.
O professor tinha o rosto franzido em pesar, ouvindo os lamentos dos pais da moça que havia comido e que agora se achava inteiramente digerida. Certamente não se pensava como o culpado. Era um típico homem de quase quarenta que ainda vivia sua infância tardia. Não reconhecia responsabilidades. E a menina de treze anos soube que poderia matar aquele homem.
O plano da menina não foi simples. Ela deixou que se passassem anos. Começou a escrever tudo de que se lembrava, a princípio pensando que remontava a figura da irmã, mas logo percebendo que construía a si mesma enquanto lutava contra a sensação nova e avassaladora de solidão. Dia após dia ela se deu conta de que primeiro precisava descrever a realidade para depois traçar o futuro e, assim, sua tinta se espalhou antes do sangue.
Houve uma tarde em que ela se apaixonou pela ideia de atrair o professor de Artes até o laboratório de Química e derreter seu rosto com ácido. Durante uma semana inteira brincou com a imagem do homem amarrado pelo pé à escada da piscina do ginásio, perguntando-se se ele realmente sangraria pelos ouvidos e pelo nariz depois de oitenta e dois segundos. Lamentou diversas vezes que o prédio da escola só tivesse três andares e jogá-lo do ponto mais alto o deixaria apenas aleijado. Com o passar do tempo ela se convenceu de que teria que ser rápida, pois não queria ser pega; pensou se valeria a pena abatê-lo de longe e chegou a aprender a atirar com seu avô durante as férias do primeiro ano, na fazenda. Mas armas eram coisas velhas e facilmente rastreáveis. Além disso, mesmo se seguisse seu devaneio de atirar primeiro em um joelho e depois na cabeça, o sofrimento duraria muito pouco e ela provavelmente nem o ouviria gritar de uma distância segura.
Nos dias piores, ela fantasiava em enfiar o próprio lápis 6B no olho do professor, enquanto ele se pavoneava para lá e para cá na sala de aula. Era quando captava o suspiro das colegas, arrastadas pelas palavras rebuscadas, feito peixes numa rede; quando reconhecia cada maneirismo que Luísa já havia lhe narrado antes: o sorriso sempre de boca fechada, o rosto muito bem escanhoado e os cabelos cuidadosamente grisalhos, já há vários anos. Nada mais era do que um ator representando a própria vida – preso na rede de faz-de-conta infantil que tecia para as menininhas, fadado a jamais sair daquele estado de mediocridade que erguera ao redor de si mesmo.
Ela conhecia o professor como ninguém. Sabia que ele morava com a mãe, uma senhora magra e bronzeada que ia à mesma igreja dos seus pais. Sabia que ele conseguiu seu emprego sem ser formado porque a diretoria na época da contratação era formada apenas por mulheres. Sabia que seu último relacionamento oficial fora uma história recontada ao infinito em que ele era o noivo apaixonado abandonado no altar – mas ela descobriu até mesmo que a noiva o largara depois de ser quase estuprada a duas semanas do casamento. Dali veio a célebre frase “você só quer me comer e depois palitar os dentes, idiota!”, jogada em sua cara como o insulto de sua vida. Desde então, ele regurgitava as mesmas palavras em ordens diferentes sobre cada adolescente que cedia ao seu encanto rasteiro. Ela sabia que o homem era incapaz de ir além daquilo e, por isso, era digno de pena.
No entanto, saber exatamente o nível de miséria em que o professor chafurdava em nada contribuía para o nobre sentimento de perdoar e esquecer. Ela não queria perdoar o homem que havia fodido o psicológico de sua irmã, além do corpo; tampouco agia levada por um sentimento vingador, ou para impedir que o sedutor em série voltasse a atacar e estragasse a vida de mais garotas. O que ela queria era ver ao menos uma manifestação de emoção que lavasse a grossa camada de hipocrisia por um instante; quebrar aquela máscara, desfiando o sorriso meloso arrancando fora cada dente. Provocar o horror naquele ator medíocre.
Foi no último ano da escola, quando alcançou a idade de Luísa, que ela criou sua cena.
Naquele ano, ela se colocava na perspectiva da irmã o tempo inteiro e a saudade às vezes vinha raiada de mágoa; pensava que ela tinha sido egoísta e fraca, desistindo de tudo por causa de alguém que era tão pouca coisa. Entretanto, aprendeu a lutar contra esse pensamento e conheceu que a dor possui diferentes tons. Ela olhava através de sua dor para os pais, que falavam em mudança para a cidade universitária, para os professores que ressaltavam a importância das provas finais, para os colegas cheios de planos para o futuro – e cada banalidade soava como uma badalada do juízo final.
Noite da formatura. Nenhuma estrela brilhava através das nuvens de chuva de novembro. O ar condicionado do ginásio, onde a festa foi montada, estava no máximo em vão. Era uma noite de ânimos agitados e ninguém parecia parar no mesmo lugar. Havia um clima de vale-tudo no ar.
A ideia de fazer a festa à fantasia era perfeita para aguçar ainda mais aquela sensação de agora-ou-nunca. A quadra estava forrada de veludo negro e lanternas de papel pendiam do teto a espaços irregulares. O tema da festa era “seja quem você quiser”, mas a pouca luz e a bebida alcóolica contrabandeada estavam transformando ligeiramente as ideias.
Sóbria, aquela que viria a se tornar Hórus andava pelo meio dos colegas como se flutuasse em um sonho. Como não tinha amigos, ninguém sentia sua falta. Seu corpo estava à mostra, mas o rosto estava coberto e ninguém a reconhecia.
Se havia um adulto à paisana naquela festa era o professor de Artes, e lá estava ele numa camisa branca com botões demais abertos, envergando uma máscara de fantasma da ópera. Sorria, fingindo não sentir o cheiro de álcool do próprio copo, nem ver o número crescente de alunos se esgueirando em direção aos vestiários. De seu canto, ele avistou uma super-heroína de capa esvoaçante: pernas através da fina meia-calça, e depois um corpo no espartilho roxo. O rosto estava meio coberto por uma máscara, mas ele nem se incomodou em procurar os olhos fortemente delineados. Se olhasse, talvez percebesse o sorriso que os esticava. Se olhasse, talvez reconhecesse o monstro que o mirava de soslaio nas aulas dos últimos anos.
Mas ela sorria porque sabia que ele não iria olhar. E foi sorrindo, com a boca escancarada numa silenciosa gargalhada, que ela passou pelo professor e o convidou a segui-la.

Ela o esperou na velha sala de Artes, como sempre atulhada de desenhos feios. O cheiro chegou antes dele. Cheiro de álcool e xarope de fruta que, ela pensou, o definia muito bem. Apontou para o mezanino, fazendo com que ele sentasse, risonho. Ele abriu os braços, convidando-a para o seu colo.
Num gesto rápido, que havia sido treinado todos os dias durante o último ano, ela sacou a faca do cinto da fantasia e cravou na garganta do professor. A sala estava escura, mas ela viu o rosto que odiava congelar entre o riso e a surpresa, a língua estirada comicamente para fora, os olhos esbugalhados. Lenta, quase carinhosamente, ela afrouxou a mão sobre o cabo da faca, sentindo-a tesa, presa ao corpo dele. Então girou o cabo, fazendo a lâmina rodar e abrir caminho para um jato de sangue furioso que encheu sua mão. Não sabia se o ruído gorgolejante vinha da ferida ou de um grito mal articulado, mas foi um som que a encheu de emoção. Posicionando-se longe dele, ela puxou a faca para fora.
O sangue era negro e caía em profusão. O professor seguia seu rastro, estupefato, como se assistisse a um filme. A menina observou o espetáculo, estranhamente entorpecida. Ele sofria. Mas era um sofrimento muito simples, sem consciência de ser. Talvez ela devesse ter se revelado antes, causado um pouco de medo nele. Talvez devesse ter falado o nome da irmã antes de atingi-lo. Um bêbado excitado não era nenhum desafio.
Subitamente ele caiu para trás, como um mau ator encenando a própria morte. Mas era real. Ele estremeceu mais um pouco e então ficou imóvel. A menina engoliu em seco, sentindo os segundos se passarem. Ela planejara, mas não esperava que fosse tão fácil. Tão rápido.
Aproximou-se, olhando brevemente para o rosto do professor Otávio. Na morte como na vida, medíocre. Foi atraída para a grande poça escura. Espalmou as mãos ali, sentindo o líquido penetrar por baixo das unhas, quente. Na escuridão, viu a própria pele sumir dentro do sangue. Um arrepio subiu por seus braços e se instalou na parte de trás da cabeça.
A sala se iluminou como se fosse dia. Três segundos depois, um trovão quebrou ao longe e a música alta que vinha do salão se calou. Com o coração disparado, a menina registrou apenas as cores: o branco da camisa, o vermelho escuro sobre o chão, o quase cinza do rosto de olhos bem abertos, o verde da lousa vazia à frente. Depois, o preto absoluto e o silêncio.
O clamor da festa se ergueu imediatamente, junto ao som de água que começou a cair como se tivessem aberto uma torneira. A menina deu meia volta e saiu da sala. Parada na beira do pátio, estendeu os braços e a chuva lavou o sangue lentamente.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Capítulo V - Estrada 116


O céu azul lampejava a custo através das nuvens brancas e do verde escuro das árvores às margens da estrada. Hórus observava a paisagem familiar passar rapidamente pela janela do ônibus, uma parte de si distraída, como sempre, com a beleza das montanhas. Toda vez que fazia essa viagem ela se questionava se tudo sempre fora assim, belo e pacífico, ou se era a saudade que coloria sua perspectiva.
Encolhida no banco macio, apreciando o vento que enchia o ônibus pelas janelas abertas, ela aproveitava o tempo para pensar. Caíra finalmente no estado de espírito silencioso e contemplativo que a ameaçara durante toda a semana. Após o acontecimento do poema, sabia que deveria ceder à autoanálise; ainda que tivesse procurado se ocupar com a limpeza de seu apartamento, lavando roupas, organizando livros, apagando manchas de sangue e saindo com Serafim, em algum momento teria que desligar a música de fundo das distrações e encarar os fatos.
Parecia correto que usasse o tempo da viagem para isso, enquanto se afastava da cidade de muros pichados com seu codinome. Sabia que era uma ilusão, pois o celular com as notificações do Up and Date estava bem ali em seu bolso. Ainda assim, havia algo de reconfortante em ver a estrada rolar abaixo de si e o sol faiscar nos vidros a cada brecha entre as árvores.
Há quantos anos ela tinha ido embora? Parecia tempo demais para alguém que ainda era tão jovem. Não saberia dizer em números, mas se lembrava muito bem da sensação de estar naquele mesmo ônibus, em direção contrária, seguindo a madrugada pelas janelas que só lhe mostravam de volta o próprio reflexo na escuridão; seu rosto frio, estranhamente seco, como papel. Hórus ainda não possuía seu nome, mas já havia se tornado quem viria a ser. Lembrava de ter passado muito tempo olhando as próprias mãos, perguntando-se como conseguia não sentir mais nada depois de vê-las lavadas de sangue. Era um sentimento curioso, pois quanto mais tempo passava pensando sobre aquilo – seu primeiro assassinato – menos pesada se tornava a culpa. A menina estava dividida ao meio: uma parte sabia que tinha feito algo de que deveria se envergonhar para o resto da vida; a outra parte já havia pensado o suficiente e aceitado que, por mais condenável que fosse, o homicídio fizera todo o sentido em seu contexto.
Ela sentiu o céu da noite se abrir e derramar uma revelação: o certo e o errado não eram tão simples como a ensinaram na igreja. O amor de que ouvira falar tão exaustivamente era muito mais misterioso do que qualquer um ao seu redor poderia suspeitar, ela pensou então. Tinha encarado uma face do amor que era simplesmente aterrorizante. Não era fácil continuar depois daquilo; ainda sentia em seu corpo o peso daquilo. E, mais pesada do que tudo, estava a realidade, que era maior do que sua consciência – não era fácil, mas era possível.
Hórus aprendeu que não havia nada de emocional em matar alguém, mesmo que seu primeiro crime tivesse sido passional. E, ainda que ela sentisse prazer em se machucar, enquanto aprendia a viver sua nova vida, e que fosse atingindo uma espécie de êxtase a cada nova morte, aquela parte de si que sempre parecia já ter pensado em tudo lhe explicava pacientemente que: tudo era cálculo – e assim que pensava, o véu caía novamente e ela conseguia enxergar os planos traçados no ar. Houve um tempo em que a menina acreditava ser a mão de Deus sobre a terra, para limpar e servir. Logo isso se dissolveu na realidade outra vez: nada havia de divino no que ela fazia. No máximo alguma divindade profanada, antiga ou nova, como tudo parecia ser na cidade onde morava agora: grandioso e sujo.
Ela achou seu nome na internet. Uma filóloga traçara a origem da palavra “whore”, puta em inglês. Até então ela nunca tinha se interessado por mitologia clássica. Achou fascinante que um deus menor do Egito tivesse, ao longo dos séculos, se travestido em um xingamento corriqueiro. Quando fez seu début como heroína maldita, a palavra veio aos seus lábios como uma resposta pronta, e o famoso olho começou a aparecer em toda parte. Mas isso ainda era quando ela não matava por dinheiro, e o prazer era apenas efeito colateral do dever cumprido.
Ela gostava de desafiar a própria ansiedade ao esperar o dia inteiro pela noite, quando saía às ruas mais sujas, a cada lugar comum das páginas policiais. Era muito simplória em seus primórdios, frustrando assaltos e evitando estupros, torcendo por ataques de gangues para poder deixar um sobrevivente que espalhasse seu nome. Nessa época, toda a questão se tornara comum para ela e ainda tinha bases bíblicas. Quem via a oportunidade de fazer o bem e não fazia, estava condenado. Então, ela fazia a coisa certa.
Mesmo que em alguns momentos o certo fosse aleijar os marginais que, coincidentemente, atravessavam seu caminho.
E como ela gostava de ser aquele paradoxo ambulante: a despeito de sua aparência, ela é que era a razão do medo de quem lhe cruzasse os passos. Quando as vítimas passavam por ela, refletiam o horror e o reconhecimento. Algumas caíam a seus pés como se quisessem adorá-la; mas nessa época, Hórus já tinha se dado conta de como poucos percebiam que sua atitude heroica era apenas questão de minutos que separavam uma assassina de uma salvadora.
A sorte a encontrou quando percebeu que fazer a coisa certa poderia ser seu meio de vida. O aplicativo de recompensas decodificava aqueles padrões que ela enxergava por instinto, ampliando seu alcance de forma extraordinária. Antes, ela havia se acostumado a sair pela noite em busca de criminosos, ironicamente, como um homem saía em busca de prostitutas. Agora, ela podia se dar ao luxo de tratar cada alvo como uma conquista completa e dedicar-se a um de cada vez, entregando-se sem reservas a cada personagem criada para a nova cabeça, até que começasse a criar personagens também para as épocas de paz.
Aos poucos a mulher percebeu que a parte de si que pensava em tudo agora era o seu todo e que, enquanto fosse Hórus, não poderia mais resgatar seu primeiro nome. Assim ela colecionou nomes de guerra como uma autêntica whore, empenhando o próprio corpo a cada nova missão e permitiu-se se orgulhar ao ver os dígitos acumulando em sua conta, como uma prova literal e mundana de sua vocação uma vez divina. Hórus sorria, tendo finalmente achado harmonia.
E foi quando ela aprendeu que bem e mal, assim como há tanto tempo se revelara sobre o certo e o errado, também não eram conceitos fechados em si mesmos, como o mundo gostava de estabelecer em seu preconceito pétreo.
Foi assim que ela se deu conta, em meio à velha Estrada 116, de que era por isso que escrevera um poema sobre Serafim. Não porque descobriu que conseguia se relacionar com um homem sem ter a intenção de matá-lo – o que geralmente constituía seu maior prazer – mas porque, se podia existir alguém que compreenderia aquela revelação, seria ele.
Tudo, absolutamente tudo na vida era tão-somente questão de perspectiva.
Hórus esticou as pernas no banco do ônibus, se espreguiçando. O dia crescia lá fora e ela antecipava o café da manhã que a receberia em menos de meia hora. Puxou o celular e ligou para a mãe. Era 24 de dezembro e ela estava indo passar o Natal em casa.

Havia muitos anos que o Natal perdera seu significado original, uma vez que as religiões perderam seus principais fiéis entre a população. O novo deus era o dinheiro e este era, cada vez mais, capital imaginário em eterno desfile de dígitos sobre telas. E por mais que no passado houvesse um notável amálgama entre as igrejas e o dinheiro, aquilo também se desfizera. Quando o mundo se esvaziou com a maior das guerras, a velha lei da sobrevivência imperou outra vez. E então ficou muito claro, até para quem ainda desejava enxergar com os olhos da fé, que somente os preços haveriam de conservar seu valor.
Hórus se reconhecia como um produto de seu tempo, variando de opinião conforme seu humor: em alguns dias era um instrumento de ordem social, em outros somente isto, um produto. Ela se sentia propensa a refletir sobre tudo aquilo mais uma vez enquanto andava pela cidadezinha parada no tempo, carregando sua mala. Sorria apreciando o contraste, sentindo-se deslocada. Era como se conseguisse se ver de fora, arrastando suas botas impermeáveis inúteis naquele tempo seco, mas que escolhera porque estava chovendo na cidade quando saiu. Ela observava os rostos de seus conterrâneos, apertando os olhos no sol forte, envergando bicicletas por toda parte. Houve um tempo em que odiou tudo aquilo com força demais. Sentia-se muito bem agora, ao perceber que estava perfeitamente em paz com as lembranças e que isto não era produto de sua insensibilidade, mas resultado de ter se tornado uma adulta. Talvez fosse sempre assim quando voltasse para a casa que não era mais a sua casa, ela pensou enquanto destrancava o portão, talvez sempre cruzasse com aquela que tinha ido embora e lhe concedesse o perdão que nunca havia pedido.
Ela parou na varanda, ouvindo de longe a conversa de seus pais por baixo da música do rádio, provavelmente vindo da cozinha. Entrou pela porta da frente, destrancada, e respirou fundo o cheiro da casa que rescindia a chá verde. Suas botas faziam barulho no piso da sala, mas a conversa animada não cessou. Ela parou no portal, encostando-se à cortina de contas que separava os ambientes, admirando a cena. Primeiro viu seu pai, alto e grisalho, de camisa social branca mesmo sendo feriado, rindo enquanto contava uma de suas histórias cheias de detalhes. Sua mãe estava de costas, curvada sobre a bancada, os cabelos pretos presos num coque, balançando a cabeça. A qualquer momento ela iria interromper o marido para pedir pelo amor de Deus que fosse direto ao ponto, mas era claro que estava se divertindo.
Ela esperou uma pausa na história para anunciar sua presença e os dois se voltaram, surpresos.
- Eu devia saber que você ia entrar de fininho de novo! – ralhou a senhora Reis, secando as mãos em um pano de prato. Rindo, ela fechou os olhos para não ficar tonta com a nostalgia que a envolveu dentro dos braços de sua mãe. O senhor Reis, percebendo que a esposa não a soltaria tão cedo, juntou-se ao abraço formando um montinho no meio da cozinha abafada.
Seguiu-se uma hora inteira de carinho e reclamações de ausência. Como esperado, a pequena mesa fora posta e estava apinhada de comida, sem espaço para um cotovelo. Não que ela se atrevesse a colocar os cotovelos na mesa na presença de sua mãe, de qualquer forma.
A senhora Reis deixou passar apenas o tempo necessário para ver a filha se alimentar e logo a despachou para o banho, indo imediatamente se ocupar do almoço. Seu pai intimou que viesse conversar com ele na varanda assim que descansasse, pedindo pela enésima vez que desse outra chance ao chá verde que era sua especialidade.
Respirando fundo, ela se virou para a escada e avistou ao longo das paredes os quadros com fotos da família. Conforme subia, era como reviver a própria história. A mais antiga era de seus trisavós, uma litografia em preto e branco. Depois, seus bisavós em cores desbotadas, posando na frente da antiga fazenda. Seus avós sorriam em cores brilhantes num parque, no ensaio de casamento. Seus pais estavam abraçados em uma colagem que misturava vários anos, com destaque para a foto da mãe grávida. Então, a família completa: o pai, já professor, sorrindo em seus óculos de armação grossa com o braço nos ombros da mãe, funcionária da Prefeitura, em um vestido leve que balançava ao vento. Abaixo deles as duas meninas ajoelhadas na grama, abraçadas e com os rostos colados. Luísa, a mais velha, de olhos claros e cabelos escuros, e a Caçula, aquela que viria a se tornar Hórus, de olhos escuros e cabelos claros.
Ela parou no degrau seguinte, diante do registro de formatura da irmã. Era uma bela foto, com a moça séria na roupa azul marinho, os cabelos escovados caindo pelos ombros, seu lindo rosto equilibrado nas proporções. Ficou diante dela, vendo-se refletida no vidro da moldura. Os olhos da outra escureceram, o rosto ganhou uma auréola dourada. Mas fora isso, eram quase iguais.
- E aí, maninha – sussurrou ela, como era seu hábito.
Hórus seguiu para seu quarto, finalmente alcançando o patamar. Sentia a tristeza e a saudade se espalhando em ondas pelo corpo, pensando como era curioso que tudo relacionado à irmã mexesse com ela de forma tão orgânica. Tinha sido assim desde a depressão e do subsequente suicídio. Desde então, tudo o que significava destruição do lado de fora, ecoava dentro de si de forma pungente, tanto para o pesar quanto para o prazer. E este era o momento do pesar, ainda uma vez.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Capítulo IV - Comum


Faltavam dez minutos para o fim do expediente de Serafim. Ele observava o relógio no canto da tela de seu computador marcar 3:50 da manhã. Estava cansado, mas sentia uma parte de si totalmente alerta, fazendo planos em um canto de sua mente. Tentava ignorar a ideia que surgira em algum ponto das últimas noites, enquanto cumpria o trabalho monótono, mas a hora se aproximava rapidamente em que teria que admitir: três partes estavam despertas e de acordo. Ele iria se submeter.
Desligou o computador e foi ao banheiro lavar a caneca de café. Deu uma olhada no espelho. Seu rosto se refletia cansado e com olheiras, os lábios estavam secos, o cabelo caía de qualquer jeito sobre os ombros. Debaixo das sobrancelhas pesadas, seus olhos escuros encaravam a própria imagem, desdenhoso. “Não está se sentindo o rei da beleza agora, hein.” Ele deu uma risada curta e seca, sacudindo a caneca sob o fio d’água. Não queria ceder à ideia dos outros. Iria parecer um maníaco.
“São 4 da manhã. Ninguém vai te ver agindo feito maníaco.”
“Eu estou vendo agora mesmo. É isso que importa.”
“Não suporto esse drama. É só uma volta para casa por um caminho alternativo. Relaxa.”
A imagem do prédio de Bianca, envolto em sombras na madrugada, surgiu em sua cabeça. Ele imaginou as duas janelas da frente. Uma era a da sala, atrás do sofá onde ela havia subido em seu colo. A outra era a do quarto, atrás da cama em que ela provavelmente dormia naquele momento. Talvez conseguisse divisar uma das estantes de livros, se houvesse alguma luz esquecida acesa. Talvez ela tivesse insônia e estivesse lendo alguma coisa. Talvez estivesse saindo para correr extremamente cedo porque não conseguia dormir e desse de cara com ele ali, em sua calçada, exatamente como um maníaco.
E talvez ela o encarasse com aqueles olhos de bicho e o convidasse para entrar, porque não sentiria medo dele, apesar disso.
Ouviu o barulho da água cessar e se deu conta de que havia fechado a torneira. Engoliu em seco, confundindo lembranças e sonhos. Ele iria até lá, nem que fosse para ter a sensação patética de estar realizando uma ação, sete dias depois daquele encontro. Sim, ele iria, decidiu enquanto voltava à sala e pegava a mochila – e talvez até esperasse ela sair e a convidasse para tomar café da manhã.
Saiu para a noite que minguava lentamente, sentindo o sereno fresco se depositar sobre o rosto. Serafim gostava do seu horário de trabalho insano. Ele havia sido escolhido justamente por sua disponibilidade, afinal, o Up and Date era um aplicativo para assassinos, e estes em geral escolhiam a noite para entrar em ação. Tudo tinha que estar funcionando normalmente a todo o tempo – se um usuário contatasse em busca de ajuda médica, ele responderia com o endereço do hospital mais próximo; se solicitassem mais informações sobre um anúncio, ele realizaria a busca; se enviassem a prova de missão cumprida, ele abriria o processo de verificação e recompensa. Toda a Mind7 funcionava debaixo daquela máxima: uma pessoa valia por várias e nenhuma área era desconhecida a um funcionário. Na prática, era o bom e velho acúmulo de funções, mas o slogan oficial era perfeitamente motivacional e adequado a seu tempo.
Aquela noite tinha sido igual ao resto da semana, com uma única ocorrência.
Eram quase 22 horas quando Henrique postou o anúncio – uma cabeça comum, como chamavam, apenas um pouco acima do valor inicial. Um estuprador de viela, acumulando vítimas e escorregando pelas mãos da polícia. Caso típico. Logo depois da postagem, ele se despediu do colega e foi embora.
Serafim se perguntou se existia algum tipo de estudo sociológico sobre aquilo – o fato de um aplicativo ser mais eficiente no controle criminal do que o próprio Estado. Era um fenômeno recente, pensou, e compreensível. No caso em questão, a cabeça havia vitimado doze pessoas. Dez utilizaram o app. Nos registros policiais constavam as outras duas denúncias. Era o nó dos crimes sexuais. O século XXII estava às portas e a sociedade padecia das mesmas mazelas de sempre: o velho ciclo de pecados e culpas.
Eram 22h03 quando a notificação apareceu na tela: “Hórus aceitou esta missão”.
Ele pensou em correr e chamar Henrique de volta, mas desistiu. Sabe lá em quanto tempo Hórus cumpriria a missão. E ela – presumindo que fosse mesmo “ela” – nunca pedia ajuda mesmo.
Serafim levantou, foi até a mesa no canto da sala, encheu sua caneca de café e voltou a acompanhar os gráficos em outra janela do computador. Quando terminou de beber, a notificação apareceu: “Missão concluída” e o anexo com a foto do homem degolado.
Pouco mais de meia hora para resolver o caso que passou pelo processo de checagem ao longo da semana inteira. A vida realmente era só um detalhe, pensou ele, recordando uma antiga canção.
Prosseguiu com o protocolo de avisar à polícia e encaminhar a solicitação de recompensa referente ao caso 0131476 ao departamento financeiro. Sentindo uma estranha excitação, ele também escreveu o e-mail para Hórus registrando que sua prova havia sido recebida e ela teria o valor na conta cadastrada em até 48 horas úteis.
E aquilo era tudo. Provavelmente algum recorde do app fora quebrado pela velocidade em que o caso havia sido resolvido. Agora estavam novamente sem pendências e Serafim teve um longo e tranquilo plantão, que gerou o vazio necessário à sua mente para desenvolver a ideia terrível de stalkear Bianca.
Depois de quase meia hora de caminhada, ele chegou à rua dela. Diminuiu o passo instintivamente, sabendo que não deveria prosseguir, mas certo de que iria até o fim.
E lá estava.
Exatamente como ele imaginou, exatamente como se lembrava da casa. As janelas estavam escuras. Ela dormia lá dentro, tão próxima e tão distante. Se ao menos fossem 4 da tarde... Ele poderia chamá-la para sair como um cara normal. “Não, querida, meu expediente é de madrugada porque meu trabalho é auxiliar os matadores mais notáveis do país. É, eu sei... Mas o salário é excelente.”
Uma certa parte dele sugeriu que Bianca não era o tipo de mulher que se importaria com aquilo, e sua boca se curvou em um sorriso. O que ela faria se ele batesse em sua porta e dissesse simplesmente “Desculpe o horário, mas só consegui assumir a liderança agora. Os outros três foram dormir.”
O que será que ela iria pedir desta vez?
Serafim se obrigou a balançar a cabeça com força, espantando aqueles pensamentos traiçoeiros. Não era assim que ele queria encontrá-la pela segunda vez. Queria fazer as coisas direito. Para isso tinha que ir embora imediatamente, mas não conseguia se mover. De pé na calçada deserta, no meio do absoluto silêncio, ele percebeu os minutos passando, dizendo a si mesmo que iria quando o céu começasse a clarear.
- Está perdido, senhor Leal?
A voz suave quebrou a noite, pegando-o inteiramente de surpresa. Engoliu em seco, empurrando o coração de volta pro lugar, quando a viu: um rosto cintilante no escuro, completamente tranquila.
Bianca mediu o homem na frente de sua casa, percebendo que se esquecera o quanto ele era alto. Reparou no cansaço estampado em sua figura, os cabelos desgrenhados, a mochila pendendo de um dos ombros de um jeito cômico, pequena demais para ele. Ela também tinha se assustado ao vê-lo parado ali, quando virou a esquina. Era como se ele tivesse caído de seus pensamentos e se materializado pela pura insistência de sua lembrança.
Serafim tentou falar alguma coisa, mas não sabia o que dizer. Deveria pedir desculpas? Ou inventar uma história de que aquele era seu caminho mesmo? Ele abria e fechava a boca, o pulso ainda acelerado apesar do susto já ter passado, e então o medo cresceu: tinha estragado tudo.
Bianca tombou a cabeça de lado, observando a confusão dominá-lo, até que não conseguiu mais esconder o sorriso e resolveu acabar com seu sofrimento.
Ele, vendo ela sorrir, permitiu que o medo diminuísse gradualmente. Não estava tudo perdido, então.
- Bom dia, Bianca.
- Acho que antes das seis ainda é boa noite – replicou, passando por ele e subindo os degraus até a porta – Mas, tudo bem. Bom dia, Serafim.
Havia algo no ar entre eles. Ele se aproximou como se flutuasse, sentindo-se bobo ao pensar nas palavras “dominado pela atração”. No entanto, era muito simples – ele notou enquanto subia a pequena escada. Simples, pensou novamente quando seus olhos se encontraram na mesma altura.
Uma mulher e um homem, juntos. Isto era tudo.

A parede de azulejos do banheiro, embora orvalhada da água quente que vinha do chuveiro, era fria contra as costas de Bianca. Ela precisava retesar as duas pernas ao redor de Serafim para não escorregar e esta era uma tarefa difícil, pois seus braços se encontravam inutilizados, presos à parede pelos pulsos, as mãos enormes dele feito grilhões.
Ela sorria ao sentir os dentes dele em seu pescoço, apenas roçando a pele, sem nunca chegar a morder. Aquele quase mandava arrepios pelo seu corpo abaixo até estremecer as coxas, o que provocava a resposta imediata do homem com nome de anjo: o espaço entre suas costas e a parede sumia e então era seguro relaxar, pois se achava totalmente suspensa nele.
Serafim recebia a água quente no meio das costas, mas só conseguia sentir calafrios. O corpo de Bianca à sua frente, ofegante e vaporoso, parecia irreal após aqueles sete dias de silêncio. Duvidava estar sonhando novamente – mas então os outros se manifestaram, discretamente, lembrando que seu inconsciente não era assim tão generoso. O eco dos gemidos de Bianca, junto ao som da água caindo, estavam causando um efeito arrasador: a estranha sensação de estar unificado, mais uma vez.
Ele libertou uma das mãos e segurou o rosto dela, afastando o cabelo do caminho para alcançar sua boca. Suas mãos se juntaram no pescoço dela, sem apertar, somente tocando – e então ele pôde ver o efeito que causava. A certeza de que seria tragado por aqueles olhos se repetiu, mas desta vez ele estava disposto a cair: ela o engoliu, empurrando-o mais fundo com os calcanhares na base de suas costas. Serafim contou cinco segundos enquanto ela o encarava sem piscar, e então sorriu largamente: mesmo tendo dito que seu nome não era adequado para um grito, foi isso que ecoou pelos azulejos em sua doce voz.

O cheiro de pão torrado e café envolveu Bianca e Serafim, sentados à mesa de uma cafeteria próxima à casa dela. O sol da manhã caía sobre eles através da janela, dando um aspecto saudável ao homem, que estava sem dormir havia quase vinte horas. Podia-se pensar que o banho e o sexo injetaram-lhe ânimo, mas na verdade ele estava usando um artifício típico seu: toda vez que se sentia no limite de suas forças, Serafim “trocava a chave”. Era por isso que encarava a mulher à sua frente com um sorriso relaxado e manso. Seu humor estava agora da cor da esperança.
Bianca bebia seu café apreciando o calor que secava lentamente seu cabelo. Ela percebia que estava sendo observada de maneira incomum e desconfiava da mudança de Serafim, mas estava achando tudo muito divertido.
- É como se tivéssemos pulado a semana, não é?
Ele sorriu, entendendo o que ela quis dizer.
- Quem me dera.
“Se segura, Verde. Ela não precisa saber que estamos de quatro... Apesar de ser literalmente isso.”
“Sério? Ela me encontrou de frente pra janela dela de madrugada. E a ideia nem foi minha.”
“Fica na sua, Branco, você é muito puritano.”
“Calem a boca e concentrem-se. Ela sabe como estamos, é só olhar pra ela.”
Hórus encarava Serafim, fascinada.
- Quem está falando comigo agora?
“Merda.”
Ele estendeu a mão por cima da mesa.
- Serafim Leal, para servi-la.
Ela riu enquanto ele beijava sua mão.
- Você sabe o que eu quis dizer.
- Sei... Bom, por que não tenta adivinhar?
Ela observou ele partir um pão, espalhar a manteiga e comer sem pressa alguma.
- Você não é o todo-bom. Nem o todo-mau.
Ele fez um muxoxo enquanto mastigava.
- Bom com um traço... Divertido, mas de pensamento rápido.
Ele piscou para ela e Bianca se divertiu mais ainda ao perceber que isso lhe provocava uma onda de excitação.
- Por outro lado, não sei bem como seria o mau-com-um-traço.
- O Vermelho? Hum...
Ela ergueu as sobrancelhas.
- São cores?
- É um jeito de chamá-los – ele disse, balançando a cabeça – Branco e Preto, Vermelho e Verde.
A garçonete deixou dois pratos de ovos mexidos na mesa e encheu suas xícaras.
- Então você é o Verde – deduziu Bianca.
- Como disse, ao seu dispor.
- E quem tomou banho comigo?
A garçonete, que estava se afastando, virou a cabeça involuntariamente. No mesmo instante, murmurou alguma coisa e saiu apressada.
- Ora... Parece que o Verde ficou vermelho – disse Bianca maldosamente, garfando a comida. Serafim, que sentia o rosto quente, parou de rir. Encontrou aqueles olhos de bicho e respondeu sem pensar.
- Melhor não brincar com o que não conhece, mocinha.
Hórus cruzou as pernas, percebendo a nova mudança. Não era difícil distingui-los, como havia pensado. Será que ele estava fingindo?
- Não quer que eu brinque com você? Acho que jogamos muito bem juntos.
Ela viu o rosto dele suavizar lentamente, primeiro com suas palavras, depois com o toque da ponta de seu sapato, com o qual alcançou a perna dele por baixo da mesa. Ele respirou fundo, bem devagar, tentando recuperar o controle. Ela subia por sua perna enquanto comia inocentemente o café da manhã, do outro lado da mesa. De repente, tomado pela inspiração, ele derrubou a colher no chão. Bianca fez um ruído de apreciação à comida quando sentiu a mão dele se fechar em seu tornozelo.
Então ele sumiu de vista, em busca da colher perdida. Bianca sentiu-se ficar descalça e então abriu a boca, surpresa: os lábios dele estavam em sua pele novamente. Serafim estava beijando seu pé.
Ela olhou ao redor, rindo como uma adolescente, procurando ver se alguém percebeu o que se passava, mas não havia ninguém por perto. Mal eram sete da manhã de um domingo e o único movimento era na cozinha, do outro lado do balcão onde a garçonete sumira.
Serafim estava de volta, parecendo satisfeito ao constatar as bochechas rosadas da mulher e o jeito que ela apertava os lábios, com evidente prazer.
- No chuveiro estávamos todos – respondeu ele simplesmente, alcançando o garfo e começando a comer.
Bianca assentiu, achando-se subitamente sem palavras. Queria perguntar quem havia acabado de desequilibrá-la, mas riu do próprio pensamento. De repente não parecia mais tão fácil distingui-los.